Publicado em número 139 - (pp. 30-32)
Meditações bíblicas sobre a Eucaristia
Por Pe. Luís Alonso Schökel, sj
(As meditações I-XI foram publicadas nos números 132-138 da revista Vida Pastoral.)
XII. BÊNÇÃO FINAL
1. Nossa eucaristia se encerra com um novo sinal da cruz e invocação trinitária, formando uma conspícua inclusão. Mas desta vez, no final da celebração, tem caráter diferente. Não é marca, mas bênção.
Portanto, devemos recordar o que foi dito sobre “bendizer” a propósito do ofertório-beraká. Quando o homem bendiz a Deus, reconhece e agradece; quando Deus abençoa o homem, pronuncia uma palavra eficaz, outorga bens, ou seja, Deus começou abençoando o homem com os frutos da terra; o homem respondeu oferecendo um obséquio agradecido, fruto de seu trabalho; Deus responde abençoando de novo o homem. Tal é o ritmo do grande diálogo.
Para compreendê-lo melhor vou citar e comentar um salmo exemplar: 134. Trata-se da troca de sentinela da guarda sacerdotal no Templo. Dia e noite, sucedem-se os turnos de serviço no Templo, na casa do Senhor. Por meio de sacerdotes, seus representantes, o povo se apresenta e está presente diante do Senhor. Talvez sejam menos importantes os variados atos de serviço: cuidar de candelabros e lâmpadas, repor os pães, vigiar os acessos. Provavelmente o mais importante seja representar uma comunidade que é hóspede na terra do Senhor e quer sê-lo na casa do Senhor: “Feliz quem escolhes e aproximas para habitar em teus átrios” (Sl 65,5).
Os turnos estão sob a responsabilidade das famílias sacerdotais, de modo que marquem o ritmo e assegurem a continuidade: “Nunca calam, nem de dia nem de noite” (Is 62,6). O salmo surpreende o momento em que chegam os sacerdotes do turno da noite: a troca de sentinelas. Os que terminam passam a ordem aos que começam: “E agora, bendizei a Iahweh, servos de Iahweh! Vós que servis na casa de Iahweh pelas noites, nos átrios da casa do nosso Deus. Levantai vossas mãos para o santuário e bendizei a Iahweh! Que Iahweh te abençoe de Sião, ele que fez o céu e a terra” (Sl 134).
A função dos sacerdotes é “bendizer o Senhor”, isto é, agradecer-lhe em nome da comunidade todos os benefícios ou bênçãos. Enquanto vizinhos e cidadãos dormem, o coração deles vela na pessoa dos sacerdotes. Essas mãos erguidas para o santuário, ou seja, para o edifício que se eleva dentro do recinto do Templo, levantam e apresentam a comunidade. Como os braços de Moisés que se elevam intercedendo (Ex 17,11s). Deus começou abençoando o povo, o povo responde bendizendo a Deus; assim transcorre o grande diálogo do povo com seu Deus. E não é pequena honra ser interlocutor em tão nobre processo.
O diálogo não termina aí. Deus, que tem a primeira palavra, tem também a última. Por isso o salmo acrescenta um versículo de petição eficaz. Alguém, talvez o chefe do grupo, pede ao Senhor a bênção (como em outra epiclese). Vai continuar assim o diálogo? Sim, mas com uma diferença capital. O homem bendizendo a Deus pronuncia palavras, “bendiz”, exprime sentimentos, não realiza, não executa. Deus, pelo contrário, quando abençoa, pronuncia palavras eficazes: dizendo bem, faz bem. Seu abençoar é beneficência. Ele num princípio pronunciou palavras e “criou o céu e a terra”. Alguém que dando ordens cria o universo, pode com sua palavra de bênção conservar e enriquecer o seu povo.
Daí o ritmo de nossa eucaristia. No final, aquele que fez o céu e a terra, aquele que transformou frutos da terra no corpo glorificado de seu Filho, nos abençoa. Com que bênçãos?
2. Antes de responder, vou completar o salmo citado com alguns textos. Tomo o primeiro do salmo 138, que conclui com uma belíssima jaculatória. O salmo brota como ação de graças do orante, à qual devem unir-se outros povos: “Eu te celebro, Iahweh, de todo coração… Prostro-me para o teu sagrado templo… por teu amor e verdade. Todos os reis da terra te celebrem, Iahweh…” (vv. 1a. 2a. 4a).
