Publicado em março-abril de 2023 - ano 64 - número 350 - pp.: 04-15
Campanha da Fraternidade 2023: Cuidar de quem tem fome.
Por Patriky Samuel Batista*
Sensibilizar a sociedade e a Igreja para enfrentar o flagelo da fome. Pela terceira vez, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) aborda um triste cenário que afeta a vida de milhões de brasileiros e brasileiras. É tempo de cuidar de quem tem fome e refletir sobre os paradoxos e contrastes de um país chamado de celeiro do mundo, enquanto nele crescem os números do desperdício e se multiplicam os que têm fome e sede de justiça. A solução para a superação desse triste contexto está no exercício da fraternidade, da prática do amor que Cristo nos ensinou.
Introdução
Facilmente recordamos que, no início da pandemia sanitária da covid-19, quando a normalidade da rotina mundial foi interrompida, surgiu uma tentativa de narrativa no sentido de apontar razões de esperança, enquanto o número de vítimas crescia assustadoramente. Já não podíamos viver como antes. Era preciso um novo normal. Como seria a vida no pós-pandemia? Uma vez que havíamos percebido que estávamos todos interligados, cabia à humanidade sair melhor daquela crise.
Hoje, passados cerca de três anos do início da pandemia, percebemos que as coisas não caminharam na direção imaginada. De um lado, contemplamos o crescente aumento de doenças emocionais, a crise migratória, a proliferação da violência e das guerras; de outro, multiplicam-se polarizações, a ausência de diálogo, a crescente indiferença e, principalmente, o escândalo da fome, que, com maior intensidade, volta a figurar como triste realidade em nosso país e no mundo. Em muitos aspectos, retrocedemos. Esses são alguns dos inúmeros desafios do tempo presente que clamam a presença dos homens e mulheres de boa vontade. Tal cenário nos chama a atenção para um importante dado: não existem respostas fáceis para desafios complexos. Nem sempre os dramas humanos, em si mesmos, são capazes de nos ajudar a encontrar um novo rumo para a humanidade. Eis a grande pergunta que emerge dessa realidade: O que aconteceu conosco? O que acontecerá se não recuperarmos o mandamento do amor dado por Jesus Cristo – amor que se concretiza em gestos de compaixão, proximidade e cuidado – e, com ele, o compromisso com os pobres? É preciso conversão, vivida à luz da fé pascal, que nos ajude a encontrar um novo rumo para a humanidade. E não somente encontrar, mas também percorrer juntos esse caminho sem perder a sensibilidade e a compaixão, sobretudo por quem passa fome.
Diante do drama da fome, é urgente recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e de solidariedade à qual saibamos dedicar tempo, esforços e bens. Eis o caminho apresentado pelo papa Francisco na Fratelli Tutti (FT 36). Nessa encíclica, o papa ainda chama a atenção para as consequências de um estilo de vida consumista, que faz que o princípio do “salve-se quem puder” seja rapidamente traduzido no lema “todos contra todos”, e isso será pior do que a pandemia (FT 36). “A obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de mantê-lo, só poderá provocar violência e destruição recíproca” (LS 204).
Em 2023, a CNBB promove a 59ª edição nacional da Campanha da Fraternidade, pondo em evidência o tema da fome. Fraternidade e fome: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Com o intuito de sensibilizar a sociedade e a Igreja para enfrentar o flagelo da fome por meio de compromissos que transformem essa situação à luz do Evangelho de Jesus Cristo, a CF ergue pela terceira vez sua voz, chamando nossa atenção para a assustadora realidade da carência de alimentação vivida por uma multidão de irmãos e irmãs, e nos provoca a encontrar respostas criativas para a superação desse cenário. É tempo de cuidar de quem tem fome.
