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Publicado em número 131 - (pp. 27-30)

Missão das CEBs: despertar o povo para seus problemas

Durante o 6º Encontro Intereclesial das CEBs, ocorrido de 22 a 24 de julho de 1986, VIDA PASTORAL entrevistou duas pessoas da base, com a finalidade de captar, na base, o dinamismo que orienta as CEBs. Entrevista concedida a Pe. José Bortolini e Ir. Rosana Pulga. Procuramos conservar a linguagem coloquial da entrevista.

 

SEBASTIÃO VIANA, 51 anos, casado, pai de doze filhos. Pertencia à diocese de Cascavel (PR), onde trabalhou onze anos como Ministro da Eucaristia e Agente da Pastoral da Terra. Foi para Rondônia, como se fosse a Terra Prometida, pois onde morava já não havia condições de sobrevivência. Chegando a Ji-Paraná, com outras cinco famílias, “como gato ensacado”, sem nada conhecer, foi tomar conta de uma fazenda de pistoleiros, onde o fazendeiro tinha sido assassinado e os pistoleiros estavam “arranjados” nas matas. Foram dois anos de sufoco e perseguição. De Ji-Paraná mudou-se para Jaru (1980), pois cada família ganhou do INCRA 50 hectares de terra (21 alqueires). Em novembro de 1983 é que a estrada chegou ao local onde tinha sua terra. A cada semana, duas ou três pessoas da família eram internadas no hospital, com malária. Agente da Saúde contratado pela Secretaria do Governo, não tinha, no início, bons conhecimentos sobre a malária e a Secretaria não fornecia medicamentos suficientes para tratar a doença.

 

IRMA BRUNETTO, solteira, da diocese de Chapecó (SC). Participa do movimento dos sem-terra, como acampada, há um ano e meio, na luta pela terra. Era coordenadora de catequese e liturgia, do movimento de mulheres, CPT, sindicato, na CEB onde morava. Hoje, como acampada, faz parte da coordenação estadual do movimento dos sem-terra e coordena, no acampa­mento, a organização das mulheres na luta pela terra.

 

VIDA PASTORAL (VP): Como são as CEBs no lugar em que vocês moram, e qual a situação social dessa região?

SEBASTIÃO: Em 1980, 2.500 famílias foram assentadas, mas só 20% moram dentro dessa área, pois não há estradas de acesso. Na nossa comunidade, plantamos arroz, feijão e milho. A planta definitiva que cultivamos é cacau, café e seringueiras. As terras são nossas. Mas há uma área devoluta do INCRA que seria doada como gratificação aos políticos, como aconteceu em Alvorada (RO), em 1982: foram doados de 500 a 2.000 hectares a “doutores” que jamais foram pra roça. Aí nós orientamos as famílias para entrar nessa área devoluta. Da minha comunidade saíram mais ou menos 40 famílias. O sindicato está demarcando a área (21 alqueires de terra para cada família). Há aí um grande problema: o povo que vive nos travessões não tem nenhum acesso à estrada. Esse povo sofre demais, porque há só a estrada-mestra. Há pessoas morando a 18 quilômetros dentro do travessão, sem que haja sequer cem metros de estrada. Há famílias com 300 ou 400 sacos de arroz empilhados, esperando que o Governo abra os travessões para escoar o produto. Esse povo vive do caucho, que é diferente da seringueira. O caucho a gente tem que cortar a árvore. Cai a árvore e a gente risca o tronco e cai a borracha no chão, que é catada de oito em oito dias e levada pra vender. Quando alguém deles cai doente, é trazido para o Posto de Saúde carregado numa rede. Leva um dia e meio pra chegar. No Posto não há um analgésico sequer pra abaixar a febre. E é tratado com remédio caseiro e a gente encaminha pro hospital. Os Padres Combonianos têm mandado muitas amostras-grátis. Mas é um sofrimento penoso.

Na nossa comunidade, é uma beleza. Todos se ajudam pra qualquer coisa. Às quartas-feiras a gente tem reflexão na capela, coberta de tabuinha e cercada de lasca, ou nas casas. No culto dominical, todas as famílias participam. Quando o vigário vai lá para celebrar a missa, é uma festa!

IRMA: A nossa região é uma das mais privilegiadas. A principal renda é a agricultura. É o lugar onde há mais minifúndios, só que os latifúndios estão aumentando sempre mais. É grande o êxodo rural. Os sem-terra somam 36.000 famílias, e o número cresce a cada dia. A situação política não é diferente dos demais lugares: a burguesia tem o controle de todos os setores. A discriminação da mulher é muito grande, em vista também da mentalidade dos colonos italianos.

