Publicado em setembro-outubro de 2021 - ano 62 - número 341 - pág.: 46-48
26º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 26 de setembro
Por Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
Seguir Jesus de forma radical e sem exclusivismo
I. INTRODUÇÃO GERAL Celebramos neste domingo o Dia da Bíblia, a Palavra de Deus expressa em palavras humanas que, antes de tornar-se livro, foi experimentada e vivida por inúmeros indivíduos e comunidades, ao longo de vários séculos. Por meio dela, conhecemos o projeto de amor de Deus para a humanidade e os traços essenciais da sua identidade, e aprendemos a viver como seu povo. Com efeito, os textos desta liturgia mostram isso muito bem. A primeira leitura e o Evangelho recordam a liberdade do agir de Deus: ele concede seus dons como quer e a quem lhe apraz. É um Deus que não permite ser monopolizado por ninguém. Logo, nenhum grupo ou instituição pode determinar seu agir. Isso indica que a fé no Deus bíblico é incompatível com qualquer tipo de exclusivismo. A denúncia aos ricos gananciosos e exploradores, na segunda leitura, também recorda outra característica de Deus: a opção preferencial pelos pobres e a intolerância com a injustiça. É nessa perspectiva que deve orientar-se o discipulado de Jesus.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1. I leitura (Nm 11,25-29) A primeira leitura é tirada do livro dos Números, obra composta de textos narrativos e legislativos, provenientes de tradições e épocas diversas. O fio condutor do livro é a estadia de Israel no deserto, desde o Sinai até a chegada às planícies de Moab, a última etapa antes da entrada na terra. Apesar da dificuldade de estabelecer uma estrutura da obra, devido à complexidade literária e teológica, atualmente é consensual sua divisão em três partes (1,1-10,10; 10,11-20,13; 20,14-36,13). O trecho lido neste dia pertence à segunda parte. Para compreendê-lo, é necessário recordar o contexto, como faremos a seguir.
O povo tinha murmurado contra Deus por causa do maná, com saudade da comida boa e farta do Egito (Nm 11,4-9). Moisés ouviu tudo e lamentou-se diante do Deus, alegando já não ter forças para continuar a liderar um povo tão ingrato e difícil de lidar (Nm 11,10-15). Em resposta, Deus ordenou-lhe que escolhesse 70 anciãos e os reunisse na tenda do encontro, prometendo habilitá-los com seu Espírito para ajudar Moisés na condução do povo (Nm 11,16-17). O texto lido neste domingo é a continuação desses eventos.
Moisés fez tudo como lhe fora ordenado (Nm 11,18-24), e o Senhor desceu sobre a assembleia reunida, conforme prometera, e repartiu o Espírito (v. 25). Para participar da liderança do povo, ou seja, para profetizar, é necessário ser portador do Espírito de Deus. Até então, o Espírito estava concentrado todo em Moisés; a retirada de uma porção dele significava a descentralização das responsabilidades e da liderança. Surpreendentemente, dois homens que estavam na lista não compareceram à reunião, mas também receberam o Espírito e começaram a profetizar no acampamento; aliás, com maior perseverança do que os outros que tinham participado da reunião (v. 26). Aqui se encontra a mensagem central da leitura: o Espírito de Deus é livre no seu agir, sua atuação transcende os espaços e as prescrições deter- minadas por qualquer grupo ou instituição.
A reação negativa de Josué, ajudante de Moisés, adverte sobre o perigo de querer monopolizar o agir de Deus (v. 27-28). Por seu turno, a correção de Moisés revela a qualidade da sua autoridade, digna de quem, de fato, se deixa conduzir pelo Espírito de Deus (v. 29): melhor seria se todo o povo tivesse o dom da profecia.
2. II leitura (Tg 5,1-6) Neste domingo, concluímos a sequência de leituras da carta de Tiago, que nos acompanhou por cinco domingos. Como afirmamos em ocasiões anteriores, apesar de classificado como carta, esse escrito não possui características epistolares, à exceção da saudação inicial (1,1), aproximando-se mais do estilo sapiencial e profético. Enquanto o trecho lido no domingo passado era sapiencial, o desta liturgia é tipicamente profético. Trata-se precisamente de um lamento profético contra os ricos, um texto que se aproxima da pregação de Amós e do próprio Jesus.
Na primeira parte do texto, o autor denuncia duramente os ricos pelo acúmulo de riquezas e pela confiança nelas depositadas (v. 1-3). O tom ameaçador da denúncia reflete a gravidade da situação e a mentalidade disseminada entre os pregadores do século I d.C., que acreditavam no retorno imediato do Senhor para o julgamento. A ameaça funciona como apelo à conversão, o que, neste caso, seria a condivisão dos bens. A segunda parte traz a acusação: as riquezas acumuladas são fruto de injustiça, provêm da exploração dos pobres (v. 4-6). Por seu turno, Deus é intolerante com todo tipo de injustiça, ainda mais quando é a negação de um direito dos pobres, que trabalharam, mas não receberam o salário para a sobrevivência (v. 4). Quem comete esse tipo de injustiça não ficará impune (v. 5), pois é uma forma de assassinato (v. 6).