É salmo eucarístico. “Dar graças” pode soar como sinônimo de “bendizer”. O orante recebeu diversos benefícios: “Quando te invoquei, tu me escutaste… me conservas a vida… tua direita me salva”. É justo agradecer o fato; e não o é menos esperar o que falta. Como ao homem falta muito para fazer-se, a Deus resta algo a fazer. É isto que pede e espera a jaculatória final: “Iahweh fará tudo por mim: Iahweh, o teu amor é para sempre! Não abandones a obra de tuas mãos!” (v. 8). Ao terminar a nossa eucaristia ou ação de graças, resta a Deus algo a fazer? Será penhor disto e dinamismo eficaz sua bênção conclusiva. O que precede é garantia e fonte.
O outro texto é o final do salmo 90: desabafo ao sentir a caducidade do homem, a brevidade da vida, súplica para que este espaço de existência se encha de sentido. Que a intensidade compense a brevidade: “Que a bondade do Senhor esteja sobre nós! Confirma a obra de nossas mãos!” (v. 17). O ritmo deste salmo é muito diverso da eucaristia. Mas seu final nos leva a observar o conteúdo da bênção.
3. Que bênçãos nos são dadas? Antes de mais nada, as bênçãos concentradas na celebração eucarística. Na renovação do sacrifício de Cristo concentram-se todas as bênçãos que Deus Pai nos deu por meio de Cristo, às quais se refere a carta aos Efésios: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda sorte de bênçãos espirituais, nos céus, em Cristo!” (1,3).
No final da missa abre-se uma comporta para dar saída a este caudal inesgotável de graças, à potência ou energia de um corpo glorificado. A comporta toma forma de cruz e abre-se com som trinitário.
Falar de graças e dons pode dar uma ideia falsa ou limitada. O caudal de água que se derrama pela comporta não é simples massa cúbica de matéria, mas energia que se fará luz, que moverá fábricas, acionará aparelhos, fecundará campos. A bênção bíblica pertence à esfera da energia mais do que à esfera da matéria.
O primeiro capítulo do Gênesis, estilizando a obra da criação, conta a criação dos animais: “Deus criou as grandes serpentes do mar e todos os seres vivos que rastejam e que fervilham nas águas segundo sua espécie, e as aves aladas segundo sua espécie. Deus disse: ‘Que a terra produza seres vivos segundo sua espécie: animais domésticos, répteis e feras segundo sua espécie’ e assim se fez. Deus fez as feras segundo sua espécie, os animais domésticos segundo sua espécie e todos os répteis do solo segundo sua espécie” (Gn 1,21.24-25).
Por que a insistência monótona e hierática “segundo sua espécie”? Porque o autor nos inculca que Deus não criou no princípio todos os animais individualmente, mas somente as cabeças de espécie. E o mesmo aconteceu com os homens. A estes animais, e ao homem, infundiu-lhes como que uma participação de seu poder de criar: o poder de procriar. Tal dinamismo prodigioso é outorgado na bênção: “Deus os abençoou e disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a água dos mares, e que as aves se multipliquem sobre a terra’. Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a’” (Gn 1,22.28).
A bênção não é principalmente entrega de dons, mas entrega de poderes. A fecundidade é a primeira e máxima bênção. Toda bênção de Deus tem algo de genesíaco; mas a glorificação supera o Gênesis.
Quando Eva se vê mãe de um filho, exclama: “Adquiri um homem com a ajuda do Iahweh” (Gn 4,1): Eva é (significa) Mãe dos Viventes.
4. Fecundidade significa antes de tudo geração: “No dia em que Deus criou Adão, ele o fez à semelhança de Deus. Homem e mulher os criou e os abençoou… Quando Adão completou 130 anos, gerou um filho à sua semelhança, como sua imagem…” (Gn 5,1b-2a.3a).
O homem gera um novo homem, que é corpóreo e espiritual. Mas o espírito tem outras formas de fecundidade. Assim; de uma vida fecunda, um escritor ou compositor fecundo. Esse é o sentido da conclusão do salmo 90. Como nossa vida se realiza numa série de obras e empreendimentos invocamos a bênção de Deus para que as faça fecundas: “faze prosperar a obra de nossas mãos”.
