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Publicado em número 131 - (pp. 15-20)

Terra de Deus, Terra de irmãos

Nos dias 22 a 24 de julho de 1986, os participantes do 6º Encontro Intereclesial das CEBs debateram seus problemas, divididos em 4 grandes plenários. O tema discutido no dia 24 foi “Terra de Deus, terra de irmãos”. Também este tema estava dividido em 4 itens, um para cada plenário. A seguir, apresentamos as conclusões de cada um desses plenários. Em linhas gerais, o Documento Final reassume os principais anseios os aqui apresentados.

 

PLENÁRIO A

Tema: LUTA PELA TERRA: NOSSA REFORMA AGRÁRIA

Discutindo esse assunto, 283 participantes foram divididos em 18 grupos, procurando responder às seguintes questões: 1ª) O que é necessário para a reforma agrária? 2ª) Como acontecem as lutas pela terra em sua região?

 

Questão 1: O que é necessário para a reforma agrária?

É necessário: partir do povo; que a reforma agrária seja controlada pelos trabalhadores, que os trabalhadores tenham o poder jurídico para controlar; a cidade deve apoiar; conscientização das bases; apoio das CEBs; fixar o módulo máximo (500 ha); criar uma política de incentivo, dar condições: estradas, escolas, saúde, sementes…; romarias para sensibilizar e reforçar; reforçar os sindicatos; desmascarar a falsidade do governo; desapropriações com título coletivo; que o governo crie infraestrutura necessária; desapropriar os latifúndios; demarcação das áreas indígenas; título intransferível; impostos mais baratos; deve ser urgente; preço mínimo dos produtos; terra coletiva; assistência agrícola e comercialização dos produtos; repensar a política de exportação; policultura; reforma agrária também em terras produtivas; que o povo fiscalize as desapropriações; fim do incentivo aos grandes; legalização das terras dos acampados; que as sugestões do povo sejam ouvidas; terra a quem precisa e a quem trabalha, e no seu lugar, onde está; eleger parlamentares da base; representantes dos trabalhadores junto ao INCRA; terra para cada família, de acordo com as necessidades; mudança na legislação agrária; terra boa para todos na própria região; Bíblia como instrumento de conscientização; acabar com o atravessador; reforma agrária e não colonização; usar os meios de comunicação social; terra comunitária para todos os lavradores.

 

Questão 2: Como acontecem as lutas pela terra em sua região?

Acontecem através de: Comissões de base dos sem-terra; resistência na terra; união entre sindicatos, CPT, Igreja; articulação de entidades de apoio com tomadas de posse e acampamentos; ocupação do INCRA; programas de rádio semanais; atos públicos de apoio à reforma agrária; levantamentos dos sem-terra; roças comunitárias; cursos sobre sindicalismo, Bíblia; caminhadas e romarias; marchas; celebração das conquistas; cooperativas; grupos de mutirão; conselho de moradores; assentamentos; ocupações no Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Roraima; pressões sem violência; derrubada de sindicatos-pelego; apoio das Igrejas: católica e metodista; grupos que discutem a reforma agrária e a resistência; luta pela legalização dos acampamentos; o povo força a desapropriação apesar das mortes; atos públicos e abaixo-assinados; celebrações e vigílias; manifestações; ocupações simultâneas; derrubadas de diretorias pelegas.

 

Síntese

1. Antes da reforma agrária

• Conscientização, romarias etc.

• Todos fizeram referência a quem deve fazer a reforma agrária: os trabalhadores. Todos têm consciência de que pode sair uma reforma agrária pelega. Como fazê-la? — Limitando o tamanho da propriedade; os beneficiados não podem vender a terra. Como deve ser? Integral!

 

2. Como estão as lutas?

Há dois tipos de luta:

a) Resistência na terra (os que estão).

b) Ocupação (os que não têm terra).

Fora dos locais

• Atos públicos, articulação, pressões.

• Organização política das ocupações (conselhos, leis de uso da terra, mutirões e acampa­mentos).

• Organização do núcleo da nova sociedade, baseada no novo projeto popular.

 

PLENÁRIO B

Tema: PROJETOS DO GOVERNO

Os 16 grupos deste plenário procuraram responder às seguintes perguntas: 1ª) Na sua região, que problemas trazem os projetos do governo? Ajudam ou atrapalham a reforma agrária? 2ª) Como as CEBs estão reagindo em defesa do povo, diante desses projetos do governo?

 

Síntese dos trabalhos

1. Tipos de projetos

São 36 grandes projetos conhecidos.

