Publicado em novembro-dezembro de 2022 - ano 63 - número 348 - pág.: 43-46
20 de novembro – Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo
Por Izabel Patuzzo*
A realeza de Jesus: doar a vida pela humanidade
I. INTRODUÇÃO GERAL
Nesta solenidade, a Igreja celebra a realeza de Jesus como o ungido do Pai que ofereceu sua vida no altar da cruz para redimir todos os povos. Para o cristão, ele é o único Rei do universo, porque aceitou a missão que o Pai lhe confiou de construir um Reino de paz, justiça e amor.
A primeira leitura recorda a história da monarquia em Israel. Samuel teve a difícil missão de ungir Saul, o primeiro rei de Israel, e foi o último juiz a liderar o povo escolhido. A transição do sistema tribal para o monárquico não foi pacífica, pois, para muitos fiéis, representou a recusa da soberania do Senhor Deus como o único que devia governar seu povo. A leitura faz pensar em Davi ainda quando era pastor e defendia seu povo e retrata a primeira etapa da liderança do novo rei.
Na segunda leitura, Paulo apóstolo, na carta aos Colossenses, descreve Jesus Cristo como a imagem do Deus invisível, cuja divindade toda a obra da criação reconhece. Ele é a única autoridade admitida pela comunidade de fé, pois, com seu sangue, redimiu a humanidade.
No Evangelho, Lucas relata o último diálogo de Jesus na cruz, quando um dos malfeitores que foi crucificado com ele reconhece sua inocência diante das acusações que lhe foram feitas. Esse malfeitor confessa que Jesus não cometeu nenhum pecado e pede que seja acolhido por ele no seu Reino eterno.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (2Sm 5,1-3)
O texto mostra Davi em Hebron, capital das tribos do Sul de Israel, onde recebe representantes das tribos do Norte, que também desejam aclamá-lo rei de todo o povo. Diante da proposta dos anciãos das tribos, Davi aceita ser rei. Trata-se do primeiro rei de Israel a unir todas as tribos, que estavam divididas pelas disputas entre Saul e Davi.
Os relatores do segundo livro de Samuel pertencem a um grupo de israelitas preocupados em manter a memória do rei Davi, sobretudo do período de prosperidade, quando ainda era próximo do povo. Davi é descrito mais como um pastor de seu povo do que como rei. Ele é ungido para apascentar Israel. Desse modo, sua realeza é apresentada como querida por Deus. Assim, Davi deve ser um representante do próprio Deus no meio do povo. Ele passa a ser lembrado como um mediador entre Deus e o povo, exercendo a função de apascentar, isto é, de cuidar do povo que Deus lhe confia.
Embora o reinado de Davi tenha sido marcado por desvios da Aliança, por conflitos, guerras, conquistas e submissão de outros povos, além de crimes e injustiças, ele foi o rei mais lembrado pelo povo, particularmente por buscar a unidade entre as doze tribos. Resolveu conflitos com alguns povos que atacavam as tribos de Israel e, desse modo, garantiu certa estabilidade política. Ficou marcado como aquele que trouxe a paz para o povo. O Novo Testamento estabelece sua relação com Jesus na perspectiva da descendência. Jesus é o verdadeiro Messias, rei de Israel da linhagem de Davi.
2. II leitura (Cl 1,12-20)
No tempo de Paulo, Colossas era uma pequena cidade na Ásia Menor, situada numa região chamada Frígia, no vale do rio Lico, próximo de Laodiceia e Hierápolis. Toda essa área, que hoje faz parte da moderna Turquia, foi evangelizada por Paulo e pelo ancião João. A maioria dos habitantes dessas cidades, bem como de toda a região, eram gentios, embora historiadores digam que Antíoco III, o Grande (223-187 a.C.), decidiu transportar 2 mil famílias judias da Babilônia para Lídia e Frígia. Atos 2,10 menciona que moradores da Frígia estavam entre os judeus que ouviram o discurso de Pedro em Jerusalém no dia de Pentecostes.
Paulo não foi o fundador da comunidade cristã de Colossas. Epafras, um colossense que havia sido convertido pelo apóstolo em Éfeso, foi quem trouxe a fé para Colossas e, provavelmente, também para Laodiceia e Hierápolis. Enquanto estava preso em Roma, Paulo foi visitado por Epafras, que o informou sobre as perigosas tendências doutrinárias de alguns mestres locais. Tais ensinamentos eram produtos de influências judaicas e pagãs que propagavam particular crença acerca de seres angélicos. Segundo essa doutrina, os anjos tinham controle sobre os assuntos humanos e até mesmo sobre toda a criação. Tal crença pôs em risco a divindade de Jesus Cristo, que passou a ser considerado como um dos anjos, o mais poderoso entre os muitos mediadores entre Deus e o universo. Paulo teve de enfrentar esses erros com vigor e apontar claramente o lugar por excelência de Cristo como aquele que está acima de qualquer anjo ou potestade.
