Publicado em janeiro-fevereiro de 2024 - ano 65 - número 355 - pp.: 48-52
28 de janeiro – 4º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Por Pe. Junior Vasconcelos do Amaral*
“Que queres de nós, Jesus Nazareno?”
I. INTRODUÇÃO GERAL
Deus nos chama a ser profetas. A primeira leitura é um convite a refletir sobre a missão que o Senhor concede a Josué, que sucederá a Moisés na difícil empreitada de instruir o povo, conduzindo-o à Terra da Promessa. Na segunda leitura, Paulo convida os homens e mulheres de Corinto, solteiros e casados, a não viver agoniados em meio a preocupações desnecessárias, mas fecundar, com a própria vida e com as próprias condições, a comunidade cristã. No Evangelho, o profeta Jesus de Nazaré expulsa para longe todo espírito mau incapaz de ouvir a Boa-nova do Evangelho que ele está anunciando. Precisamos, antes de ser profetas, escutar com atenção a Palavra de Deus que iremos proclamar com nossas palavras, mas sobretudo com nossa vida.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Dt 18,15-20)
Deus é bom e compassivo; por isso, suscita no meio do povo profetas que proclamem sua Palavra e sua vontade. O profeta é seu porta-voz, e o Senhor há de prover seu povo com um profeta aos moldes de Moisés. Este está próximo do fim e sabe que, envelhecendo, não poderá continuar a missão que Deus lhe confiou. Por ser o intercessor por excelência, Moisés clama ao Senhor que envie, em seu lugar, outro que, à frente do povo, o conduza à realização do projeto divino: a tomada de posse da Terra Prometida. Isso acontecerá, posteriormente, com a ajuda e a intercessão de Josué, grande líder da nação.
A perícope desta primeira leitura pode ser considerada uma oração tanto de intercessão quanto testamentária, na qual Moisés diz a seu povo: “O Senhor teu Deus fará surgir para ti, da tua nação e do meio de teus irmãos, um profeta como eu: a ele deverás escutar” (v. 15). Moisés é líder que tem consciência de seus limites e, consequentemente, de seu fim. Ele não se vê insubstituível, embora seja único e irrepetível na história salvífica de Deus. Essa seria excelente chave de interpretação para pensarmos nossa atuação pastoral, no nível ou instância em que estamos na vida da Igreja. Existem pessoas em nossas comunidades cristãs, até líderes importantes, que se iludem, acreditando que, se forem tirados de suas atividades, nada mais seguirá adiante.
Essa perícope denuncia ainda a incredulidade do povo, que diz: “Não quero mais escutar a voz do Senhor meu Deus, nem ver este grande fogo, para não acabar morrendo” (v. 16). Deus, de sua parte, insiste: “Está bem o que disseram. Farei surgir para eles, do meio de seus irmãos, um profeta semelhante a ti. Porei em sua boca as minhas palavras e ele lhes comunicará tudo o que eu lhe mandar” (v. 17-18).
Deus se mostra ainda mais exigente com o próximo profeta, substituto de Moisés. Cobrará dele tudo o que for dito, não podendo tal profeta dizer nada além do revelado por Deus. Ele deve ser fiel ao Senhor, e não refém das próprias vontades.
2. II leitura (1Cor 7,32-35)
Paulo fala à comunidade de Corinto acerca de condições sociais: dos casados, que vivem o matrimônio, a comunidade de amor; e dos solteiros, que estão livres para servir a Deus. Os que vivem o enlace matrimonial cuidem de agradar a seus cônjuges, vivendo de forma fiel e digna a vocação e o estado de vida. Já os solteiros e solteiras possam servir ao Senhor, consagrando-lhe sua vida, suas atitudes e tudo o que realizam, em prol do Reino de Deus.