• Alguns deles são voltados para o assim chamado desenvolvimento regional. Exemplo: SUDENE, NORDESTÃO (SÃO VICENTE), SUDAM, projetos ligados com a área de irrigação, NORDESTE, Plano de Emergência para o Nordeste.

• Projetos voltados para a modernização e incentivo à produção para exportação. Exemplo: CARAJÁS, PRÓ-ÁLCOOL, FORMOSO, Usinas hidrelétricas (barragens), projetos cerrados (JICA), reflorestamento, zona franca.

• Projetos político-sociais: AIS (Ação Integrada de Saúde), Fundo Rural, reservas florestais, colonização etc.

 

2. Objetivos dos projetos

“O governo não pensa em fazer reforma agrária, mas pensa em fazer reforma agrícola”. Esta expressão de um participante revela que esses projetos estarão voltados a responder aos grandes interesses nacionais e multinacionais, para dar um bom nome ao governo, e não resolver os problemas reais da maioria da população.

Promover a modernização da agricultura, orientando a produção para exportação, ligando assim o nosso país ao mercado mundial. Em consequência, não se produz no país o que a população necessita. Exemplo: o projeto JICA, que é um projeto japonês, tem a finalidade de produzir alimentos aqui no Brasil para serem comercializados no mercado mundial pelos japoneses.

Observação: Todos os projetos vêm de cima para baixo, sem nenhuma participação do povo. Isso faz com que a maioria do povo não conheça esses projetos.

 

3. Consequências sociais dos projetos

As consequências sociais da aplicação ou não desses projetos foram destacadas:

• Expulsão do homem do campo, resultando em maior concentração da propriedade das terras nas mãos dos grandes.

• Deslocamento das populações, para cidades ou para áreas de colonização.

• Produção de boias-frias, explorando o trabalho com baixos salários e “escravidão branca”.

• Atrapalham a vida, destruindo a natureza.

• Divisão e desarticulação das organizações populares, criando a ilusão de que os governos vão resolver os problemas.

• Confundem a opinião pública, dando a ideia de que o governo está fazendo muita coisa no plano social, dificultando o apoio dos movimentos populares, que são tidos como insatisfeitos.

• Colhendo informações da vida do povo através de questionários, fazem com que os próprios lavradores entreguem a organização do povo e os seus líderes.

• Usam os projetos para fins eleitoreiros.

 

Mesmo que não seja objetivo declarado, a prática revela que os projetos têm, como finalidade geral, não a participação do povo e a satisfação de suas necessidades, mas o seu controle. Funcionam como “cala boca”.

 

4. Ação das CEBs

A ação das CEBS se realiza de diversos modos, dependendo da realidade e do amadurecimento da comunidade. Das ações indicadas, destacam-se:

• Conscientização e discussão dos projetos, ligando-os com os problemas concretos da vida, desenvolvendo um senso crítico;

• As CEBs são alimento da luta, fortalecendo as organizações populares.

• Estimula a participação nos sindicatos, associações, cooperativas etc.

• Denuncia as situações de injustiça.

• São solidários nas lutas pela presença e coleta de alimentos (por exemplo: acampados).

• Repúdio dos projetos com vigílias de oração e jejuns.

• Luta por um projeto popular de reforma agrária, desenvolvimento agrícola, baseado na ideia de conquista.

• Desperta para a consciência de luta de classe.

• Apoio aos sindicatos autênticos e renova­ção dos sindicatos-pelego.

• Articula a solidariedade frente a violência feita aos lavradores.

• Promove e participa de romarias da terra, passeatas etc.

• Preocupa-se com a conscientização de crianças e adolescentes.

• Estimula a posse e o uso comunitário da terra.

• Questiona a propaganda dos meios de comunicação, que tiram a esperança da conquista da terra.

 

Proposta. Que as CEBs assumam a proposta da campanha nacional pela reforma agrária, no sentido de criar comitês da reforma agrária por todo o Brasil.

 

PLENÁRIO C

Tema: SOLO URBANO E MORADIA

Dinâmica

Trabalho em grupos (10) em torno das questões: 1ª) Como ligar a luta pela terra no campo e na cidade? 2ª) Quais os jeitos que o povo está descobrindo para garantir o direito de posse e de moradia digna?

 

Síntese

Todos os grupos percebem que a luta no campo e na cidade tem uma única raiz: a expulsão das famílias do campo, o êxodo rural, o inchaço das cidades. Daí a necessidade de lutar nesses três níveis: conscientização, organização, solidariedade.

