Publicado em setembro-outubro de 2022 - ano 63 - número 347 - pág.: 62-64
31º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 30 de outubro
Por Marcus Mareano*
Alegria e gratuidade de Deus
I. INTRODUÇÃO GERAL
Há muitas coisas para nos entristecer na vida: más notícias, crises mundiais, catástrofes etc. Todavia, podemos encontrar uma alegria perene mesmo que o meio não concorra para tal. Deus nos oferece gratuitamente essa alegria, consequente ao encontro com ele na oração e na liturgia.
A leitura do livro da Sabedoria anuncia o amor de Deus na criação pela sua principal criatura: o ser humano. O Evangelho narra o encontro de Jesus com o publicano Zaqueu. Os olhares se cruzam e uma conversão visível acontece diante de todos os presentes. A segunda carta aos Tessalonicenses instrui a não entrar em pânico com notícias falsas e manter a firmeza na fé.
Cada domingo é nossa Páscoa semanal. Recordamos a paixão, morte e ressurreição de Jesus na Eucaristia e nos dispomos a uma nova vida nele. Levemos nosso desejo de encontro e de salvação para a celebração e permitamos que nosso ser se encha da alegria da salvação. Deus nos olha com amor e quer nos encontrar para vivermos melhor a fraternidade no mundo.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Sb 11,22-12,2)
O livro da Sabedoria foi um dos últimos textos do Antigo Testamento. Foi escrito em grego, no século I a.C., na importante colônia judaica de Alexandria do Egito. O livro dirige-se tanto aos judeus helenistas quanto aos pagãos que se aproximaram do judaísmo.
O trecho escolhido para a proclamação na liturgia é um poema lindo e reverente ao amor onipotente de Deus, como lemos em inúmeros salmos. O autor demonstra o apreço de Deus pelo mundo criado e quanto este é passageiro e irrisório diante dele, como uma “gota de orvalho da manhã” (11,22). Entretanto, Deus se importa mais com o ser humano, pois ele tem compaixão, ama tudo e não despreza nada (11,23-24).
Seguem-se duas perguntas eloquentes: poderia algo existir se Deus não tivesse querido? Como uma existência se manteria, se não fosse chamada por Deus? (11,25). Tais perguntas demonstram o valor das coisas criadas e sua origem divina. A resposta é o amor de Deus, que é “Senhor, amigo da vida” (11,26).
Enfim, o autor do livro revela a face misericordiosa de Deus. Assim como ele não quer a morte e prefere a vida da criação, também não quer a morte do pecador, e sim que se converta e viva (Ez 18,23). Deus dá ao ser humano a oportunidade para o arrependimento e para se afastar do mal (Gn 2,7; Sl 104,29; Jó 27,3).
2. II leitura (2Ts 1,11-2,2)
A segunda carta aos Tessalonicenses surgiu em uma situação menos conhecida do que a primeira. Ela parece ter sido escrita por um discípulo e assinada por Paulo (3,17). Descreve, em linguagem altamente simbólica, à maneira dos “apocalipses” judaicos, as coisas que devem acontecer antes da parusia.
O texto selecionado para a liturgia deste domingo aconselha a comunidade e corrige certas opiniões errôneas, difundidas entre os tessalonicenses. O autor recorda que não cessou de orar pelos irmãos e irmãs na fé, para que Deus os faça dignos do seu chamado e se cumpra a glorificação de Cristo por meio deles.
Em seguida, vem o tema central da carta: não se abalar por pretensas revelações (2,1-12). Na celebração, apenas tomamos a introdução ao tema (2,1-2). Esse trecho consiste em um pedido, relacionado com a vinda de Jesus: que os membros da comunidade não se alarmem com alguma inspiração, discurso ou carta afirmando que Jesus teria chegado. A parusia ainda está por acontecer, e isso não se dará por meio de falsas mensagens perturbadoras.
Já naquele tempo havia pregadores aproveitadores, que se valiam das situações para espalhar pânico e ganhar a confiança das pessoas. A mensagem da segunda carta aos Tessalonicenses é de ânimo e de esperança para a segunda vinda de Jesus. É também um convite ao compromisso de fé e à vivência do tempo presente com alegria e serviço fraterno.
3. Evangelho (Lc 19,1-10)
Para completar a viagem até Jerusalém, Jesus poderia ter seguido o caminho mais curto, passando entre as montanhas. Em vez disso, desceu até o rio Jordão, caminhou até Jericó e tornou a subir para Jerusalém. Assim como o desvio pela Samaria (9,52-56) foi intencional e profético-missionário, o desvio por Jericó, ao sair da Samaria, tinha razões muito fortes do ponto de vista catequético e evangelizador.
Então, a comitiva de Jesus atravessa Jericó, iniciando o caminho que sobe a Jerusalém. Nesse trajeto, há um homem chamado Zaqueu, “chefe” dos coletores de impostos, um publicano “muito rico”. Esse tipo de gente era frequentemente considerado como exemplo de pecador (5,30; 7,34; 15,1; 19,2-7).