1. A fome é real
Os números da fome no Brasil estão em rápida ascensão, um triste reflexo do contexto de degradação social e de retrocessos institucionais, acentuados pelas consequências da pandemia, que levaram ao empobrecimento da sociedade brasileira. Segundo o Inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia da covid-19 (https://olheparaafome.com.br), em 2022, no Brasil, 33,1 milhões de pessoas não tinham o que comer (https://www.oxfam.org.br/especiais/olhe-para-a-fome-2022/). Eram 14 milhões a mais de brasileiros com fome em pouco mais de um ano; mais da metade (58,7%) da população brasileira convivendo com a insegurança alimentar em algum grau (leve, moderado, grave). O Brasil regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990, com muitos brasileiros incapazes de se alimentar adequadamente. Isso significa que seis de cada dez pessoas (125 milhões da população brasileira) não conseguem acesso pleno à alimentação.
Fruto da indiferença e da desigualdade social, tal como as demais formas de pobreza, a fome existe também porque muitas pessoas deixaram de olhar para seu semelhante. Parece que naturalizamos a fome e normatizamos a indiferença. A fome é triste realidade que atualmente temos diante dos olhos. É impossível não perceber o grito de muitos irmãos e irmãs que não sabem se hoje, enquanto refletimos sobre o tema, terão algo para comer. Os noticiários, as pesquisas, os dados e estatísticas, os inúmeros diagnósticos, a mídia em geral, as redes sociais, os irmãos e irmãs que pedem auxílio nos semáforos das grandes cidades e o aumento das pessoas em situação de rua denunciam que algo não vai bem. A fome vai além dos números e das estatísticas. Ela tem nome, rosto e história. É a sobrevivência e a dignidade humana que estão em perigo. É a dignidade humana que está ameaçada.
Constituindo uma necessidade natural e um poderoso instinto de sobrevivência, a fome possui uma dimensão social que precisa ser enfrentada. Sem alimento, não há desenvolvimento. Sem nutrição, os dons e talentos não se desenvolvem. Sem comida, não há vida. A fome subtrai as energias dispensadas em favor de um mundo mais justo e solidário. Fere a dignidade humana e desfigura a imagem e semelhança de Deus.
A fome é também um escândalo, afirma o papa Francisco, e um crime contra os direitos humanos:
Produzimos comida suficiente para todas as pessoas, porém muitas ficam sem o pão de cada dia. Isso “constitui um verdadeiro escândalo”, um crime que viola direitos humanos básicos. Portanto, é um dever de todos extirpar essa injustiça mediante ações concretas e boas práticas, e mediante políticas locais e internacionais ousadas (FRANCISCO, 2021, tradução nossa).
Para a humanidade, a fome não é só uma tragédia, mas também uma vergonha, insiste o papa Francisco. Em grande parte, é provocada por uma distribuição desigual dos frutos da terra, à qual se aliam a falta de investimentos no setor agrícola, as consequências das mudanças climáticas e o aumento dos conflitos em várias regiões do planeta. Como se isso não bastasse, descartam-se toneladas de alimentos. Diante dessa realidade, não podemos permanecer insensíveis ou paralisados. Somos todos responsáveis (FRANCISCO, 2020b).
No horizonte da fé, as palavras de São Basílio nos ajudam a refletir sobre esse cenário:
O pão que para ti sobra é o pão do faminto. A roupa que guardas mofando é roupa de quem está nu. Os sapatos que não usas são os sapatos dos que andam descalços. O dinheiro que escondes é o dinheiro do pobre. As obras de caridade que não praticas são outras tantas injustiças que cometes. Quem acumula mais que o necessário pratica crime (SOBRE CARIDADE…, 1999).
2. As contradições do “celeiro do mundo”
Durante a era Vargas (1935-1947), surgiu um slogan que incentivou o avanço das fronteiras agrícolas, processo que se concretizou no fim dos anos 1960 e início dos anos 1970: “Brasil, celeiro do mundo”. Hoje esse é um fato em plena consolidação. O Brasil é um dos principais produtores/exportadores de alimentos do mundo. São, em média, 43 milhões de hectares destinados à agricultura e à pecuária. Com base nos resultados alcançados pelo agronegócio nacional já no início dos anos 2000, mais precisamente entre 2003 e 2004, o relatório mundial de commodities divulgado pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) já constatava que o Brasil possuía todas as condições para se tornar o principal produtor/exportador de produtos agrícolas em doze anos.