 

Conscientização

As pessoas do campo e das periferias das cidades precisam se dar conta de que seus problemas têm a mesma raiz. Por isso, é a mesma luta com ferramentas diferentes. Além disso, a cidade não pode viver sem o campo nem o campo sem a cidade. São fundamentais, portanto, as lutas pela reforma agrária e pela reforma urbana.

 

Organização

Tanto o povo da cidade como o do campo percebem que a luta individual ou por setores isolados não leva a nada. É essencial a sua organização e a sua articulação com todos os que estão na luta: CPT, CPO, sindicatos rurais e urbanos, movimento dos sem-terra e de todos os outros grupos que, em cada região, atuam na defesa do povo.

Muitos têm feito a experiência de que a conquista do solo urbano se faz da mesma forma que a da terra no campo: ocupação, negociação, pressão. Trocar a posse de direito pelo direito da posse. Alguns exemplos foram dados:

• Criação de comissões de posseiros urbanos.

• Organização de atos públicos, como já foi feito na Assembleia Legislativa.

• Acampamentos em praças públicas ou diante de prédios de órgãos do governo.

• Caminhadas de manifestação.

 

Solidariedade

Tendo percebido que a luta é a mesma, o povo cria as mais diferentes formas para manifestar sua solidariedade:

• Apoio através de presença, cartas, mensagens, mutirões, quanto a garantir os meios econômicos de sustento durante a luta.

• Informação sobre o que acontece tanto no campo quanto na cidade.

 

Ao fazer suas colocações, os grupos mostraram concretamente, com experiências vividas, que em todas as regiões do Brasil as CEBs estão comprometidas na luta pelo direito ao solo urbano e moradia.

Depois das colocações dos grupos, o assessor Antônio Cechin salientou diversos pontos a respeito do tema:

• As nossas cidades não são cidades. São formadas de um polo industrial, cercado de um grande campo (as periferias). O problema do solo urbano só existe porque não existe reforma agrária.

• Posse ou propriedade? Na hora da ocupação é preciso lembrar que estamos em busca do Projeto Popular. Por isso nós só queremos a posse e o uso da terra. Chamamos a isso ocupação alternativa, porque não vamos entrar no jogo do sistema.

• Diferenças da luta no campo e na cidade: a luta é a mesma. As ferramentas e as etapas é que são diferentes.

• A luta da mulher: por causa do trabalho, muitos homens estão bastante ausentes de suas vilas, na cidade. O papel da mulher aí é fundamental.

• O poder popular: o povo pobre é a força de toda ocupação, mas precisa de apoio na sua luta, sob todos os aspectos: jurídico, político, religioso.

• A importância da Constituinte: “A luta faz a lei”. A conscientização se faz na luta.

• O papel da Igreja: Se nós somos Igreja, temos que entrar com tudo nessa luta.

• Comunicação, troca de experiências: É importante conhecer, trocar ideias com outros grupos que estão na mesma caminhada.

 

Fila do povo: 23 pessoas falaram e muitas delas, especialmente as mulheres, deram testemunhos comoventes de sua valentia e coragem. Algumas cantaram canções de sua autoria, ou do seu Regional, ligadas ao tema do plenário.

 

PLENÁRIO D

Tema: TERRA PROMETIDA POR DEUS

É difícil resumir em poucas palavras toda a riqueza que a gente descobriu e partilhou no plenário. Seguem umas linhas mestras refletidas nas opiniões e depoimentos. Queremos nesta síntese ser fiéis à maneira de expressar dos participantes. Discutimos duas questões: 1ª) O que você pensa desta frase: “Queremos terra na terra. Já temos terra no céu”? 2ª) O que os mártires da luta pela terra significaram para nós?

 

1. “Queremos terra na terra”

Hoje somos estrangeiros na própria pátria; exilados da terra. “E a vida na terra sem a terra é um inferno!”

Temos que lutar pela terra aqui. Temos que conquistá-la. Esta terra não é só um pedacinho do chão, mas é tudo o que gera uma vida digna: terra para plantar, moradia, o pão de cada dia. Pois tudo vem da terra. Da terra nasce a vida. Inclusive nós mesmos: “Somos da terra e voltamos para a terra”.

Somos filhos e herdeiros do Dono e Criador da terra. Por isso nós todos temos direito à terra e temos que administrá-la bem.

Deus precisa dessa nossa contribuição para construir uma terra de irmãos.

