Publicado em setembro-outubro de 2021 - ano 62 - número 341 - pág.: 59-62
30º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 24 de outubro
Por Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
Ver para seguir Jesus e anunciar
I. INTRODUÇÃO GERAL Neste domingo em que celebramos o Dia Mundial das Missões, a liturgia recorda o projeto libertador de Deus para a humanidade, com predileção clara pelas pessoas mais vulneráveis e necessitadas, vítimas das mais diversas formas de exploração e injustiça. Ao mesmo tempo, convida-nos a contemplar e anunciar a realização contínua desse projeto na história. Na primeira leitura, em tom jubiloso, o profeta Jeremias anuncia a libertação dos exilados e o retorno ao país, sendo conduzidos pelo próprio Deus, com seu amor de pai que ama seus filhos e deles cuida. A segunda leitura fala do sacerdócio de Cristo: ele possui todas as credenciais de sumo sacerdote, mas as supera, por ser o Filho de Deus, o que torna perfeita sua mediação. O Evangelho narra a cura do cego Bartimeu; mais do que um relato de milagre, esse episódio representa um modelo de fé e de adesão ao seguimento de Jesus. O salmo é um hino de ação de graças pelo retorno dos exilados, uma das muitas maravilhas realizadas por Deus em favor do seu povo.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1. I leitura (Jr 31,7-9) Jeremias foi um dos profetas bíblicos de ministério mais fecundo e longo, com duração aproximada de 50 anos. Recebeu o chamado de Deus ainda muito jovem, por volta do ano 627 a.C., durante o reinado de Josias em Judá (Jr 1,4-10). Era uma época até promissora, devido à política reformista de Josias; esta, porém, não foi continuada por seus sucessores. A sequência dos acontecimentos apontava para a catástrofe, como de fato se deu: Jerusalém foi invadida pelo exército da Babilônia em 597 a.C., tendo parte da sua população deportada, e foi completamente destruída em 586 a.C., com a deportação do restante da população. Jeremias previu e assistiu a tudo isso, o que, obviamente, repercutiu na sua pregação, rendendo-lhe injustamente o rótulo de profeta pessimista. Por conseguinte, chega a ser surpreendente a presença de uma seção de oráculos de restauração no seu livro, chamada de “livro da consolação” (Jr 30-33). A primeira leitura deste domingo é tirada dessa seção e comporta um anúncio de esperança, com perspectivas messiânicas.
O texto começa com um convite à alegria pela salvação do povo, a qual consiste na libertação do cativeiro e no retorno à terra (v. 7). O povo que voltará – os exilados e todos os israelitas dispersos – é apenas um resto, quer dizer, um povo pequeno e arrasado, mas cheio de esperança: cegos, aleijados, grávidas e parturientes (v. 8). Essas categorias são imagens da vulnerabilidade e do sofrimento; expressam a preferência e os cuidados de Deus pelos indefesos, vítimas de injustiças e exploração. São pessoas com dificuldade de caminhar e, por isso, mais necessitadas da proteção de Deus. São também sinais de esperança: mulheres grávidas e parturientes simbolizam a fecundidade e a vida nova; a partir delas é que o Senhor reconstituirá seu povo, tornando-o família, sendo ele o Pai amoroso que cuida e protege (v. 9). Tais são as maravilhas cantadas pelo salmista: “Maravilhas fez conosco o Senhor, exultemos de alegria!” (Sl 126,3). E a cura do cego Bartimeu, no Evangelho, indica que Jesus é, por excelência, o realizador das maravilhas de Deus.
2. II leitura (Hb 5,1-6) Mais uma vez, a segunda leitura é tirada da carta aos Hebreus, precisamente da segunda parte (Hb 4,14-10,31), cujo foco central é o sacerdócio de Jesus Cristo. Certamente, os destinatários da carta – cristãos de origem judaica – tinham dificuldade em aceitar uma experiência de fé desvinculada do templo de Jerusalém, onde os sacerdotes tinham papel proeminente. Daí a insistência do autor em apresentar Jesus como sumo sacerdote, em grau superior aos do templo. O texto deste domingo faz parte de uma seção expositiva (Hb 5,1-10), na qual o autor descreve as características do sacerdócio do templo (v. 1-4) e, em seguida, aplica-as a Cristo, evidenciando sua superioridade (v. 5-10). A leitura não contempla a seção inteira, mas os versículos lidos são suficientes para demonstrar que Jesus é o sumo sacerdote por excelência.