Segundo dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a soma de bens e serviços gerados no agronegócio chegou, em 2020, a R$ 1,98 trilhão ou 27% do PIB brasileiro. Entre os segmentos, a maior parcela é a do ramo agrícola, que corresponde a 70% desse valor (R$ 1,38 trilhão), enquanto a pecuária corresponde a 30% ou R$ 602,3 bilhões (https://cnabrasil.org.br/cna/panorama-do-agro). O valor bruto da produção (VBP) agropecuária alcançou R$ 1,10 trilhão em 2020, dos quais R$ 712,4 bilhões na produção agrícola e R$ 391,3 bilhões no segmento pecuário. Por fim, em maio de 2022, as exportações brasileiras totais apresentaram elevação de 13,2% em relação ao mesmo mês de 2021. Contribuíram para o resultado positivo as exportações de produtos do agronegócio (+13,8%) e dos demais setores (+12,5%). Nesse mesmo mês, o superávit da balança comercial do agronegócio foi de US$ 13,6 bilhões, enquanto o déficit dos demais produtos foi de US$ 8,6 bilhões; com isso, o saldo da balança comercial total do Brasil foi superavitário em US$ 4,9 bilhões (https://cnabrasil.org.br/publicacoes/boletim-do-comercio-exterior-do-agronegocio-3).
O mesmo não pode ser dito da agricultura familiar no Brasil, a qual é a base da alimentação da população e carrega em si a responsabilidade de colocar alimentos na mesa dos brasileiros e proporcionar renda às famílias do campo. É a agricultura familiar que garante 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros; apesar disso, ela sofre a ausência de incentivos e enfrenta dificuldades, como a falta de conectividade, o acesso limitado ao crédito, o fechamento das escolas no campo, entre outros. Apenas com investimento em conectividade e inclusão digital, o país poderia dar um salto de até R$ 78 bilhões no valor bruto da produção agrícola. No que diz respeito a políticas públicas para a agricultura familiar, mesmo nos melhores momentos do país, os investimentos sempre foram insuficientes (https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2020/09/4878333-desigualdades-no-campo.html).
A agricultura familiar possui um valor que vai além das comparações com as outras modalidades da produção de alimentos. Seu valor é indiscutível! Segundo dados do IBGE (2017), 77% dos estabelecimentos rurais no Brasil – ou seja, 3,9 milhões de propriedades – são classificados como de agricultura familiar e correspondem a 23% da área de todos os estabelecimentos rurais do país. Transformando as informações do Censo de 2017 em valores, conclui-se que R$ 107 bilhões provêm desse sistema de produção, o que equivale a 23% de toda a produção agropecuária brasileira (https://www.conab.gov.br/agricultura-familiar/boletim-agricultura-familiar).
É preciso apoiar a agricultura familiar, que pode cumprir um papel importante para a superação da miséria e da fome. Para isso, deve-se incentivar a produção de alimentos de formas sustentáveis. Os pequenos produtores têm acesso a apenas 14% de todo o financiamento disponível para a agricultura e se concentram em apenas 23% das terras agriculturáveis no país. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em um levantamento realizado em 2014, estimou que as propriedades inferiores a um hectare de terra correspondiam a 72% de todas as propriedades do mundo e apenas 8% dessas se destinavam à agricultura (https://www.politize.com.br/agricultura-familiar/).
Como podemos constatar, ainda vivemos em um país com profundas desigualdades sociais. De um lado, a cada ano batemos recordes de produção de grãos; de outro, são milhões em situação de fome e insegurança alimentar. O que então nos falta? Real compromisso e envolvimento para superar os desafios que favorecem a miséria e a fome. É preciso lavar os olhos com as lágrimas de quem passa fome para ver a realidade, muitas vezes camuflada, que oculta inúmeras contradições. Ver, compadecer e cuidar. Para tanto, é preciso cultivar um coração que se converta ao Evangelho e seja capaz de olhar com sinceridade as necessidades do outro, aprender a repartir, para que ninguém viva com fome ou tenha de recorrer ao lixo para sobreviver com aquilo que foi desperdiçado de nossas mesas. Educar para não desperdiçar e repartir é compromisso de fraternidade. Como é possível que alguém passe fome dentro do celeiro do mundo? São contrastes que desafiam os discípulos missionários de Jesus Cristo. É ele quem nos diz: “Eu vim para que todos tenham vida em plenitude” (Jo 10,10). É ele quem nos diz, ao ver a multidão dos que passam fome: “Eles não precisam ir embora. Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16).
