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Publicado em número 134 - (pp. 23-26)

Os carismas que renovam a Igreja

Por Dr. Renold Blank

I. CARISMA, SERVIÇO E COMUNIDADE

Quem fala em carisma, hoje, quase automaticamente pensa também em sua contraposição, a instituição. Carisma contra instituição. Espontaneidade contra normas e leis, relações pessoais contra autoridade e rigidez.

Será que tal contraposição corresponde à verdade? Será que a instituição é de fato a morte do carisma, de tal maneira que uma revalorização do carisma nos leva, necessariamente, a uma rejeição das instituições existentes? Não é fácil responder a tal pergunta com um simples sim ou não.

A dicotomia entre os profetas e os defensores da lei marca todas as páginas do Antigo Testamento. As dificuldades que Jesus Cristo sentiu com os representantes da instituição religiosa são conhecidas; e as dificuldades dos profetas atuais também.

Mas apesar de tudo isso e contra a tentação de dar uma resposta simplista — e consequentemente falsa — devemos voltar à nossa pergunta inicial: Será que a tal contraposição corresponde à verdade?

Para acharmos uma resposta a essa questão, vale a pena voltar às origens das comunidades cristãs e às respostas dadas por são Paulo a estas comunidades.

O artigo “Dos ídolos mudos ao projeto de Deus — Os carismas em 1Cor 12-14” (VP, nº 134, mai.-jun., 1987, pp. 2-11) já mencionou algumas das dimensões essenciais daquelas respostas. Sintetizando aquilo que foi escrito ali, e tentando resumir as ideias de Paulo, deve-se dizer que, para ele, não existe carisma que não seja ligado a uma dimensão profundamente comunitária. E também não existe comunidade onde os membros não sejam carismáticos.

 

1. “A cada um é dada a manifestação do Espírito” (1Cor 12,7)

A comunidade cristã se caracteriza essencialmente pelo fato de o Espírito se manifestar em todos os seus membros.

A grande pergunta é, agora, em que sentido e com qual objetivo o Espírito dá a todos os membros da comunidade os seus dons especiais — quer dizer, os carismas — de tal maneira que todos eles se tornem carismáticos, cheios do Espírito Santo.

Não é para que agora eles se orgulhem perante os pagãos, os não cristãos, os ateístas, aqueles que não creem ou que não participam mais da comunidade; nem perante o Zezinho ou o João, cuja inspiração aparentemente se esgota na não compreensão de tudo aquilo que é inspiração. Também não receberam seus carismas para que um compare seu dom com aquele do irmão, dizendo: “O meu vale mais”, “o meu é mais importante”, “o meu me dá o poder, o direito de mandar sobre vocês e o direito de dirigir!”. Palavra de Jesus: “Quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês” (Mt 20,26).

Eis a norma e o grande lema para todo e qualquer carisma.

 

2. Servir!

Não há carisma para si ou para um pequeno grupo; carisma só há para servir à comunidade, para servir aos homens, aos irmãos, aos amigos e aos inimigos. Carisma que não quer servir, não serve para nada! Eis o núcleo da definição de carisma, formulada por são Paulo em suas cartas. Cada um na comunidade cristã tem seu carisma, e cada qual recebeu um carisma para colocá-lo a serviço da comunidade.

 

CARISMA → SERVIÇO → COMUNIDADE

 

Assim é superado o perigo de uma dicotomia entre instituição e carisma. Na comunidade brota uma infinidade de dons, de carismas, mas ela não se apresenta como um bloco monolítico, não se apresenta como uniforme ou uniformizada; pelo contrário, reflete um pluralismo dinâmico.

Todo esse pluralismo, porém, é unificado em torno do mesmo objetivo: servir à comunidade.

 

II. A GRANDE META: O REINO DE DEUS

Quando ampliamos o conceito, lembrando-nos de que o primeiro objetivo da comunidade deve ser a construção do Reino de Deus, então os carismas também vão se definir a partir deste último grande parâmetro, de tal maneira que podemos dizer o seguinte: A variedade e diversidade dos carismas dos fiéis de uma comunidade têm como último objetivo servir para que o Reino de Deus se realize.