O ideal de sacerdote do templo é marcado por três características básicas: I) ser tirado dentre os homens e instituído mediador entre Deus e a humanidade (v. 1); II) ter compaixão das pessoas pecadoras e oferecer sacrifícios pelos pecados de si mesmo e dos outros (v. 2-3); III) ser chamado por Deus, como Aarão (v. 4). Jesus possui credenciais superiores a essas: sendo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, sua mediação é perfeita; sem pecado, fez-se solidário com os pecadores de todos os tempos, ofertando sua vida por amor ao Pai e à humanidade. Na condição de Filho de Deus, seu chamado precede qualquer outro (v. 5); seu sacerdócio não descende de Aarão, mas remonta a uma ordem mais antiga e única: a de Melquisedec (v. 6), uma figura misteriosa e sem descendência, desvinculado de qualquer instituição. Tudo isso demonstra a superioridade e perfeição da mediação de Jesus e, por conseguinte, do seu sacerdócio.
3. Evangelho (Mc 10,46-52) O Evangelho desta liturgia corresponde à etapa final do caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém e compreende o último milagre realizado, conforme a narrativa de Marcos: a cura do cego Bartimeu. Com esse episódio, o evangelista denuncia a incoerência dos discípulos e indica a transformação pela qual eles devem passar. Com efeito, durante o caminho, Jesus anunciou seu destino de Messias sofredor e apresentou as condições indispensáveis para seu seguimento, como a humildade, a acolhida aos pequeninos, o serviço e a coragem de dar a vida por sua causa e pelo Evangelho. Enquanto isso, os discípulos cultivavam pretensões triunfalistas, praticavam proselitismo, alimentavam ambição e rivalidades; enfim, viviam um estado de completa cegueira diante do que Jesus ensinava.
Como foi ressaltado nos domingos anteriores, o caminho é um lugar privilegiado para a catequese e a vida da comunidade. Representa a exposição aos riscos e perigos, bem como a abertura ao diálogo e ao encontro com o diferente; é a imagem da Igreja em saída. No caminho, acontecem encontros transformadores, em meio a situações como a descrita no Evangelho desta liturgia: o cego Bartimeu sentado à beira do caminho, na saída da cidade de Jericó (v. 46). Esse é o único caso, no Evangelho de Marcos, em que uma pessoa necessitada de cura é chamada pelo nome. Por ser cego, era uma pessoa excluída, restando-lhe somente as margens da sociedade e a mendicância para a sobrevivência.
Bartimeu era um cego que queria ver, ao contrário dos discípulos de Jesus. Era consciente da sua condição e buscava superá-la. Por isso, ao saber que Jesus estava passando por perto, gritou-lhe, suplicando piedade e demonstrando grande fé e esperança (v. 47). De sua parte, as pessoas que acompanhavam Jesus queriam monopolizá-lo, repreendendo Bartimeu, que não se deixou intimidar e gritou ainda mais forte sua súplica (v. 48). Jesus, contudo, não se deixa controlar por ninguém; nenhum grupo ou instituição pode determinar seu agir; para ele, não é incômodo interromper o caminho para dar atenção a uma pessoa necessitada e excluída. Ele mesmo chama para perto de si as pessoas marginalizadas pela sociedade e pela religião (v. 49).
A atitude do cego diante do convite de Jesus mostra o entusiasmo e a alegria de quem tem fé, esperança e pressa pela transformação (v. 50). Jogar o manto significa a capacidade de renúncia, uma das exigências de Jesus para seu seguimento. O manto era tudo o que o cego possuía. Não era muita coisa, mas, por ser tudo o que tinha, poderia tornar-se empecilho. A renúncia ao manto, portanto, tornou o cego uma pessoa livre. Por isso, ele deu um pulo, um gesto que expressa alegria e, ao mesmo tempo, liberdade conquistada. O pulo do cego é um salto qualitativo na sua vida, marco do encontro transformador com Jesus.
Apesar de conhecer as necessidades do cego, Jesus pergunta o que ele quer, para criar relação e gerar intimidade. Reconhecendo Jesus como Mestre, o cego responde que deseja ver (v. 51). Ver era a necessidade de todos os que acompanhavam Jesus, mas somente Bartimeu foi capaz de reconhecer isso. Por conseguinte, foi transformado; curado pela própria fé, sem a necessidade de gestos e sinais extraordinários (v. 52a). E logo se tornou discípulo (v. 52b). Em todo o Evangelho, mas sobretudo neste relato, ver significa dar adesão a Jesus e ao seu projeto, tornando-se um imperativo para o discipulado e a missão. É isso o que torna a cura de Bartimeu um episódio tão paradigmático.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO Refletir sobre as leituras e relacioná-las com o tema do Dia Mundial das Missões: “Não podemos deixar de afirmar o que vimos e ouvimos!” (At 4,20). É preciso ver o agir de Deus na história e anunciar, bem como é necessário ver as estruturas e situações que impedem esse agir e denunciá-las corajosamente. Rezar pelas missões nas mais diversas dimensões. Recordar que toda pessoa batizada é discípula e missionária de Jesus Cristo.
Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
*é presbítero da diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia (Insaf), no Recife, e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN). E-mail: [email protected]