O apóstolo dos gentios inicia a perícope falando da isenção de preocupações, daquela preocupação ansiosa, que é uma característica da existência humana ainda não redimida. Paulo não tem em mente o amor entre marido e mulher (Gl 5,13-14), mas sim a completa absorção da atenção existente entre os recém-casados. O homem casado é membro de uma comunidade de amor; sua esposa tem o primeiro lugar (primazia), mas não o exclusivo direito à sua afeição. A mulher não casada e a virgem (em grego, parthernos) têm o mesmo dever do homem. Para Paulo, homens e mulheres têm o mesmo direito e também os mesmos deveres. Ambos são chamados, igualmente, a servir a Deus com a própria vida, louvando o Criador também com a fecundidade de suas histórias, que não se reduzem ao matrimônio, mas envolvem uma vida de serviço à comunidade.
3. Evangelho (Mc 1,21-28)
O Evangelho, sequência daquele do domingo anterior, situa-nos ao lado de Jesus, o profeta de Deus, em Cafarnaum, na sinagoga, em um dia de sábado. Jesus é senhor também do sábado, vale recordar, como nos diz o evangelista Marcos (Mc 2,28).
Os primeiros versículos, 21 e 22, apresentam o contexto da cena, indicando os personagens (Jesus e algumas pessoas), a atividade do Senhor – que é ensinar (em grego, didaskalia) – e o resultado do ensino de Jesus: a admiração por causa de seu poder autorizado, expresso pelo termo grego exousian. Ele ensinava com exousia, e não como os mestres da Lei, baseados em seus próprios adjetivos.
O primeiro enfrentamento de Jesus no Evangelho de Marcos é este: um espírito endemoninhado que está no interior da sinagoga, um homem possuído por um espírito mau (v. 23). Ele grita contra Jesus: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus” (v. 24). Seu grito constitui a forma solene de reprimir a ação messiânica de Jesus, que adentra na sinagoga. Ele sabe de onde vem Jesus, o que veio realizar e também quem o enviou: o próprio Deus.
Jesus, em contrapartida, sabendo o que o espírito maligno deseja, repreende-o: “Cala-te e sai dele!” (v. 25). A ação transformadora está explícita no v. 26: o espírito mau sacudiu o homem, deu forte grito e, com violência, o deixou. Já o v. 27 explicita a admiração de todos os que testemunham a ação salvífico-messiânica de Jesus: ele age com exousia, com um poder autorizado pelo Pai, que o enviou. Os espíritos maus obedecem a Jesus: esse é o clímax da narrativa. Jesus é um novo didáskalo, um mestre com autoridade, capaz de deter a resistência e a incredulidade daquele movimento que ocupava o interior da comunidade de Cafarnaum, sobretudo na sinagoga, lugar da reunião para o culto e louvor a Deus.
Em outras palavras, o espírito mau resiste à mensagem de Jesus, quer detê-lo, pois conhece seu nome, sua missão e quem o enviou. Jesus, porém, não se deixa reprimir com as palavras do endemoninhado. O Senhor traz um ensino novo, proveniente de Deus, e não do rigorismo dos mestres da Lei. Ao expulsar da sinagoga o espírito mau, Jesus está expulsando da religião seu rigorismo, que impede de ouvir o diferente em sua interpretação libertadora. Às vezes, os religiosos estão cheios de certezas e dogmas, mas são incapazes de ouvir a voz divina. O poder autorizado de Jesus é capaz de nos libertar do rigorismo religioso e nos tornar abertos à mensagem salvífica de Deus.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Conduzir a comunidade cristã a compreender sua missão profética, derivada do batismo. Somos todos profetas e profetisas de Deus, em busca de um mundo mais justo e fraterno. Compreender que a mensagem de Jesus na sinagoga consiste em nos libertar da autossuficiência, atitude própria do espírito mau, que já parece conhecer quem é Jesus, desejando dominá-lo. Perceber que, na comunidade cristã, independentemente de nossa condição, solteiros ou casados, todos podemos servir a Deus, mas primeiramente cuidando de nossas prioridades.
Pe. Junior Vasconcelos do Amaral*
*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança. Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – BH), realizou parte de seus estudo de doutorado na modalidade “sanduíche”, cursando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor na PUC-Minas, em BH, e pesquisa sobre psicanálise e Bíblia. E-mail: [email protected]