Deus, que é livre para conceder seus dons à sua maneira, preocupa-se também com a distribuição dos bens materiais. Por isso, condena a ganância e o acúmulo, sobretudo quando é fruto de exploração. E quase sempre é.
3. Evangelho (Mc 9,38-43.45.47-48) O Evangelho desta liturgia, continuação imediata daquele do domingo passado, apresenta mais uma atitude incoerente dos discípulos, a correção de Jesus e o ensinamento. A incoerência denunciada desta vez é a mentalidade fechada e exclusivista: a tentação deles de monopolizar os dons do Espírito e o Evangelho, proibindo um homem de agir em nome de Jesus somente por não os seguir, como revela a fala de João (v. 38). Ora, a atividade de expulsar demônios significa a promoção da liberdade e da dignidade das pessoas. É o rompimento com as estruturas de morte e opressão vigentes em qualquer sistema. Quem faz isso está em sintonia e comunhão com Jesus, mesmo que não pertença a determinado grupo ou comunidade eclesial. Por isso, a reação do Mestre é de total reprovação à mesquinhez dos discípulos (v. 39-40). Ninguém deve ser impedido de fazer o bem nem de identificar-se com Jesus apenas por não pertencer a um grupo. Dos discípulos exige-se abertura, tolerância e consciência de que a mensagem do Evangelho não é propriedade de ninguém. Jesus fecha a questão com um simples e profundo provérbio (v. 40). Ser contra é optar pelo mal e fechar-se aos valores do Reino; quem não faz isso já está, consequentemente, a favor e, portanto, apto a agir em nome de Jesus, independentemente de pertença a algum grupo ou instituição religiosa.
Jesus aprofunda a catequese com exemplos simples e concretos. Dar um copo de água é gesto que significa acolhida, criação de vínculos (v. 41). Quem faz isso é recompensado; a recompensa, porém, não é um prêmio, mas a comunhão com Jesus. Em seguida, ele apresenta exigências cada vez mais radicais para o discipulado, como o cuidado em não escandalizar os pequeninos que creem nele (v. 42a). Escandalizar significa criar obstáculo, fazer o outro tropeçar, tornando a vida mais difícil. Os pequeninos são todas as categorias de pessoas vulneráveis e historicamente excluídas. Jesus reprova e adverte severamente quem dificulta a vida dessas pessoas, prevendo um destino trágico (v. 42b): a morte por afogamento era a mais temida pelos judeus, pelo risco de não encontrar o corpo para o sepultamento. Daí a ênfase de Jesus em mostrar que o ser humano se autocondena quando se torna obstáculo na vida dos pequeninos.
Na sequência, Jesus menciona alguns membros do corpo humano para ilustrar ainda mais a atitude radical que seu seguimento exige. Não é um convite para amputá-los, mas advertência para conduzir a vida sempre em favor do bem. As mãos, os pés e os olhos (v. 43-47) eram considerados os membros do corpo responsáveis pelo bom ou mau comportamento das pessoas, segundo a mentalidade semita. As mãos representam o agir humano, e os pés a conduta, podendo levar a pessoa por caminhos retos ou tortuosos. Os olhos, por sua vez, são a porta de entrada dos sentimentos e desejos; tudo o que é processado no coração, sentimentos bons e maus, passa antes pelo olho. Diante disso, se esses membros são usados para o mal, é preferível privar-se deles.
Com uma linguagem tão severa, Jesus ensina que a vida não tem sentido quando não é pautada pelo bem ao próximo. Afogamento e fogo são imagens de uma vida sem sentido, fora do Reino. Esse Reino não é um paraíso para o futuro, mas o projeto de Deus para ser vivido desde agora; é o mundo justo e fraterno, incompatível com todas as formas de dominação, exclusivismo, autoritarismo e ausência de amor e justiça.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO Apresentar a relação entre as leituras, evidenciando a atualidade de cada uma. Recordar o significado do dia da Bíblia, reforçando a importância da Palavra de Deus na vida da comunidade e de cada pessoa. Chamar a atenção para os frutos que a Palavra de Deus deve gerar na comunidade: a tolerância e o respeito às diferenças, a acolhida a todos, com preferência pelos mais necessitados, os pequeninos. Mostrar a importância de reconhecer a liberdade de Deus e sua presença nas outras experiências de fé.
Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
*é presbítero da diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia (Insaf), no Recife, e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN). E-mail: [email protected]