Publicado em março-abril de 2022 - ano 63 - número 344 - pág.: 48-52
3º DOMINGO DA QUARESMA – 20 de março
Por Marcus Mareano
A paciência de Deus nos convida à conversão
I. INTRODUÇÃO GERAL
Depois dos episódios da tentação no deserto (primeiro domingo) e da transfiguração (segundo domingo), a liturgia nos recorda a paciência divina, que nos convida à conversão.
A primeira leitura traz o episódio da vocação de Moisés, quando ele se encontra com um fogo que não se consome e ouve a voz de Deus chamando-o para ir liderar o povo de Israel. A primeira carta aos Coríntios lembra os eventos passados do período do êxodo, para que os membros da comunidade não desanimem nem pereçam, como os hebreus naquele tempo. No Evangelho, Jesus olha as tragédias conhecidas por aquelas pessoas como um apelo à transformação de vida.
Assim, o domingo que celebramos pode ser vivenciado como tempo oportuno de mudança de planos, avaliação das escolhas e tomada de novas decisões. O Senhor nos visita, na Palavra e na Eucaristia, como um fogo que não devora, mas pacientemente nos chama a uma vida nova na comunhão com ele.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Ex 3,1-8a.13-15)
As narrativas da aliança de Deus com seu povo continuam! Se, no domingo passado, líamos o episódio do diálogo de Deus com Abraão, neste domingo a liturgia apresenta a manifestação de Deus a Moisés e seu chamado para liderar o povo rumo à Terra Prometida.
O texto se inicia situando o espaço e a atividade de Moisés, um apascentador de rebanho (v. 1). Ele chega ao Horeb, o monte de Deus, onde encontra um anjo, representante do próprio Senhor, em meio a uma chama de fogo que não se consumia (v. 2). Moisés se admira do fenômeno e investiga aquele acontecimento, perguntando-se o que seria.
Do meio do fogo, Deus chama Moisés, e este responde prontamente: “Eis-me aqui” (v. 4). Aquele lugar onde ocorre a teofania, manifestação divina, torna-se distinto. Por isso, Moisés retira as sandálias dos pés, cobre o rosto (por temor a Deus) e acolhe a mensagem inesperada daquele que lhe era desconhecido.
Deus se revela ao seu servo, recordando os antepassados do povo e se mostrando sensível aos seus sofrimentos: “Eu sou o Deus de teus pais...” (v. 6). A história do povo de Israel é a história da relação com o Senhor. Israel se reconhece na fé no Deus único, e Deus se relaciona com seu povo, agindo em sua história. Assim, a passagem utiliza verbos que denotam essa relação. Deus vê, ouve, conhece, desce e faz subir o povo, desde o Egito, até a terra que mana leite e mel (v. 7-8).
Contudo, em nome de quem Moisés iria até os israelitas para liderar a libertação? Deus se mostra então a Moisés não apenas como um fogo (v. 2), mas também como uma presença constante, desde o tempo dos antepassados até o momento presente e futuro. Deus responde que esteve, está e estará sempre com seu povo (v. 14-15).
Os v. 13-15 não querem apresentar o nome próprio de Deus. Isso era inconcebível para a cultura de Israel, pois nomear significava apropriar-se do nomeado. A resposta de Deus à pergunta de Moisés – “Qual teu nome?” – representa sua presença constante, acompanhando o povo na história e nos acontecimentos. Ademais, os israelitas invocarão, assim, o Senhor como alguém que age na realidade desde Abraão e para sempre.
2. II leitura (1Cor 10,1-6.10-12)
A comunidade de Corinto era plural e formada por cristãos oriundos, sobretudo, do paganismo. No entanto, nesta passagem da liturgia, Paulo recorda a história do povo de Israel como eventos propedêuticos à nova realidade em Cristo, os quais constituem, assim, um chamado à perseverança.
O trecho se inicia mencionando a nuvem da presença de Deus (Ex 13,21-22) e a travessia do mar (Ex 14,22). Paulo entende esses eventos como um “batismo” em Moisés (v. 1-2). Tratava-se de uma experiência do povo de Israel que constituía aquela gente como povo de Deus a partir da aliança (Ex 19-20), da mesma forma que o batismo cristão conferia à pessoa a dignidade de ser cristão.
Em seguida, Paulo recorda os eventos da água que jorrava da rocha (Ex 17,1-7) e do pão que alimentava o povo no deserto (Ex 16,4-35). Ele os interpreta como se fossem o próprio Cristo a saciar de água e pão os judeus no deserto (v. 4). Mesmo assim, aquelas pessoas pereceram e morreram lá sem entrar na Terra Prometida, pois foram infiéis e reclamavam contra Deus.