Daí surge uma constatação primordial: O que conta é o Reino de Deus. E para que este Reino possa se realizar, o Espírito está agindo em todos os membros do Povo de Deus, não somente em alguns, e não somente em certos privilegiados. Ele age em todos. Mas está agindo de maneira diversificada, de tal forma que a realidade deste Povo de Deus se apresenta numa pluralidade infinita (cf. Puebla 244).

Todos, porém, participam do mesmo Espírito que lhes deu seus dons específicos conforme sua vontade, para que eles coloquem esses dons a serviço do Reino na comunidade, conforme as necessidades dessa comunidade.

 

III. OS CARISMAS SURGEM DAS NECESSIDADES

O carisma de cada um não é, em primeiro lugar, um dom para a satisfação de aspirações pessoais. Também não é uma oportunidade para realizar meu gozo religioso pessoal ou grupal. O carisma de cada um tem profunda dimensão comunitária. É a partir dessa dimensão comunitária dos carismas que surge a Igreja como comunidade eclesial. Nela se devem organizar os vários dons que o Espírito Santo suscitou, de tal maneira que a variedade infinita destes dons seja preservada, conservada e respeitada; mas ao mesmo tempo se deve zelar para que esta variedade infinita seja coordenada de forma que sirva para o crescimento do Reino de Deus.

Acostumados, por uma tradição de muitos séculos, a acentuar cada vez mais e de maneira exagerada a uniformidade, nos sentimos atualmente ameaçados em nosso pensamento pastoral por um duplo perigo. De um lado, a tentação de superestimar a uniformidade às custas da pluralidade; de outro, a tentação de rejeitar toda coordenação e de defender uma espontaneidade carismática total, onde cada um se comporte unicamente conforme seu critério carismático pessoal.

Com base nas considerações acima expostas sobre a interligação entre carisma, serviço e comunidade, as duas atitudes mencionadas devem ser questionadas a partir do modelo daquilo que Paulo mostra como sendo Igreja e como sendo comunidade daqueles que têm fé em Jesus Cristo.

 

IV. QUESTIONANDO AS TENTATIVAS DE UNIFORMIZAÇÃO

Os defensores de uma uniformidade monolítica me permitem a seguinte pergunta: Irmãos, por que vocês têm tanto medo? É possível que vocês não acreditem que Deus está agindo com seu Espírito na Igreja, de tal forma que cuidará dela para que não se perca?

É possível que vocês tenham esquecido que a manifestação do Espírito, já na primeira comunidade dos apóstolos, não era uma brisa suave, mas uma tempestade?

É possível que vocês tenham esquecido que a grande luta de nosso Senhor Jesus Cristo era exatamente com os representantes do sistema religioso estabelecido e uniformizado de sua época, com aqueles representantes de uma linha uniformizante que queria amarrar tudo dentro dos limites da Lei e do Direito Canônico e Eclesial da época?

É possível que vocês tenham esquecido que Jesus relativizava, de maneira escandalosa, todas as instituições e todas as santas tradições em nome de uma liberdade dos filhos de Deus.

É possível que vocês tenham esquecido tudo isso, optando pela mentalidade do Grande Inquisidor do romance do Dostoiéwski; uma mentalidade que, no fim rejeitaria até o próprio Jesus se ele aparecesse agora de novo no meio de nós, com sua mensagem de liberdade escandalosa, com seu perdão escandaloso, que não exclui ninguém, aceitando até aqueles que o sistema religioso estabelecido rejeitou, fossem eles adúlteros ou publicanos, casais divorciados ou padres casados.

A uniformidade não era o objetivo de Jesus!

O que ele anunciava, ou aquilo pelo qual ele lutava, era o Reino de Deus, este Reino que se pode realizar por uma imensidade de caminhos. Os construtores desse Reino, desde o início, não eram um grupo uniforme, mas uma comunidade formada de tendências variadas e divergentes, como Lucas nos mostra nos Atos, usando a imagem dos muitos povos de muitas regiões que ouviram o primeiro sermão de Pedro no Pentecostes. Uma comunidade pluralista, com culturas muito distintas e experiências de vida totalmente diferentes.