Além desses contrastes, vivemos triste realidade: o desperdício de alimentos. Cerca de 1/3 de toda a produção de alimentos é desperdiçada em todas as etapas, ou seja, 30% de tudo o que é produzido no planeta é totalmente descartado. E quando chegam para os consumidores aqueles alimentos que não possuem uma “boa estética”, são rejeitados, ainda que possuam o mesmo valor nutricional. Isso sem mencionar a quantidade de alimento pronto para consumo que vai para o lixo todos os dias em nossas casas e também nos restaurantes. Nesse sentido, o papa Francisco afirma que
a comida que se descarta é como se fosse roubada da mesa de quem é pobre, de quantos têm fome! Convido todos a refletir sobre o problema da perda e do desperdício de alimentos, para encontrar caminhos e modos que, enfrentando seriamente tal problemática, sejam veículo de solidariedade e de partilha com os mais necessitados (FRANCISCO, 2013).
De fato, é urgente cuidar de quem tem fome e promover a superação das estruturas que a estabelecem. Como recorda São João Crisóstomo: “Não me digais que é impossível cuidar dos outros. Se sois cristãos, o impossível é que não cuideis” (CRISÓSTOMO, 1862, p. 961-962).
3. Cuidar de quem tem fome
Dar de comer a quem tem fome é a primeira obra de misericórdia corporal. Faz parte da identidade cristã. É compromisso com a vida, caminho seguro para a salvação. O Evangelho segundo Mateus afirma que, quando o Filho do Homem vier em sua glória, as nações da terra serão reunidas diante dele e ele mesmo separará uns dos outros (Mt 25,31-46). Nesse dia, receberão o Reino como herança aqueles que lhe deram de comer quando estava com fome; aqueles que lhe deram de beber quando estava com sede; que o receberam em casa quando forasteiro; que o vestiram quando estava nu; aqueles que dele cuidaram quando estava doente e que o visitaram quando estava preso (Mt 25,36). Mas como isso foi possível? Eis a pergunta que lhe fizeram: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer?” (Mt 25,37). Aqui há uma identificação muito forte: o Filho do Homem se identifica com aqueles que passam fome. Cuidar de quem tem fome é cuidar do próprio Cristo.
Um dos princípios da caridade cristã afirma que ela é uma virtude pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas, por ele mesmo, e ao próximo como a nós mesmos, por amor de Deus. Ao mesmo tempo, quanto mais o ser humano faz o bem, mais livre se torna. Não há verdadeira liberdade senão no serviço do bem e da justiça (CIC 1733).
Os pobres, quando amados e acompanhados a partir de uma experiência de fé por parte de quem cuida, são reconhecidos verdadeiramente como irmãos. Eis aqui a identidade de uma autêntica opção pelos pobres, que brota do Evangelho. Optar por eles tem consequência na vida de fé de todos os cristãos, chamados a possuir o mesmo sentir e pensar de Cristo Jesus (Fl 2,5). Por isso, afirma o papa Francisco, “desejo uma Igreja pobre para os pobres. Eles têm muito a nos ensinar” (EG 198). Assim, qualquer tentativa de utilizar os pobres a serviço de interesses pessoais ou políticos está totalmente fora da proposta do Evangelho. Apenas com base em uma proximidade real e cordial é que podemos acompanhá-los adequadamente. Isso fará que realmente os pobres, sobretudo aqueles que passam fome, se sintam, em cada comunidade cristã, como se estivessem em sua própria casa (EG 199).