 

2. “Terra na terra e terra no céu”

Se a gente não lutar aqui não conseguiremos a terra no céu. É lutando pela terra que nós tomamos posse da terra no céu. A terra do céu começa a ser construída aqui. O Reino de Deus se realiza quando o homem se realiza.

Esta luta deve ser uma luta digna, sem ganância, sem egoísmo. Uma luta de um povo unido.

 

3. “Já temos terra no céu”

A promessa de Deus que garante que a gente já tem terra no céu não significa que podemos cruzar os braços. Ao contrário: faz a gente lutar com esperança, coragem e fé.

Nossa fidelidade a Deus, à sua promessa e a nossa fidelidade aos irmãos, obrigam a gente a lutar por uma terra de justiça e paz.

Ficam esses questionamentos:

• Será que os pobres miseráveis que vivem e morrem calados e que não têm condições de entrar nessa luta, será que eles não teriam acesso à terra no céu?! Será que Deus é tão ruim?

• Sempre insistimos nestas duas palavras: lutar e organizar-se. Agora, o que vamos fazer mesmo daqui pra frente? Vamos na base da paciência? Na lei ou na marra?

 

Quanto à segunda pergunta:

• Um mártir é um testemunho da fé. Ele não luta pela própria vida, mas por uma coisa que o ultrapassa: a vida do povo e o Evangelho de Jesus Cristo. Ele não é um indivíduo, mas é um símbolo da luta de um povo todo. Ele não é violento; é violentado.

• Os mártires nos dão coragem, força e esperança. Eles despertam a força da união para uma ação solidária na construção de uma nova vida: “Uma nova terra e um novo céu”.

• Ao mesmo tempo, os mártires questionam a gente. A gente fica até acanhado. O sangue deles nos chama à conversão, ao compromisso com o povo, convida-nos a tomar posição.

• Os mártires são semente de nova vida. Sementes que já estão germinando. Eles são uma luz que mostra o caminho. O sangue é como a luz da ressurreição. Os mártires nos abrem os olhos para tirarmos as cercas de nós.

• O martírio é um sinal de que a Igreja, Povo de Deus, está no caminho certo. Mesmo conscientes de que nem toda a Igreja vive o compromisso de estar com o povo. Nós podemos desconfiar de uma Igreja que não conhece o martírio.

• Mas, assim mesmo, não queremos mais mártires. Chega de mártires. Porque o martírio significa que não existe ainda justiça. E também porque é melhor um líder vivo do que morto.

• Podemos até nos questionar: será que não morreram porque a organização e a mobilização do povo estavam fracas? Não estariam eles sozinhos na luta?! Será que em determinados momentos a comunidade não foi imprudente em deixá-los sozinhos?

• Tudo isso levanta o problema das estratégias de luta, sobretudo nesta Nova República que tem uma maneira diferente de reprimir: matando as lideranças e fazendo o povo se cansar pela demora da reforma agrária e das demarcações.

 

Na fila do povo foi repetidamente falado que os cristãos chegam sempre atrasados: a gente faz manifestações depois que a pessoa morreu. Temos que manifestar-nos antes, andar sempre juntos, sobretudo quando ameaçados. Pois o pistoleiro age como uma víbora, às escondidas, com medo da gente.

 

Da palavra dos assessores queremos trazer algumas ideias fortes:

• Carlos Mesters lembrou para a gente que na Bíblia a palavra central é a vida. E a vida sem terra não existe. Este tema percorre a Bíblia do começo ao fim. Nessa luta pela terra, Deus sempre garante sua presença: “Estou com vocês” é o seu nome. Deus quer ver seu povo feliz. O povo é a noiva de Deus. E quem não gosta de ver a noiva feliz?!

• Marcelo Barros, além de reforçar o que o povo disse, salientou a seriedade do martírio. A Igreja nunca incentivou a fabricação de mártires. Nem Deus. Deus quer a vida e não a morte. Isso não significa fugir da luta, mas defender a própria vida a serviço dos outros. É seguir o conselho de Jesus: “Sejam simples como as pombas, prudentes e espertos como serpentes”.

• Tereza Cavalcanti deu sua contribuição como mulher-assessora. A terra e a promessa são femininas. Coisas que uma mulher entende bem. Pois uma mulher está acostumada a esperar. Espera nove meses para ter um filho. Ela tem a prática da espera, da resistência. Como Débora, na Bíblia, as mulheres hoje em dia são verdadeiras alavancas na luta do povo.

 

Há também um aspecto de martírio na mãe que oferece o filho para a luta e o vê morrer na luta. Foram as mulheres, junto com Maria, que ficaram de pé ao lado da cruz.