O judaísmo tentou reapresentar essas doutrinas, inserindo-as em suas referências à observação do descanso sabático, às celebrações litúrgicas e à prática da circuncisão para acomodar os prosélitos que as compartilhavam. Em alguns círculos do judaísmo, havia forte crença na mediação dos poderes dos anjos. Paulo, com muita convicção, pregou a primazia de Jesus Cristo como o Senhor de todo o universo. O apóstolo desenvolveu sua catequese sobre a plenitude da divindade de Cristo, esclarecendo que de nenhuma forma sua natureza divina poderia ser compartilhada por qualquer outra criatura. Em Jesus Cristo, Deus revelou toda a plenitude de seu poder. Por sua morte na cruz, Jesus obteve a vitória sobre todas as forças que poderiam controlar o universo.
3. Evangelho (Lc 23,35-43)
O relato da paixão de Jesus segundo Lucas faz parte do destino final do Messias, já profetizado nos cânticos do servo sofredor pelo profeta Isaías. No lugar chamado Caveira, ou Crânio, ele é crucificado entre dois malfeitores, insultado pelas autoridades e pelos soldados romanos e oficialmente identificado como “o rei dos judeus”.
O evangelista faz uma distinção entre a multidão silenciosa, que assiste de longe, e aqueles que dirigem insultos a Jesus, como os chefes dos judeus e os soldados. Na cena seguinte, um dos malfeitores que foi crucificado com Jesus também o insulta. Esse triplo insulto constitui o núcleo da extensão lucana da cena da crucificação, que outros evangelistas não relatam. Em todos esses insultos, aparece o verbo “salvar”. Os insultos dirigidos a Jesus pelas autoridades judaicas e pelos soldados também são relatados no Evangelho segundo Marcos, mas o último foi adicionado por Lucas. Esse completa a tríade de insultos que sublinham a divindade de Jesus, humilhado até a morte de cruz para salvar a humanidade. Ele foi crucificado precisamente como salvador-rei, que deu a vida para a construção de um Reino de amor, paz e justiça. A inscrição na cruz traz o título – irônico aos olhos do mundo – que resume quem, de fato, Jesus é: o Rei eterno de todo o universo. A cruz foi seu trono, expressão máxima de uma vida feita de entrega e amor. É nesse sentido que o relato de Lucas nos convida a entender a realeza de Jesus.
O pedido de um daqueles que foram crucificados com ele – “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino” – é seguido pela resposta: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”. Trata-se do lugar da vida em plenitude e definitiva que Jesus, Rei do universo, concede àqueles que acolhem sua proposta de salvação.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Celebrar a solenidade de Jesus, Rei do Universo, não é convite para fazer memória de um Deus forte, que submete a todos por meio de um poder dominador. Ele não se impõe aos seres humanos por sua onipotência, mas é um Deus que põe toda sua autoridade a serviço da vida, que tem imensa ternura e doa sua vida numa morte humilhante na cruz para elevar a criatura humana.
Sua lógica de realeza se opõe totalmente à lógica dos poderes deste mundo. Diante de um rei despojado de tudo, que faz da cruz seu trono de entrega e amor, somos convidados a repensar que modelo de autoridade buscamos. O discipulado instituído por Jesus não precisa de um território geográfico, não precisa de um poder terreno instituído, como os Estados políticos que conhecemos. A Igreja que nasce aos pés da cruz é chamada a ser comunidade servidora, seguindo o exemplo de Jesus, Rei do universo. É nesse sentido que a liturgia deste domingo nos convida a repensar nossos valores e toda a nossa existência. Diante de um rei pregado na cruz, insultado, sem nenhuma honraria, nenhum aplauso, nenhum exército para defendê-lo, como podemos pôr nossa vida a serviço dos outros com o mesmo despojamento?
Izabel Patuzzo*
*pertence à Congregação Missionárias da Imaculada – PIME. Mestre em Aconselhamento Social pela South Australian University e em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É licenciada em Filosofia e Teologia pela Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo. Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica. E-mail: [email protected]