 

VP: Dentro dessa situação em que vocês vi­vem, qual é a missão de uma CEB?

SEBASTIÃO: Nós procuramos viver tudo o que a Igreja propõe como forma da gente crescer. O que a diretoria propõe à comunidade é bem aceito e assumido. Se uma pessoa cai doente, nós avisamos na igreja e todos ajudam do modo como podem. O que se ajunta dá de sobra. Somos, em Jaru, 120 comunidades e temos só um padre. Ele vem nos visitar a cada dois meses. Nós temos a diretoria-construção e a diretoria-espiritual. Temos ministros de preparação para batismo e crisma. Talvez ainda neste ano a gente irá ter ministros do matrimônio dentro da comunidade. Na nossa capela não temos Eucaristia. Recebemos a comunhão só quando o padre vai lá.

IRMA: A missão da CEB é despertar o povo para seus problemas. Fazer com que o povo, discutindo em comunidade os problemas da comunidade, pela fé, vá à luta para conquistar seus direitos. A CEB é aquela que anima e alimenta o povo pra partir pra essas lutas. Sem a comunidade, sem a base, não se vai muito longe. Na nossa comunidade há os grupos de estudo que têm a função de conscientizar e aclarar as ideias. Isso é muito importante porque aí é que a gente vai ver quem é o inimigo, como a gente deve se organizar. É lá na comunidade que são discutidas essas questões, porque não é no mundo-cão que essas ideias vão se aclarear. A CEB é o principal articulador dos movimentos e das lutas do povo.

 

VP: Qual a importância da Bíblia numa CEB?

SEBASTIÃO: Nós damos um valor imenso à Palavra de Deus, porque sem ela nada podemos fazer. Uma vez por mês nós fazemos uma celebração com a Bíblia, com flores, colocando a Bíblia numa estante, abençoando com a mão em cima (da Bíblia), fazendo uma promessa todos juntos. Ela tem autoridade dentro de nossa comunidade. No culto, nós fazemos o sermão de acordo com o povo do lugar. Se o assunto do culto é diferente do nosso, nós mudamos para os nossos problemas. Nós, dirigentes, fazemos as perguntas, “jogamos verde”, para que ninguém fique na sombra. A Bíblia, assim, serve para descobrir também as lideranças dentro da comunidade. As pessoas se animam, começam a dar valor à Palavra de Deus porque se sentem valorizadas. A gente quer repartir o trabalho. E repartindo esse trabalho, a pessoa tem mais fé.

IRMA: Nas nossas comunidades a Bíblia ocupa o primeiro lugar. É o alicerce de tudo. Não se faz nada sem ela. Na nossa luta pela terra, a Bíblia foi extraordinária. A partir de uma luta, a gente abre a Bíblia, e cada situação que ela apresenta é a nossa situação. No tempo da ocupação, a gente refletia muito sobre a caminhada do povo. Na noite em que a gente saiu para a ocupação, pegou a Bíblia e refletiu a partir do povo judeu no Egito: como fizeram a janta etc. E a gente comemorou uma passagem semelhante, lá dentro do acampamento. A cada situação, a gente leva a Bíblia, lê e percebe que, assim como tratavam o povo lá no Egito, assim as autoridades nos tratam hoje. É muito interessante. E o povo descobre: “Poxa, a Bíblia nós também podemos escrever!”. O povo descobriu tantas coisas que ficava cada vez mais entusiasmado. A Bíblia, lida a partir de uma luta, fala muito mais, e a gente entende muito mais. É diferente, por exemplo, da leitura feita em certas comunidades, como rotina. Os fatos da Bíblia iluminam os fatos da vida.

SEBASTIÃO: É. Iluminam os fatos da vida e põem o povo a caminhar com as próprias pernas.

 

VP: Um dos temas tratados no primeiro dia deste Encontro é o relacionamento entre CEBs e hierarquia. Como vocês sentem a presença do seu bispo e dos padres nas lutas de vocês?

