Publicado em janeiro-fevereiro de 2022 - ano 63 - número 343 - pág.: 57-60
6º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 13 de fevereiro
Por Izabel Patuzzo
Bem-aventurados os que confiam no Senhor
I. INTRODUÇÃO GERAL
O Evangelho deste domingo marca o início do assim chamado Sermão da Montanha. O texto de Lucas tem paralelo em Mateus (Mt 5,1-12). As duas narrativas apresentam similaridades e diferenças. Enquanto o texto de Mateus mostra Jesus ensinando com autoridade no topo da montanha, Lucas descreve Jesus ensinando em lugar plano, próximo de seus discípulos e da multidão. Para Lucas, a autoridade de Jesus se situa em outro nível: ele é o Filho de Deus entre nós. As leituras que nos são propostas nesta liturgia nos fazem refletir sobre o protagonismo de Deus em nosso meio.
A primeira leitura ressalta o perigo da autossuficiência dos que põem sua confiança mais nos seres humanos que em Deus. Aqueles que escolhem depositar sua confiança no Senhor se dispõem a percorrer um caminho de sabedoria, de vida e de felicidade plena.
A segunda leitura é a continuidade da catequese de Paulo acerca da ressurreição. O apóstolo sugere que façamos uma leitura da vida na perspectiva da vida plena, isto é, da vida nova que nos é reservada pela ressurreição.
As bem-aventuranças que encontramos nos Evangelhos segundo Lucas e Mateus se inspiram no Antigo Testamento, particularmente nos Salmos e na literatura sapiencial. Elas se propõem ser um caminho de vida para aqueles que buscam as bênçãos de Deus. Bem-aventurado, no contexto do Evangelho, quer dizer feliz, abençoado, aquele que obteve o favor de Deus.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Jr 17,5-8)
As profecias de Jeremias retratadas nessa leitura refletem o tempo do reinado do rei Joaquim (609 a 597 a.C.). Nessa época, o rei de Judá fez várias alianças com potências estrangeiras, que prometiam grande desenvolvimento e prosperidade a Israel. Grande parte do povo, sobretudo as autoridades de Israel, passam a confiar no poder dessas alianças mais que no Senhor Deus. É nesse contexto que Jeremias dirige sua mensagem de sabedoria, ressaltando onde deve residir a confiança e a esperança do povo escolhido.
Segundo o profeta, nossa esperança e confiança devem ser depositadas no Senhor Deus, e não em pessoas humanas. Isso não quer dizer que não devamos estabelecer relações de confiança com as pessoas, e sim que não podemos prescindir de Deus em nossa vida. A existência humana é efêmera, frágil, passageira e limitada. A imagem de uma árvore plantada à beira da água descreve aqueles que depositam em Deus sua confiança; em oposição ao deserto, a planta que se encontra em contato com a água está segura, fecunda e com abundância de vida. A antítese estabelecida entre as imagens de “deserto” e “beira do rio” serve para evidenciar a vida em Deus e a vida apoiada nas seguranças que este mundo oferece. Dessa forma, o profeta adverte seus contemporâneos, que abandonaram a Aliança e depositaram a confiança nos poderes políticos de seu tempo, de que tal atitude levará o povo à ruína total.
2. II leitura (1Cor 15,12.16-20)
Essa leitura está em continuidade com a do domingo passado. É uma catequese sobre a ressurreição de Jesus. Depois de afirmar que Jesus ressuscitou, Paulo diz que também nós ressuscitaremos. Na comunidade de Corinto havia dúvidas sobre essa doutrina. Para os gentios, esse ensinamento era totalmente novo. Abraçar a fé em Jesus Cristo exigia abertura para essa novidade. Para Paulo, era evidente que, se Jesus ressuscitou, também nós teremos o mesmo destino. Essa fé fundamenta uma vida de esperança de que a ressurreição de Jesus são as primícias de todos os que ressuscitarão com ele.
A fé na ressurreição gera nova humanidade, que acredita e trabalha pela vida plena. Jesus abre caminho para que a humanidade inteira seja solidária com ele na defesa da vida, vencendo as forças da morte. A certeza da ressurreição garante-nos que Deus tem um plano de salvação para cada um de nós. Somos convidados, pois, a nos empenharmos pela vida até que sejamos unidos a ele na comunhão eterna. Esperar pela ressurreição implica se engajar contra tudo o que impede a vida plena neste mundo. Nesse sentido, Paulo nos anima a não vivermos com medo, mas a nos comprometermos ativamente com a justiça, com a paz, promovendo a vida em todos os sentidos, até que alcancemos a vida plena em Cristo.