Na mensagem para a Quaresma de 2021, o papa Francisco afirmou que, a partir do “amor social”, é possível avançar para uma civilização do amor. “Com seu dinamismo universal, a caridade pode construir um mundo novo, porque não é um sentimento estéril, mas o modo melhor de alcançar vias eficazes de desenvolvimento para todos” (FRANCISCO, 2020c). Realmente a caridade é um dom “que dá sentido à nossa vida e graças ao qual consideramos quem se encontra na privação como membro da nossa própria família, um amigo, um irmão” (ibid.). Alguém que é convidado a sentar-se à mesa conosco, e não a ser servido na soleira da casa dos cristãos.
São inúmeras as iniciativas de cuidado para com os pobres e famintos desempenhadas pela Igreja no Brasil, tais como associações, grupos juvenis, pastorais, movimentos e serviços paroquiais, que põem em ação a ordem de Jesus Cristo: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Nesse sentido, a CF-2023 é uma ocasião para recuperarmos tais iniciativas e promovê-las a fim de que o anúncio do Evangelho seja acompanhado por gestos de fraternidade, fomentando a solidariedade guiada pela fé.
Em 2023, pela terceira vez, a fome é tratada pela Igreja no Brasil na Campanha da Fraternidade. A primeira foi em 1975, com o tema “Fraternidade é repartir” e o lema “Repartir o pão”. Era o ano do Congresso Eucarístico Nacional de Manaus. Naquela ocasião, o grande objetivo era promover a fraternidade entre os brasileiros, desde os que conviviam na mesma comunidade local até os distantes, dos quais eram conhecidas só as carências. Essa fraternidade deriva do amor a Deus, Pai comum, e do exemplo heroico de Cristo, morto por todos. Trata-se de fraternidade afetiva e efetiva, que tem inúmeras formas de expressão e deve levar a atitudes concretas e sinceras. Fraternidade é repartir.
Nos textos dessa campanha, foram apresentadas algumas propostas de reflexão para cada um dos domingos do tempo quaresmal, atualmente ainda pertinentes: é preciso refletir sobre o pão que nutre o corpo; o pão da cultura; o pão da amizade; o pão da Palavra de Deus e o pão da vida eterna, que devem ser partilhados hoje.
Também em 1975, São Paulo VI, em sua mensagem para a vivência da CF, afirmou:
Até o fim dos tempos, os pobres estarão “com” Jesus. Eles são seus parceiros, seus companheiros, seus irmãos e irmãs. O cristão, precisamente por ser cristão, deve colocar-se ao lado dos desprovidos. Deve pôr o melhor do seu empenho em assisti-los nas suas necessidades mais urgentes. Não pode fugir de comprometer-se para ajudá-los pelos meios ao seu alcance, para a edificação de um mundo melhor, de um mundo mais justo.
Em 1985, o tema volta pela segunda vez. Novamente estávamos às portas de um Congresso Eucarístico Nacional, que teve lugar em Aparecida, com o lema “Pão para quem tem fome”. O objetivo da campanha era claro: contribuir para motivar a comunidade cristã a assumir sua responsabilidade ante a situação de fome existente no Brasil. Em sua mensagem para a CF-1985, São João Paulo II exortava-nos a viver a campanha com as seguintes palavras:
Vede, irmãos! Nunca a humanidade dispôs de tantos bens e possibilidades, como hoje. No entanto, uma imensa parte dos habitantes da terra, irmãos na humanidade, é atormentada pela fome e miséria. Fome no mundo e fome no Brasil! Sem deixar de reconhecer a complexidade do problema, pode-se perguntar: terá esta tragédia de tantos irmãos nossos explicação somente nas calamidades naturais, ou também obras ou omissões comodistas, egoístas, dos homens contribuem para agravá-las?
Agora, em 2023, logo depois do 18º Congresso Eucarístico Nacional – realizado em Recife, de 11 a 15 de novembro de 2022, sob o tema “Pão em todas as mesas” –, a Igreja no Brasil enfrenta pela terceira vez o flagelo da fome, com o lema que é uma ordem de Jesus aos seus discípulos: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). É vocação, graça e missão da Igreja obedecer a Jesus e cumprir sua ordem.
