Publicado em julho-agosto de 2023 - ano 64 - número 352 - pp.: 62-64
27 de agosto – 21º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Por Ir. Márcia Eloi Rodrigues*
A profissão de fé feita por Pedro e o “poder das chaves”
I. INTRODUÇÃO GERAL
Durante o reinado de Ezequias, Sobna tinha o poder das chaves da casa de Davi, isto é, a administração da família real, mas Deus a transfere a Eliacim, com a tarefa de exercê-la como um pai: com solicitude, amor e justiça. Essa mesma tarefa recebe Pedro, o porta-voz da Igreja, que professa sua fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus, e por isso recebe as “chaves” do Reino. Paulo, em sua carta, convida-nos a contemplar a imensidão da riqueza, da sabedoria e do conhecimento de Deus, do mistério de seu amor, revelado em Jesus Cristo para a salvação de toda a humanidade.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Is 22,19-23): “Eu o farei portar aos ombros a chave da casa de Davi”
No meio dos oráculos de Isaías contra as nações pagãs, ouvimos o oráculo contra Sobna, o administrador do palácio, no reinado de Ezequias (2Rs 18,18.26.37). Sobna será destituído de suas funções, despojado das insígnias do poder, que será transmitido a Eliacim, filho de Helcias. O simbolismo das chaves é particularmente sugestivo: o mordomo-prefeito do palácio conservava em seu poder as chaves do palácio real, administrava os bens do rei, tinha a tarefa de admitir ou recusar as pessoas diante do rei, como também a responsabilidade de sua hospedagem.
Eliacim é denominado “pai para os habitantes de Jerusalém”: aquele que dirige a casa, exerce o serviço com solicitude, amor e justiça. Mas também o desempenhará com grande firmeza. Grande esperança é depositada em Eliacim e na forma como ele desempenhará suas funções. Isso porque, diferentemente de Sobna – que não pertencia ao povo judeu nem tinha nada que ver com este (Is 22,16) –, Eliacim, filho de Helcias, pertencia ao povo. Seria, pois, condescendente com o povo que ele iria representar (v. 21), em vez de andar em “carruagens esplêndidas” (Is 22,18) como Sobna, que não conseguia nem disfarçar suas reivindicações de poder. Enquanto Sobna se comportava como uma vergonha para a casa de seu senhor, o rei (v. 18), Eliacim constituiria “um trono de glória para a casa de seu pai” (v. 23).
Esse trecho, que relata um episódio doméstico, prepara-nos para entender melhor o Evangelho proposto na liturgia deste domingo. Define em que consiste o verdadeiro serviço “das chaves”: serviço da autoridade na comunidade, não como um governo despótico, mas como um pai, que exerce sua responsabilidade com solicitude, amor e justiça.
2. II leitura (Rm 11,33-36): Como é insondável a sabedoria de Deus
Esse trecho de Romanos encerra os capítulos 9-11, em que Paulo, em sua reflexão, mostrou o espanto diante do fato de não Israel, mas as nações pagãs terem sido as primeiras a encontrar a salvação pela fé. Adicionalmente, o apóstolo mostrou sua convicção de que Israel, por ser o povo de Deus, seguiria, afinal, o caminho das promessas que lhe foram feitas em primeiro lugar. No final dessa reflexão, Paulo tece belíssimo hino de louvor, reconhecimento e adoração, exaltando o desígnio salvador de Deus pela maravilha e pelo mistério de seu proceder na salvação da humanidade. Nesse hino, ele reconhece que os desígnios de Deus são misteriosos e ultrapassam infinitamente a capacidade de compreensão e de entendimento do ser humano. Os julgamentos ou projetos divinos são descritos como incompreensíveis. São “insondáveis”, “impenetráveis”, “indecifráveis”. Seus caminhos – ou seja, os meios que Deus emprega para alcançar seus propósitos – são descritos como “insondáveis”. Isso significa que sua pegada pode ser detectada, mas é impossível segui-la até o fim. O modo de proceder de Deus não pode ser entendido pelo ser humano. É somente se submetendo a seus julgamentos e caminhos que a humanidade pode provar que eles estão corretos.