Paulo lembra a nuvem e a passagem do mar Vermelho e, em seguida, o maná e a água da rocha como figuras do batismo e da Eucaristia, respectivamente. Ele chama a atenção dos coríntios para que não ocorra com os membros da comunidade o que havia acontecido com os hebreus. Que sirva de exemplo! (v. 6).
A segunda parte da leitura expõe melhor esse apelo à conversão (v. 10-12). O povo murmurou no deserto e pereceu (v. 10). Essas coisas aconteceram para que os coríntios não as repitam e não tenham o mesmo fim. Finalmente, Paulo recomenda que quem estiver de pé na fé cuide-se para não cair (v. 12).
A passagem chama a atenção para o que aconteceu no passado com o povo judeu, de modo que os coríntios ajam de outra forma. Os eventos ocorridos são lições para aprender e não repetir os erros no tempo presente. A mensagem principal da leitura constitui um chamado à mudança de atitude. Que saibamos perseverar nos caminhos do Senhor.
3. Evangelho (Lc 13,1-9)
O trecho do Evangelho deste domingo é um convite à conversão. O ensinamento de Jesus se encontra narrado entre episódios ocorridos naquele tempo, com base nos quais Jesus interpreta a ação de Deus.
O relato se inicia com a informação de que Pilatos mandara matar alguns galileus que apresentavam seus sacrifícios no templo (v. 1). Como podem galileus fiéis piedosos ter um fim trágico dessa maneira? Seria castigo de Deus? Perguntas que se faziam naquele tempo e continuam a ser feitas nos tempos atuais.
A resposta de Jesus exige interpretação dos seus interlocutores. Ele não responde a respeito dos pecados dos falecidos, se são maiores ou menores, mas propõe olhar o evento e compreendê-lo como um apelo à conversão: “Se não vos converterdes...” (v. 3). O fim pode se tornar grande fatalidade, se não encontrar um sentido de existência na comunhão de amor com Deus.
O ensino de Jesus continua com o exemplo de outro acontecimento. Dezoito pessoas morreram na construção da torre de Siloé (v. 4). Será que eram mais culpadas que os outros habitantes de Jerusalém? A resposta segue o mesmo modo da anterior, isto é, como um convite à conversão. Portanto, a morte, seja por acidente, violência ou tragédia, não é um castigo. Deus não é um carrasco punidor! Tais incidentes nos lembram que, para quem não vive com atenção na eternidade, a morte se torna sempre um desastre.
Enfim, na segunda parte do texto, demonstrando a necessidade de produzir frutos na fé, Jesus, por meio de uma parábola, compara os ouvintes a uma figueira estéril (v. 6-9). O homem que procura por frutos representa o Senhor, que espera das pessoas o compromisso com boas obras. Há três anos – tempo do ministério público de Jesus – buscam-se frutos na videira e nada se encontra. O desfecho é o prazo de mais um ano para que se produzam frutos, ou seja, boas obras na fé.
O Evangelho deste domingo menciona eventos trágicos cotidianos para termos uma percepção do apelo de Deus em meio a tudo isso. As catástrofes não são queridas por Deus, mas podem ser entendidas como um sinal de que precisamos melhorar de vida. De igual modo, a recente pandemia não é castigo divino, mas alerta para a necessidade de mudança; e, na mesma linha, o que nos acontece pessoalmente pode ser interpretado como doce chamado à conversão, para que produzamos bons frutos.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Na relação com Deus, às vezes duvidamos do seu amor por nós e temos a tentação de atribuir-lhe a responsabilidade por coisas ruins que nos acontecem. Deus não faz o mal, nem age como mereceríamos.
O mal pode ter diferentes origens. Não cabe aqui a discussão filosófico-teológica a respeito desse assunto. Contudo, a liturgia deste dia convida a contemplar a presença de Deus mesmo em meio às adversidades da vida, aos eventos trágicos e aos piores momentos. Ele não nos abandona e, em tudo que nos acontece, pede-nos conversão de vida. Os infortúnios são ocasiões para melhorar o jeito de ser.
A proximidade desse Senhor que por amor nos chama, como chamou Moisés, deve ser motivo de alegria e confiança, não de medo e distanciamento. Ele nos ama e deseja-nos o melhor, por isso permanece conosco e aguarda com benevolência nossa decisão de mudança de vida. Perseverando nessa relação de amor com Deus, a eternidade vai acontecendo em nossa existência temporal, até quando estivermos definitivamente face a face com ele.
Marcus Mareano
é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]