3. Evangelho (Lc 6,17.20-26)
O lugar em que Jesus pronuncia as bem-aventuranças, na narrativa de Lucas, não é a montanha, mas o lugar plano, pois o topo da montanha é lugar de oração, de contato com o Pai. Por isso Jesus desce a montanha para instruir seus apóstolos e discípulos. Nesse sentido, o relato de Lucas é diferente do de Mateus, no qual o discurso das bem-aventuranças é pronunciado por Jesus no topo da montanha. Para Lucas, descer a montanha significa se colocar próximo dos ouvintes e no mesmo nível deles. Na concepção desse evangelista, os bem-aventurados são aquelas categorias de pessoas capazes de acolher e seguir Jesus durante seu ministério, viver segundo seus ensinamentos e se deixar tocar pelas suas ações libertadoras. No Evangelho segundo Lucas, as bem-aventuranças são proclamadas logo após o chamado dos primeiros discípulos. Esse ensinamento é para eles.
Em sua pregação, Jesus declara que os bem-aventurados que se puseram no caminho de seu discipulado serão acolhidos no Reino de Deus. Em Lucas, a pobreza, a fome, a aflição, a perseguição por causa da justiça caracterizam a situação existencial concreta dos discípulos. O Reino dos céus pertence àqueles que sofrem porque abraçaram o projeto do Reino de Deus. Por isso, serão saciados, consolados e acolhidos pelo próprio Deus. Eles são os verdadeiros destinatários da bênção divina. A recompensa será grande para todos os que sofrem por testemunhar a fé em Jesus Cristo.
Somente o relato de Lucas apresenta as expressões “ai de vós”, que são o oposto das bem-aventuranças. Os que não serão abençoados são todas as categorias de pessoas que se opõem à missão de Jesus e perseguem seus discípulos. Representam todos aqueles que depositam sua confiança nos poderes deste mundo, nas riquezas e no poder. O discurso de Jesus deixa claro que a felicidade fora do Reino de Deus é passageira. Reconhece, porém, que os ricos e poderosos deste mundo não estão preocupados em entrar na dinâmica do Reino de Deus. Não obstante, Jesus adverte que os êxitos neste mundo podem terminar em fracasso e culminar com a perda definitiva da alegria e do consolo verdadeiros. O caminho das bem-aventuranças é o mandamento do amor a Deus e do amor ao próximo; é nele que reside a verdadeira bênção e felicidade.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
A lista de bem-aventuranças apresentadas no texto do Evangelho abala nossa sensibilidade. Aqueles que são pobres, famintos, que choram ou são perseguidos são chamados de bem-aventurados. A mensagem proclamada por Jesus é totalmente contrária ao que o mundo pensa. As bem-aventuranças mencionam situações que frequentemente são vistas como sinais do abandono de Deus. Por sua vez, os “ai de vós”, relatados apenas no texto de Lucas, apontam para situações que muitas vezes são consideradas sinais de bênção, como ter riquezas, abundância, boa reputação e alegria. Tudo isso são coisas que não nos dão garantias da felicidade eterna. Além disso, direcionam nossa confiança a coisas erradas e podem nos conduzir a um estilo de vida que nos afasta da felicidade eterna. O conjunto das bem-aventuranças nos faz refletir: Como percebemos a bênção de Deus em nossa vida? Quais sinais indicam que sou uma pessoa bem-aventurada?
Em uma de suas catequeses sobre as bem-aventuranças, o papa Francisco exortou a multidão reunida na praça de São Pedro, dizendo que o motivo da bem-aventurança não é a situação atual, mas a nova condição que os bem-aventurados recebem como dom de Deus: “porque deles é o Reino do céu”, “porque serão consolados”, “porque possuirão a terra”, e assim por diante. Deus, para se doar a nós, escolhe muitas vezes caminhos impensáveis, talvez os dos nossos limites, das nossas lágrimas, das nossas derrotas. Podemos estar certos, porém, de que as bem-aventuranças nos conduzem sempre à alegria; são o caminho para alcançar a alegria.
Izabel Patuzzo
pertence à Congregação Missionárias da Imaculada – PIME. É assessora nacional da Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética da CNBB. Mestre em Aconselhamento Social pela South Australian University e em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É licenciada em Filosofia e Teologia pela Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo. E-mail: [email protected]