Em outras palavras, Deus está para além da imaginação do ser humano; ele é sempre “mais”. Ao ser humano resta somente reconhecer a própria pequenez, os próprios limites e finitude. Em suma, a própria incapacidade de compreender totalmente esse Deus transcendente, desconcertante e incompreensível. O que resta, então, é lançar-se com confiança nos braços de Deus, acolher humildemente sua Palavra e procurar seguir, com simplicidade e amor, seus caminhos. Isso se chama fé! Ter fé é entregar-se confiantemente nas mãos de Deus, mesmo quando não se entende o alcance total de seu projeto, e, a exemplo de Paulo, deixar-se extasiar por esse grande mistério de amor.
3. Evangelho (Mt 16,13-20): A profissão de fé feita por Pedro e as chaves do Reino
O texto do Evangelho nos apresenta duas importantes dimensões do discipulado cristão: a confissão de fé em Jesus, o Cristo e Filho de Deus, e o serviço aos irmãos e irmãs na comunidade de fé. É por meio de Pedro, a quem foi confiada a responsabilidade pelo governo da Igreja, que Mateus nos oferece sua catequese.
Jesus procura verificar junto aos discípulos a compreensão acerca de sua identidade. A primeira pergunta tem em vista saber até que ponto os discípulos estavam cientes da opinião das pessoas a respeito de Jesus. Como resposta, os discípulos apresentam quatro opiniões populares que refletiam as diversas esperanças messiânicas da época. O que, porém, interessa mesmo a Jesus é a compreensão deles, a qual deve diferir das opiniões do mundo. Diante da segunda pergunta de Jesus, Pedro, como porta-voz, mostra que os discípulos vislumbram sua missão de Messias, de Filho de Deus. Então, Jesus confirma Pedro na sua função de porta-voz da fé eclesial e lhe atribui o “poder das chaves”, responsabilidade que assume por sua proclamação de fé messiânica.
A entrega das chaves equivale à nomeação de “administrador do palácio”, como vimos na primeira leitura; aquele que administrava os bens régios tinha a tarefa de admitir ou recusar as pessoas diante do rei, como também a responsabilidade de sua hospedagem etc. Assim, Jesus nomeia Pedro como “administrador” e supervisor da Igreja. Sua resposta de fé, em nome da Igreja, prefigura seu carisma de enunciar a palavra decisiva quando é preciso formular o que a Igreja, de forma inevitável, assume na sua fé. O responsável tem também a última palavra no governo; ou seja, exerce, em nome de Deus, como “mordomo” de Cristo, a disciplina na comunidade. Nesse sentido, Pedro é o “vigário” de Cristo aqui na terra.
Mateus está, portanto, em sua catequese, afirmando que a base firme sobre a qual vai se assentar a Igreja de Jesus é a fé que Pedro e a comunidade dos discípulos professam: a fé em Jesus como o Messias, Filho do Deus vivo. É dessa fé que surge o serviço aos irmãos e irmãs.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Refletir sobre a lógica e o sentido do poder, que consiste em um serviço à comunidade e deve ser exercido com solicitude, cuidado, compreensão, tolerância, misericórdia etc., mas também com a firmeza com que um pai conduz e orienta os filhos.
O texto de Romanos nos convida a refletir sobre Deus, a mergulhar no seu mistério, a perceber que Deus, na sua infinita sabedoria, nos ultrapassa completamente. O verdadeiro crente não sabe tudo sobre Deus, mas abre-se à experiência de deixar-se tocar por seu amor indizível. Deve deixar que o silêncio amoroso de Deus pouse em seu ser, a ponto de abismar-se na contemplação de seu mistério, entregando-se confiantemente em suas mãos.
Reconhecer Jesus como Messias, Filho de Deus, significa aderir à sua proposta de salvação e de vida plena, destinada a todos os seres humanos. Só a partir daí é que a Igreja terá a missão de testemunhar a cada homem e a cada mulher a proposta de salvação que Cristo veio oferecer. É pela fé que o discípulo de Jesus poderá exercer a autoridade na comunidade como serviço aos irmãos e irmãs, no amor e na justiça.
Ir. Márcia Eloi Rodrigues*
*é religiosa do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Possui graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje (Belo Horizonte-MG). É professora de Sagrada Escritura. E-mail: [email protected]