Os bispos do Brasil desejam, com esta campanha, ajudar-nos a desvelar as causas estruturais da fome no Brasil, bem como identificar as contradições de uma economia que mata pela fome. Para isso, é preciso aprofundar o conhecimento e a compreensão das exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome, acolher o imperativo da Palavra de Deus, que nos conduz ao compromisso e à corresponsabilidade fraterna, e investir esforços concretos em iniciativas pessoais, comunitárias e sociais que levem à superação da miséria e da fome no Brasil. Além disso, faz-se necessário estimular iniciativas no âmbito da agricultura familiar agroecológica e na produção de alimentos saudáveis; reconhecer e fomentar iniciativas conjuntas entre as comunidades de fé e outras instituições da sociedade civil organizada; mobilizar a sociedade para que haja sólida política de alimentação no Brasil, garantindo que todos tenham vida.
Não podemos nos esquecer de que a superação da miséria e da fome foi também objeto da reflexão dos bispos brasileiros na sua 40ª Assembleia Geral, em abril de 2002, quando, ao celebrar seu jubileu de ouro, a CNBB publicou o documento intitulado Alimento, dom de Deus, direito de todos, lançando com ele um mutirão nacional de superação da miséria e da fome.
Durante a pandemia, a Ação Solidária Emergencial da Igreja no Brasil “É Tempo de Cuidar” promoveu diversas iniciativas de solidariedade local, também contribuindo para organizar o serviço da caridade em diversas comunidades eclesiais missionárias. Assim, a Campanha da Fraternidade de 2023 vem para dar continuidade a esse belo serviço à vida, no desejo de atualizar o sonho das primeiras comunidades: “Entre eles ninguém passava necessidade” (At 4,34).
4. “Dai-lhes vós mesmos de comer”
Sugestivo e provocante é o lema escolhido para a CF-2023. Estamos no contexto do primeiro milagre dos pães. Ao cair da tarde, os discípulos se aproximam de Jesus e lhe oferecem um inusitado conselho: “Este lugar é deserto e a hora já está adiantada. Despede as multidões, para que possam ir aos povoados comprar comida!” (Mt 14,15). Também nós estamos sujeitos a esta mesma tentação: despedir quem está com fome. Não tê-los diante dos olhos, para não abrigá-los em nosso coração. Não há expressão mais direta e impactante do que esta: “Eles não precisam ir embora” (Mt 14,16a). Ainda hoje parecem ecoar em nossos ouvidos estas palavras, em face da multidão de famintos que temos diante dos olhos: “Eles não precisam ir embora”. É missão do discípulo de Jesus dar de comer, fazendo da própria existência alimento, oferta de vida e cuidado, tal como fez o Mestre.
Com os cinco pães e os dois peixes oferecidos, aprendemos que aquilo que, em nossas mãos, não seria suficiente para uma família se torna milagre nas mãos do Senhor. Aqui compreendemos que a solução para o problema da miséria e da fome não está na quantidade de recursos financeiros que possuímos. Caso fosse essa a solução, o Senhor teria multiplicado algumas moedas que, com certeza, alguém ali trazia. Aos olhos dos incrédulos, seria ótima solução: multiplica-se o dinheiro e cada um come o que quiser, onde quiser, fazendo o que quiser com as sobras.
A solução está em oferecer a Deus o que temos e somos, promover a fraternidade, sentar-nos como irmãos e partilhar os dons recebidos do Senhor. É preciso aprender a oferecer desde nossa pobreza. “Todos comeram e ficaram saciados, e dos pedaços que sobraram recolheram ainda doze cestos cheios” (Mt 14,20). Como bem nos recorda Santo Ambrósio, “aquilo que o amor faz, o medo jamais poderá realizá-lo” (DAVIDSON,
2022, tradução nossa). Que nosso amor a Deus e ao próximo nos faça solidários na partilha de tudo aquilo que somos e temos.