SEBASTIÃO: Faz dois anos que a gente mora lá em Jaru. E o meu bispo já foi duas vezes na minha casa, ou melhor, no meu rancho, porque não tenho casa. Quando os padres vão pra lá, nunca deixam de passar na casa da gente. Vou contar um fato: nós temos um membro da comunidade que é responsável pelo dízimo na nossa região. Há vinte anos atrás, numa cidade do Paraná, por causa de uma greve, sentiu-se prejudicado por causa da atitude do bispo daquela cidade. O bispo foi a causa de eles terem perdido aquela greve. Por isso se afastou por mais de vinte anos da Igreja. Chegando na nossa comunidade, nós começamos a convidá-lo para os cultos dominicais. Meio escondido, começou a aparecer, e foi indo, indo. Um dia ele me falou: “Sebastião, esse padre é padre mesmo. Nesse eu acredito. Esse aí, o que ele fala, fala do coração. Eu vou dar mais uns dois ou três domingos e vou ver se volto. Se esse padre continuar fazendo o que está fazendo aí, eu vou voltar novamente à religião”. A família dele é muito grande. Aí ele passou mais uns domingos e foi se engajando conosco e hoje é responsável pelo dízimo. Tudo isso por causa do modo como nosso bispo e nosso vigário tratam a comunidade. Quando o vigário vem fazer alguma coisa pra nós, é motivo de festa e alegria. Ele sempre diz pra gente: “Vocês é que mandam. O que vocês fizerem está feito”. A gente se sente valorizado e responsável com isso.

IRMA: O nosso bispo é excelente. Ele é o maior incentivador dos nossos trabalhos. Mas na diocese há padres que são menos comprometidos. Há pastores de outras religiões que são excelentes, que tiveram um papel muito importante no apoio ao movimento dos sem-terra. Ajudaram a refletir e deram assessoria. Há padres que dão liberdade para o povo se organizar. Hoje, nos assentamentos, se está pensando numa outra forma de organizar a comunidade, sem essa coisa de presidente, vice etc. É mais uma coisa de conjunto, uma coordenação, uma única caixa. Por exemplo: se alguém vai num encontro de igreja, usa o dinheiro da igreja, mas se vai num encontro de sindicato, por que não pode usar o mesmo dinheiro? A gente pensa em ter tudo em comum. Tudo o que é organização de trabalhadores tem uma caixa só. Certas comunidades refletem ainda o estilo do poder: presidente, vice… Nós já estamos estudando uma forma alternativa pra esse esquema.

 

VP: Há experiências de novos ministérios nas CEBs em que vocês moram?

SEBASTIÃO: Antes de responder à pergunta, gostaria de dizer que lá em Jaru nós estamos partindo pra roça comunitária: plantar um alqueire ou dois, todo mundo ajuda a fazer a roça, ninguém precisa fazer empréstimos ou cobrar dízimo um do outro. Tem muita gente que já está fazendo isso. Respondendo à pergunta, na nossa comunidade há um ministério novo: é o da visita aos fracos e doentes, e há também uma equipe que a gente chama “a equipe da saúde”. Veja bem: a malária é horrível na nossa região. A SUCAM é um exemplo de como nós precisamos organizar a nossa equipe. Se alguém de nós pega a malária vivax (que dá no sangue e no fígado), a SUCAM trata com dez comprimidos de cloroquina e três de primaquina, para um adulto: quatro de cloroquina e três de primaquina no primeiro dia, e depois três num dia e três no outro. São três dias de tratamento. Quando alguém pega a malária falciparum (que dá só no sangue), o tratamento que a SUCAM faz é o mesmo da malária vivax, o que é um absurdo. Pois na instrução que nós recebemos de um especialista de Manaus, aprendemos que se deve tratar a malária vivax com dez cloroquinas e vinte e um quininos ou paludil. Veja bem: cada uma tem tratamento diferente, e a SUCAM trata igual. Ela não dá o quinino de jeito nenhum. Daí a oito dias vão fazer lâmina da outra malária. Enquanto isso, a estatística da malária está subindo. Aí é mais salário, mais gente ficando à toa e mais medicamento que o Governo tem que comprar do exterior, e a gente lá no nosso bairro morrendo de malária. Em se tratando, ela não mata ninguém. Ela derruba por sete dias. A missão da nossa equipe é, portanto, a de fazer pressão em cima da SUCAM, em cima dos responsáveis, das autoridades, para que tratem direito. Fizemos abaixo-assinados, e é através disso que o secretário de saúde de Jaru tem oferecido os medicamentos certos e necessários. É um ministério muito importante, que a Igreja ordenou que nós fizéssemos. Ela nos ensinou o caminho. E nós tomamos essa decisão.

IRMA: Na nossa comunidade está surgindo de maneira forte o trabalho em favor da saúde preventiva, dos remédios caseiros, dos primeiros socorros. Na diocese existe a Pastoral da Saúde. A liderança de jovens também é uma força nova nas nossas comunidades. O grupo de jovens é um treinamento e daí nascem as lideranças, que assumem os movimentos. No acampamento é outra realidade. Aí surgiram muitos ministérios interessantes, que a gente chama de coordenação. É o pessoal que tem a função de conscientização e organização. Há lideranças de colonos. Há lideranças de segurança. Tudo isso em benefício do povo.