Zaqueu foi descrito como chefe muito rico para intensificar a mensagem de transformação de Jesus. Um chefe dos publicanos era alguém que trabalhava para os romanos e, por isso, era visto pela população local como um “colaborador” da exploração do império. Além disso, provavelmente a riqueza de Zaqueu tinha sido adquirida com corrupção, abuso de poder e injustiça.
Ele já ouvira falar de Jesus e, sabendo que ele estava passando pela cidade, quis ver quem era esse homem. Queria conhecê-lo, como o cego na entrada da cidade (18,35-37), mas seu problema era outro: Jesus caminhava no meio de grande multidão, e Zaqueu era de baixa estatura. Contudo, não desiste: corre à frente e sobe em um sicômoro (uma espécie de figueira).
Jesus olha para o alto e enxerga Zaqueu. Em vez de rejeitá-lo ou temê-lo, chama-o pelo nome e diz: “Hoje devo ficar na tua casa” (v. 5). O olhar de Jesus alcança o desejo de Zaqueu. Surpreendido e cheio de alegria, o publicano desceu e levou Jesus para sua casa. Acolher em casa significava intimidade, comunhão e amizade.
Em contrapartida, alguns “puritanos” daquele tempo (fariseus e escribas), como em outras oportunidades (5,30; 15,2; 12,33), resmungavam porque Jesus foi hospedar-se na casa de um pecador público. Como chefe dos publicanos, Zaqueu era uma espécie de pária. Ele se situava entre o poder imperial e a população descontente, e, ao viver na corrupção, sua situação não tinha uma saída fácil. Surpreendentemente, com as palavras mais simples, Jesus põe-se ao seu lado. As pessoas murmuram contra Jesus, porque ele fez o que ninguém jamais teria feito.
Zaqueu reagiu ao gesto de receptividade de Jesus. De pé, declarou em alta voz: “Senhor, eu vou dar a metade dos meus bens aos pobres e, se prejudiquei alguém, vou devolver quatro vezes mais” (v. 8). Zaqueu mudou! Com muita rapidez, não apenas acolheu Jesus, mas muitos outros. Jesus abriu a porta do coração e da casa de Zaqueu e traçou grande estrada de acesso à sua casa. A conversão se evidenciava diante de todos os presentes, não só por meio de palavras, mas também de ações.
Jesus responde ao anúncio de Zaqueu, proclamando a salvação para sua casa (família) e afirmando que aquele homem também era um filho de Abraão (v. 9). Jesus acolheu Zaqueu e foi por ele acolhido. Zaqueu procurava por Jesus e foi encontrado por ele no alto de uma árvore. A declaração final de Jesus põe Zaqueu novamente em comunhão com seus contemporâneos e na condição de irmão, pois era, como os outros, um filho de Abraão.
Por fim, a cena se conclui com a alegria da realização da salvação, pelo encontro do que estava perdido (15,7.10.24.32). Jesus veio para procurar os excluídos de Deus e das pessoas. A salvação oferecida por Jesus gera uma transformação, observada na alegria ímpar presente em Zaqueu. Ademais, a mudança se confirma com a nova atitude de Zaqueu, que, de explorador, passa a ser um irmão que partilha os próprios bens.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Alegria e misericórdia são palavras que se destacam na liturgia deste domingo e contribuem para nos conduzir até o coração do Evangelho e ao próprio coração de Deus.
Como Zaqueu, somos pequenos diante daquele que queremos ver e, para isso, precisaremos subir. Somos pequenos de coração e precisamos nos abrir para a verdadeira grandeza que é Deus, conforme lemos na primeira leitura. Queremos ver o bem por excelência, que é Jesus; porém, antes de ver, Zaqueu é que foi visto por Jesus. Esta é a grande beleza de Deus: ele nos vê antes que o vejamos. Todas as vezes que voltarmos nosso olhar para o Senhor, tenhamos a certeza de que será ele quem nos olhará antes.
Precisamos estar atentos, pois, se estivermos distraídos, como estavam os tessalonicenses, esse olhar nos escapará. Jesus vê Zaqueu e o chama pelo nome. Quão maravilhoso é quando alguém sabe nosso nome – o símbolo da nossa existência, da nossa história, de tudo o que carregamos nesta vida! Zaqueu se assusta ao encontrar o olhar de Jesus. Para este, não importam os pecados, mas a abertura de coração. Depois de encontrar o olhar de Jesus, não poderemos continuar vivendo como vivemos até agora.
Zaqueu resolve se desfazer de tudo que o prendia. Precisava ser livre, mas não apenas no sentido material. Naquele momento, faz a grande experiência de liberdade – uma das mais lindas que o ser humano pode fazer –, quando olha para tudo que o cerca e tem a consciência de que nada daquilo o prende. Só Deus lhe basta! Diante dessa verdade maior, todas as outras experiências são relativas.
Marcus Mareano*
*é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]