5. Fome de Deus, sim; fome de pão, não
Se ninguém sofresse com os males da fome, será que estaríamos todos saciados? Na verdade, há uma sede de Deus que habita o coração de cada pessoa. Com o salmista, rezamos: “Minha alma tem sede de Deus e deseja o Deus vivo. Quando terei a alegria de ver a face de Deus?” (Sl 42,3). Não há como não lembrar as palavras do Divino Mestre: “Então o rei lhes responderá: ‘Em verdade vos digo, todas as vezes que fizestes isso a cada um destes mínimos dos meus irmãos, foi a mim que o fizestes!’” (Mt 25,40). Um modo de ver a face de Deus é também reconhecê-la em cada irmão e irmã, especialmente naqueles que passam fome. Olhe as pessoas do seu lado! São elas a quem deve amar.
O pão que sustenta o corpo deve ser acompanhado pelo pão que nutre a alma. Por ocasião da beatificação do Pe. Antônio Chevrier, em 4 de outubro de 1986, São João Paulo II afirmou aos Padres do Prado que “os pobres têm o direito de que se lhes fale de Jesus Cristo. Têm direito ao Evangelho e à totalidade do Evangelho”. Conta a história que, durante a visita apostólica ao Brasil em 1980, São João Paulo II viu, em meio à multidão, um cartaz com os dizeres: “Santo padre: o povo passa fome”. Ele não se conteve e de imediato exclamou: “Fome de Deus, sim, fome de pão, não”. Eis nosso desejo, também expresso naquela oração conhecida de muitos brasileiros: “Senhor, dai pão a quem tem fome e fome de justiça a quem tem pão”.
Conclusão
Não é normal alguém passar fome. Não podemos agir com indiferença, uma vez que nos alimentamos daquele que é o pão da vida. Já nos alertava São João Crisóstomo:
Tu vais participar da Eucaristia? Então, não humilhes teu irmão. Não desprezes o faminto… Quê? Tu fazes memória de Cristo e desprezas o pobre? Tu não ficas horrorizado? Bebeste o sangue do Senhor e não reconheces teu irmão? Ainda que o tenhas desconhecido antes, deves reconhecê-lo nesta mesa… Tu, que recebeste o pão da vida, não faças obra de morte (SOBRE CARIDADE…, 1999).
Dar de comer a quem tem fome é um imperativo ético para toda a Igreja, resposta aos ensinamentos de solidariedade e partilha do Senhor Jesus. Assim nos exorta o papa Bento XVI (2009, n. 27). Além disso, eliminar a fome no mundo tornou-se um objetivo a alcançar para preservar a paz e a subsistência da terra.
Um compromisso que não pode ser esquecido nesse processo de superação da fome é o envolvimento direto na elaboração de políticas públicas, preferencialmente políticas de Estado. A Emenda Constitucional nº 64 inclui a alimentação entre os direitos estabelecidos pela Constituição Federal com aplicação imediata, já que compõe as garantias e direitos fundamentais de cada cidadão, protegendo, assim, as políticas públicas que asseguram alimentação a milhões de brasileiros (Constituição Federal, art. 5º, §1º).
Não se pode correr o risco de ouvir do Senhor: “Eu tive fome e não me destes de comer” (Mt 25,42). É preciso empenho pessoal, comunitário e eclesial, social e político, para superar a fome em nosso país. Os padres do Concílio Vaticano II nos recordaram: “Como são tantos os que sofrem de fome no mundo, o Sagrado Concílio exorta todos, particulares ou autoridades, a que se recordem daquela frase dos Padres da Igreja: ‘Alimenta o que morre de fome, porque, se não o alimentaste, mataste-o’” (GS 69). O Texto-base da CF-2023 nos apresenta diversas iniciativas para pôr em prática as indicações da campanha deste ano. São ações no âmbito pessoal, comunitário e social. Inspirado por estas e outras sugestões, somos chamados a voltar nosso olhar para cada comunidade de fé e aí contribuir para a superação desse cenário à luz da fé em Cristo Jesus.
Referências bibliográficas
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Patriky Samuel Batista*
*é subsecretário adjunto geral da CNBB e especialista em Teologia Pastoral pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]