Durante o 6º Encontro, ocorrido de 22 a 24 de julho de 1986, VIDA PASTORAL teve a oportunidade de colher alguns depoimentos significativos das CEBs em outros países da América Latina. As pessoas que nos prestaram esses depoimentos pediram-nos para que seus nomes não fossem publicados. Entrevistas concedidas a Pe. José Bortolini e Ir. Rosana Pulga.
Na Colômbia, as CEBs são completamente censuradas pela Conferência Episcopal Colombiana. Ela condenou esse movimento em nosso país. Estão tentando fomentar o crescimento de assembleias familiares, com uma linha não libertadora, mas de resignação. Sacerdotes que trabalham com o povo, que entregam suas vidas a serviço de comunidades, são perseguidos, psicologicamente torturados, submetidos a julgamentos de até quatro horas, sem oportunidade de defesa. São submetidos a constantes julgamentos que os debilitam e angustiam. São tratados como indignos, como opróbrio da Igreja; se continuam em seu trabalho popular, suas paróquias lhes são retiradas e são substituídos por outros que combatem o trabalho anterior.
Alguns padres tiveram que sair da Arquidiocese de Medellín por esses motivos. Alguns padres são de tal forma perseguidos que até seus quartos são revistados, para examinar livros. E, apontando para cartazes de D. Romero, perguntam com desprezo: “É seu novo santo?” Boff, Frei Betto, Gutiérrez, Casaldáliga são proibidos à leitura dos sacerdotes.
Fomenta-se a leitura do Evangelho, mas não a da Bíblia, em vista do caráter libertador do Povo de Deus que ela possui. Ela levanta comunidades. Isso não é conveniente para os critérios da hierarquia. Há uns quatro anos, catequistas da roça foram massacrados, assassinados. Cinco jovens foram sentenciados contra uma árvore, a cinco metros de sua casa, por grupos paramilitares de apoio aos latifundiários.
Os que carregam a Bíblia são vistos como subversivos.
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A partir de 1978, a Igreja da Guatemala foi muito perseguida. Isso se agravou em 1980/1981, quando temos já uma perseguição declarada. Vários padres e centenas de catequistas são assassinados. Uma diocese inteira foi “fechada” porque tanto o bispo como os sacerdotes tiveram que se exilar. Inicia-se uma etapa na qual ter uma Bíblia é considerado subversivo. Isso se dá tanto na roça quanto nas periferias das cidades, onde religiosas e sacerdotes tiveram que abandonar suas paróquias.
Embora atualmente a perseguição não seja tão forte, há por parte da Igreja certo receio em se manifestar. Por isso, a igreja dos pobres é uma igreja escondida: as pessoas se reúnem em grupos de três ou quatro e refletem sobre a Palavra de Deus e sobre o como ela está presente em sua vida cotidiana. Os grupos não podem ser mais numerosos e, menos ainda, podem se reunir nas igrejas.
As comunidades de base não contam com o apoio da hierarquia. É por isso que se trata de um trabalho escondido.
Na roça, a situação é pior ainda, pois não é possível reunir um grupo de pessoas, tendo em conta que lá existem patrulhas de defesa civil, há um grande número de militares, de “orelhas”, por isso o povo não pode se reunir.
Simulando fazer visitas nas famílias é que podem partilhar a Palavra. Quando o padre quiser ir celebrar a missa nesses lugares, tem que fazê-lo com a presença de um membro do exército que controla o que se diz e o que é feito durante a missa. Nesses lugares, que são chamados de “polos de desenvolvimento”, já não há confissão, porque houve casos em que pessoas foram se confessar e a seguir foram torturadas para se saber delas o que tinham dito ao sacerdote. Por isso, os padres preferem não atender às confissões e as pessoas não vão se confessar, para evitar mortes.
Chegou-se a tal ponto que em certa paróquia um santo foi vestido com o uniforme do exército. Isso para ver até onde chegaram! Conventos e casas de religiosos foram confiscados, e aí as pessoas foram torturadas e mortas.
Há também comunidades que vivem nas florestas e montanhas do país. São pessoas que não quiseram buscar refúgio no México e nem se submeter a morar nos “polos de desenvolvimento”. Essas pessoas sobrevivem nas condições mais desumanas, comendo raízes… Porém, estão firmes em seu compromisso de fé. Embora não tenham acompanhamento pastoral, há, no meio deles, catequistas que conseguiram sobreviver e fazem celebrações, batizam, presidem os casamentos.