Alguns pedem a Deus que lhes dê as coisas feitas ou que as faça ele mesmo. Mais justo é pedir de ordinário que nos capacite para fazê-las. “Foi ele que nos tornou aptos para sermos ministros de uma Aliança nova” (2Cor 3,6). “Portanto, não vás dizer no teu coração: Foi a minha força e o poder de minhas mãos que me proporcionaram estas riquezas” (Dt 8,17).
A eucaristia semanal (também a diária) é uma pausa em nossas tarefas. Quando vamos empreender uma nova etapa, nos inclinamos para receber a bênção de Deus para nossas tarefas: corporais, intelectuais, espirituais, individuais, sociais. No regime de Israel a série soava assim: “Bendito serás tu na tua cidade, e bendito serás tu no campo! Bendito será o fruto do teu ventre, o fruto do teu solo, o fruto dos teus animais, a cria das tuas vacas e a prole das tuas ovelhas! Bendito será o teu cesto e a tua amassadeira! Bendito serás tu ao entrares, e bendito serás tu ao saíres!” (Dt 28,3-6).
A série é bastante concreta para refletir uma sociedade e uma economia, bastante estilizada para funcionar simbolicamente. A cidade e o campo: cultura urbana e cultura agrária; a cidade é “pólis”, mãe da política como convivência social, e o campo é a produção em cadeia organizada. Ambos são a relação entre produzir e consumir. Benditos sejam ambos e sua relação. Os gados são fecundos, para a alimentação e a roupa (Pr 27,26s); são e produzem riqueza. De “pecus” vem “pecunia”; hoje acrescentamos a fecundidade mecânica e inteligente da indústria. A cesta é para recolher, a amassadeira para transformar: não é fábrica uma amassadeira genial de transformação? Sair é começar e entrar é concluir.
Naturalmente, as bênçãos não são única nem principalmente materiais, de bem-estar; são antes de tudo bênçãos “do Espírito”, para a vida cristã.
5. Muito menos se orientam as bênçãos a interesses e vantagens individuais. Seria contradizer o sentido da “comunhão”, do compartilhar.
A bênção que encerra a eucaristia tem forma de cruz. A cruz pode ser bênção? A forma de cruz que a liturgia imprime à bênção está recordando que a fecundidade que brota da eucaristia passa pelo sacrifício do egoísmo. Que o serviço e também o sofrimento ao serviço de outros é fonte de fecundidade porque é abençoado por Deus. Assim voltamos ao começo da celebração, que nos marcava com esta marca de salvação.
Além disso, a bênção se faz invocando o nome trinitário. O texto clássico da bênção de Israel oferece um texto e explica a cerimônia: “Assim abençoareis os filhos de Israel. Dir-lhes-eis: ‘Iahweh te abençoe e te guarde! Iahweh faça resplandecer o seu rosto sobre ti e te seja benigno! Iahweh mostre para ti sua a face e te conceda a paz!’ Porão assim o meu nome sobre os filhos de Israel e eu os abençoarei” (Nm 6,23b-27).
Abençoar aqui é propriamente ação de Deus; os sacerdotes são convidados a invocar o nome do Senhor (uma espécie de epiclese). O nome se pronuncia três vezes.
A invocação que encerra a celebração eucarística também se faz pela invocação do nome de Deus, não três vezes, mas do nome trinitário: A bênção de Deus Todo-poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo, desça sobre vós e permaneça para sempre!
Dia após dia, semana após semana, a nossa vida cristã “cresce e se multiplica” pelo efeito da repetida bênção. Mas o ritmo da existência não deve fazer-nos esquecer a esperança. “Porque para isto fostes chamados, isto é, para serdes herdeiros da bênção” (1Pd 3,9). Como Jacó herdou de Isaac a bênção divina, Isaac de Abraão, assim nós herdamos por Cristo a bênção do Pai. Agora como penhor e promessa; um dia escutaremos: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino” (Mt 25,34).
EPÍLOGO
Em doze homilias comentei algumas secções, vários aspectos da celebração eucarística. Cada um de forma limitada e parcial. Espero que tenham servido ao leitor para compreender melhor e apreciar mais a eucaristia. Mas o melhor fruto dessas reflexões seria despertar nos leitores o desejo de continuar estudando e meditando, e de recorrer para isto a obras mais sérias, documentadas e sistemáticas.
Pe. Luís Alonso Schökel, sj