Março-Abril de 2023
Prezadas irmãs, prezados irmãos, graça e paz!
Na calçada, algo parecido com corpo de gente. Enrolado com uns panos imundos. Move-se. Treme. Se geme, não se ouve. Está encurvado. O cobertor é curto. Temperatura baixa. Chão frio. A vida é fio. E o corpo? Está frio, com certeza.
Avenida movimentada. É o centro e o símbolo do poder econômico do país. Gente importante passa por ali. Parece até desfile de moda. Também se assemelha a formigueiro assanhado.
Ouvem-se os “toc-toc” de sapatos. Todos têm pressa. Uns vão, outros vêm. Os prédios ostentam poder. Tão altos. Tudo muito limpo. Há torres querendo alcançar os céus. Barulho. Muito barulho. Pessoas saem de sob o chão. É a estação do metrô. O movimento é intenso.
O sol ainda não apareceu. Dia enevoado. As lojas abrem-se. Suas vitrines são sedutoras. Anúncios, letreiros luminosos. Tudo é movimento. Apesar do dia embaçado, a avenida não perde seu brilho.
Semáforos. Carros velozes, indo e vindo. Seus vidros são escuros, não se vê quem lá dentro está. Aqui fora não é diferente. Ninguém se vê. Pelo menos é o que parece. A sensação que se tem é de aglomeração solitária. Tropeçam uns nos outros; no entanto, o clima é de indiferença.
O tempo fica mais escuro. No muro, a frase: “Mais amor, por favor!” Começa a garoar. Apressam-se os passos. Abrem-se grandes e pequenos guarda-chuvas, quase todos escuros. O dia segue agitado. E o corpo? Ah, o corpo. Permanece ali. Ninguém se deu conta dele. É mais um ser humano que deixa de existir aos olhos da multidão apressada.
Aquele corpo não derruba bolsa de valores, não influi na cotação do dólar, não deixa o mercado nervoso. O mercado é um ente invisível melindroso. Ele fica nervoso quando aquele 1% mais rico entre os brasileiros teme lucrar menos. Mercado é feito ídolo, é oco. Mas tem seguidores ávidos, ocos igualmente, sem coração e vazios de pensamento.
Aquele corpo é um corpo de fome. Ninguém sabe seu nome. É a estatística dos 19 milhões de brasileiros que vivem em privação extrema de alimentos. Aquele corpo faz parte do retrato da população brasileira, em que mais da metade (55,2%) não faz três refeições ao dia. Aquele corpo é uma multidão de dor. Como disse a escritora e favelada Maria Carolina de Jesus: “A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”. Aquele corpo é um soco no abdome. A fome é um escândalo que viola os direitos humanos.
Aquele corpo é parte do aumento acachapante da população em situação de rua (são mais de 221.869 mil irmãos nossos vivendo totalmente destituídos de sua dignidade, na cidade e sem um lugar no mundo).
Aquele corpo é o corpo de Cristo e nos faz recordar sua ordem: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Os discípulos, outrora, procuraram desculpas. Jesus os acordou para não perderem a hora de fazer o bem. Quem está com fome não pode esperar.
Que nosso proceder esteja impregnado de humanidade, assim como foram as atitudes de Jesus. O Senhor da vida nos dê um coração compassivo e reacenda em nós a chama da solidariedade, para que nossa mente seja capaz de senso crítico diante da realidade, a qual nos pede compromisso; afinal, é tarefa nossa trabalhar pelo Reino de Deus. Enquanto houver um irmão nosso passando fome, é urgente nossa ação. A fome é violência, é crime. Combatê-la é a certeza de que a alegria do céu se faz presente já no hoje de nossa história.
Boa leitura!
Pe. Antonio Iraildo Alves de Brito, ssp
Editor