Vivem em comunidade e produzem comunitariamente. Há, entre eles, um compromisso muito sério.
Na roça, a partir de 1980, inicia uma campanha de massacres nos povoados indígenas dos planaltos do país. Os militares chegavam aos povoados e começavam a vasculhar toda casa ou rancho que encontrassem. E se encontrassem neles Bíblias, matavam as pessoas. Se as pessoas estivessem celebrando nas igrejas, massacravam-nas ali mesmo e a seguir as queimavam. Isso fez com que o pessoal fugisse para os montes para poder partilhar a Palavra. Tiveram que esconder suas Bíblias debaixo do chão, para que quando chegasse o exército não as encontrasse e não os matasse.
Atualmente a Bíblia latino-americana continua sendo considerada comunista, uma Bíblia subversiva. Por isso as pessoas têm medo de possuir essa Bíblia, pois quem a possui é fichado.
Mas mesmo que lhes tirem a Bíblia escrita no papel, eu creio que ela continua escrita na vida dessas comunidades, em seu caminhar, na fé que eles possuem de que chegará o dia em que a liberdade irá chegar, e na confiança que têm no Senhor que os guia na caminhada. Para eles, tanto Deus como seus filhos representam a esperança de dias melhores. Por isso, em primeiro lugar estão Deus e seus filhos. São comunidades muito firmes em sua fé, como eles mesmos dizem: “Preferimos que nos matem a deixar de seguir o Evangelho libertador”.
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A Bíblia é uma mensagem de libertação, e por isso é considerada pelo exército da Guatemala como um livro subversivo, “comunista”, como eles dizem. Muitas vezes o exército, que está oprimindo e matando o povo, chega às casas para sequestrar o que há nelas. A primeira coisa que perguntam é: “Onde estão os fuzis, as armas, a Bíblia?” Para eles, as armas e a Bíblia são iguais. Por isso, muitos na Guatemala tiveram que enterrar a Bíblia no chão de terra batida das próprias casas. Por cima, põem velas. E quando a família reza, rezam todos em torno daquele lugar onde está enterrada a Bíblia. Por seu caráter libertador, a Bíblia é considerada subversiva. É por isso que se pode falar de uma igreja das catacumbas na Guatemala.
Sobretudo na roça, porque é mais controlada, o pessoal não pode se reunir para a leitura da Bíblia. Um grupo de, por exemplo, quinze pessoas, é suspeito. Não pode haver reuniões com tantas pessoas. Eles têm que ir de três a quatro pessoas a uma casa, simulando que se trata de visita familiar, uma visita de cortesia ou algo semelhante. Na realidade, o que fazem é ler a Bíblia para compará-la com a própria vida, para que os ilumine e fortaleça. Há muitas comunidades que fazem assim. E os que passam não percebem nada. Isso, contudo, não quer dizer que não exista uma igreja dos pobres, uma igreja muito forte. Mas é necessário ser muito cauteloso, porque a qualquer sinal de suspeita o exército sequestra, tortura e mata. Já foram assassinadas centenas e centenas de catequistas, sem contar os padres e religiosos. Em certos lugares, os catequistas, indo buscar hóstias para as comunidades, são revistados pelos militares que controlam tudo: param os ônibus e revistam tudo. Para esses catequistas, é perigoso levar hóstias, porque o exército, quando encontra alguém com hóstias, sabe que aí encontrou um ministro da Palavra. Esses ministros as escondem no meio do feijão, do milho, entre “tortillas”, e assim por diante.
Na cidade há maior liberdade. Aí pode haver grupos de pessoas que se reúnem, ao passo que na roça não. A Bíblia é uma semente de libertação,pois aí as pessoas encontram muita inspiração. Elas creem que Jesus tem muito a dizer à situação da Guatemala. Elas sabem que tanta miséria e opressão não é o Reino de Deus. É necessário criar esse Reino já aqui na terra. É preciso começá-lo aqui. O que o exército quer é: “Vocês são pobres, mas na outra vida terão tudo”. Por meio da Bíblia o povo descobriu que as coisas não são exatamente assim… O exército tem medo porque o povo não é um povo conformado. O povo sabe que precisa passar por um processo de libertação, e o exército não o permite. Por isso é que a Bíblia é muito importante, tem muito a dizer para o povo e sua história.