Mas todos eles ouviram Pedro falar em sua própria língua, e sem abdicar de seus costumes diferentes e sem adotar uma única cultura uniforme, formaram uma comunidade com o mesmo objetivo, apesar da pluralidade: construir o Reino de Deus. Nesse caminho, não se agarraram à ordem religiosa estabelecida e a um imobilismo pagão; não, pelo contrário, conforme o modelo de um Deus que sempre se tinha declarado inimigo do imobilismo, conforme o modelo deum Deus migrante, a caminho, que incentivou os seus adeptos para que ateassem fogo no mundo e cuidassem dele para que permanecesse visível. Assim, as primeiras comunidades eram os grandes inovadores, os grandes reformadores, os grandes contestadores de tudo aquilo que defendia o imobilismo e a uniformização.

 

O vento sopra onde quer (Jo 3,8)

A grande tentação do sistema farisaico, contra o qual Jesus Cristo se opunha, era sempre esta: sufocar o Espírito dentro de estruturas estáticas, sejam elas ritos, paróquias, leis ou instituições eclesiásticas. E para todos os representantes dessa linha de pensamento e conduta permanece válida a grande advertência de Paulo: “Não extinguir o Espírito” (1Ts 5,19).

 

V. QUESTIONANDO O INDIVIDUALISMO

Com esta colocação, porém, beiramos os argumentos daqueles outros grupos, defensores de uma liberdade carismática total, que, em nome dessa liberdade, exigem o direito de uma atuação individual, rejeitando toda e qualquer intervenção.

E também a esses irmãos que se deve dirigir uma pergunta não menos séria do que a anterior: A quem serve esse seu individualismo religioso, e para que serve? Serve ao Reino de Deus, assim como Jesus o compreendeu? É possível que vocês compreendam religião e fé de novo à maneira dos séculos passados, como primordialmente individuais? Não era essa também a religiosidade dos fariseus, contra os quais Jesus Cristo usava palavras muito fortes?

É possível que vocês tenham esquecido que a pregação de Jesus Cristo acentuava sempre a dimensão comunitária, ou, se quiserem, a dimensão social da fé? Para que servem os carismas, se não servem à comunidade, conforme a grande exigência de Paulo?

Não me digam que, purificando a si mesmo, o homem se prepara para o depois, e que, sendo preparado, pode começar seu trabalho no mundo. Esta é a atitude dos essênios que se julgaram os inspirados e se separaram do povo. Jesus não os justificou. Vivendo no meio dos homens, ele anunciava a vinda do Reino de Deus através de palavras e atos. E ele se identificava tanto com os homens, que os piedosos da época chamaram também a ele de pecador e de “comilão e beberrão” (Mt 11,19).

Contra os argumentos desses piedosos de todos os tempos, Jesus Cristo nos ensinou que a santificação individual não é a última meta de uma vida cristã.

O objetivo último da vida cristã é o trabalho para a vinda do Reino de Deus. Este Reino de Deus, porém, tem uma dimensão profundamente social e não individual. E a santificação individual se fará — talvez — no decorrer do trabalho pelo Reino, em favor de todos aqueles que sofrem.

Eis o campo de atuação para os meus carismas, e também para os do irmão. Nossa primeira tarefa é santificar o mundo, e não santificar a nós mesmos. E contra o grande erro de que eu vou santificar o mundo depois de ter santificado a mim mesmo só se pode repetir aquilo que sempre foi o eixo da pregação de Jesus: o mundo não será santificado só por um grupo de santos, mas pela grande comunidade dos pecadores, que, tentando trabalhar pelo Reino de Deus, podem esperar que Deus não se preocupe muito com os seus pecados, mas muito mais com aquilo que fizeram para seus irmãos, conforme Mateus nos mostra na sua grande narração sobre o Juízo Final (Mt 25,31-46).

Este trabalho pelo Reino de Deus é o trabalho de toda a comunidade e, como o acentuou são Paulo, os carismas dos membros dessa comunidade só valem enquanto postos a serviço da própria comunidade. Comunidade, porém, é o contrário do individualismo pessoal ou grupal. Comunidade significa participação.

 

VI. COMUNIDADE É PARTICIPAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DO REINO

Numa comunidade cristã, toda participação se orienta pelas grandes diretrizes formuladas e vividas por Jesus Cristo. E quando lemos os relatos da vida de Jesus, percebemos que sua ação visava em primeiro lugar à transformação de uma situação que ele julgava estar em oposição ao plano de Deus. O principal apelo aos discípulos era, consequentemente, orientado para esta tarefa: A transformação do mundo! “Vocês são o sal da terra!” “Eu envio vocês como ovelhas no meio de lobos!”. O campo de ação do cristão é aqui. O campo de ação do cristão é a transformação do mundo, e sua transformação pessoal se realizará, talvez sem que ele mesmo o perceba, no curso do trabalho missionário que realiza, pondo seus carismas a serviço dos irmãos.

Denunciando todas as situações contrárias ao plano de Deus; anunciando a Boa-Nova de Jesus Cristo; anunciando que o nosso Deus é um Deus que não optou pelos poderosos, mas sim pelos fracos e injustiçados; que é um Deus de misericórdia e não de condenação, um Deus que quer a vida e que se declarou contrário a todas as situações de morte: eis o campo de ação para nossos carismas.

Não fazê-lo de maneira isolada, mas coordenada, dentro da grande comunidade daqueles que têm fé, sendo membro do Povo de Deus e sabendo que todo este povo é um povo de carismáticos.

 

VII. DESENVOLVER OS CARISMAS

Esta nossa vocação carismática faz parte implícita do grande sacramento de iniciação que chamamos de Batismo. É a partir dele que cada um de nós recebeu a vocação e a tarefa de agir como profeta, como sacerdote e como dirigente do povo, indo em frente à maneira de um rei. Eis o fundamento de todos os nossos carismas. O fundamento para aquela transformação radical de vida, da qual falou Pedro cheio do Espírito Santo na ocasião de sua primeira grande pregação. Mas, como já foi dito, essa transformação de vida não se pode esgotar numa atitude de elitismo individual ou grupal; ela também é um processo. Isso quer dizer que não acontece assim, de maneira automática. O Espírito Santo não age em mim quando fico passivo, aguardando que ele me transforme. O Espírito Santo e seus dons carismáticos fazem parte de minha vida e, como tal, fazem parte do processo dinâmico desta vida. Os carismas, por assim dizer, fazem parte de minha vida não como dons acabados, prontamente desenvolvidos. Eles são mais como sementes, prontos para se desenvolver. E eles se desenvolverão no campo de ação, não no quarto fechado e bem protegido. Também aqui devemos superar uma visão individualista e de certa maneira mítica da vida religiosa. A partir do momento que compreendermos que os carismas são dons do Espírito Santo, destinados não a mim, mas para o serviço à comunidade, para o serviço ao mundo, a partir desse momento compreenderemos que o Espírito não deseja pessoas passivas que, fechando os olhos, querem gozar do sentimento de sua presença dentro de si próprias.

O Espírito Santo, pelo contrário, é um Espírito de ação. Dos nossos louvores ele não precisa; mas o nosso agir, ele o quer. É para isso que nos convoca, incentiva e chama. É para isso que nos dá seus dons!

Sua voz é mais forte nos acontecimentos e nas necessidades que nos provocam para que coloquemos em prática nossos carismas. Onde existe necessidade, aí ele está. Isso significa que aí existem pessoas com os carismas necessários.

Nossa tarefa é só descobrir esses carismas e dar-lhes oportunidade para que possam se desenvolver, não de maneira desordenada — isso não é carisma — mas de maneira coordenada, respondendo às necessidades que aqui e agora se fazem sentir na comunidade cristã.

É na descoberta e atuação desses carismas que precisamos daquele Espírito de inovação e liberdade que não tem medo das coisas novas e dos passos jamais dados. Pois a Igreja não é um corpo estático e cimentado para todos os tempos; pelo contrário, a Igreja se revela cada vez mais como o grande e dinâmico acontecimento do Espírito Santo. Uma comunidade de pessoas comprometidas com a causa de Jesus, sempre a caminho e sempre se renovando, de tal maneira que crie as tarefas conforme as necessidades surgidas e os carismas existentes, sem medo e sem misticismo, sabendo que, como diz Pierre Gaune, a fonte dela não é uma instituição sagrada, mas o fogo e o grande vento do Espírito Santo.

Dr. Renold Blank