Publicado em novembro-dezembro de 2020 - ano 61 - número 336 - pág.: 46-49
NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO – 22 de novembro
Por Ir. Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj
Todos os povos da terra estarão reunidos diante dele
I. INTRODUÇÃO GERAL
Esta solenidade não tem por tema central o poder de Deus, como muitos pensam. Celebrar Cristo Rei do Universo significa, antes de tudo, a universalidade da salvação, ou seja, a boa notícia de que ela é oferecida a todos e de que Deus não faz acepção de pessoas. Celebrar a realeza de Jesus significa que a realidade por ele semeada (pequena qual semente de mostarda) vai se plenificar e dar frutos que podem ser usufruídos por todos. O objetivo de Deus sempre foi se manifestar a todos como Pai amoroso que perdoa incondicionalmente, que “faz nascer o sol sobre os bons e os maus” (Mt 5,45) e deseja dar a todos a vida plena. No entanto, apenas quando acreditarmos realmente que seu amor incondicional deve ser revelado a todos, a cada tradição e cultura – e que os povos necessitam receber a revelação divina por meio de sua própria sensibilidade para o transcendente –, poderemos ser cristãos menos soberbos e mais humildes. Quando isso acontecer, Cristo será, de fato, soberano em nossa vida.
II.COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. Evangelho (Mt 25,31-46)
O Evangelho se inicia com uma parábola para indicar a chegada definitiva do Reino de Deus. A menção ao Filho do Homem significa a volta de Jesus e o julgamento. Na Antiguidade, a principal função do rei era realizar julgamentos com base nos quais implantava a justiça, absolvendo os inocentes e castigando os culpados. Desse modo, a harmonia se instaurava na sociedade. Jesus usa essa linguagem da época como metáfora para indicar que o Reino de Deus é justiça. A tarefa de Jesus, no fim dos tempos, é indicada pelos termos “Filho do Homem”, “rei” (sentado no trono) e “pastor”. Em primeiro lugar, ele nos mostra, pela parábola, que a separação será realizada apenas no final. Para elucidar isso, compõe sua narrativa com imagens muito comuns naquela época. De fato, na região onde Jesus morava, os pastores cuidavam de ovelhas e cabras ao mesmo tempo. Os rebanhos eram mesclados. Somente ao cair da tarde os pastores separavam os animais, porque as ovelhas suportam melhor o frio da noite, e as cabras tinham necessidade de dormir num abrigo, do contrário ficavam doentes. Com essa breve parábola, Jesus está afirmando que a separação entre pessoas boas e más será feita somente no fim dos tempos, à semelhança da separação do rebanho, feita no fim do dia. Este é o primeiro ponto do ensinamento desse Evangelho.
Um segundo ponto é que, tanto no mundo quanto na Igreja, convivem misturados os que praticam o bem em favor dos sofredores e excluídos e aqueles que nada fazem pelas pessoas mais necessitadas. Portanto, não podemos passar uma linha no chão e dizer que, deste lado, o da Igreja, estão os que ajudam e, do outro lado, fora da Igreja, estão os que não se sensibilizam pela dor do outro. Essa constatação de Jesus deveria deixar os cristãos menos arrogantes e mais humildes. No mundo, convivem os opressores e os oprimidos, os que acumulam muitas riquezas e os que passam fome. No mundo também estão aqueles que dão a vida em favor de um mundo melhor e o fazem sem nenhuma motivação religiosa. Essa mistura permanecerá até o fim dos tempos, quando todos estarão diante do Filho do Homem, que reinará sobre todas as nações. Somente aí se dará a separação, não entre os que são cristãos e os que não são cristãos, mas entre os que praticam o bem e os que não o praticam. A bem-aventurança do Reino é vivenciada por aqueles que compartilham a vida: alimentam o faminto, acolhem o peregrino, ajudam o enfermo etc. O contrário, a condenação, é vivida por aqueles que se fecham no egoísmo, estejam estes dentro ou fora da Igreja. A surpresa nesse tipo de julgamento é grande, pois tanto os que praticaram o bem quanto os que não o praticaram têm uma reação de espanto com o veredicto do rei, já que ambos os grupos esperavam que a separação fosse feita entre religiosos e não religiosos, crentes e descrentes. Isso mostra que o Reino de Deus é muito diferente do que geralmente se pensa. É um Reino de amor e de partilha, no qual não há lugar para o egoísmo, a intolerância, a indiferença etc.
2. I leitura (Ez 34,11-12.15-17)
Na época do profeta Ezequiel, o povo da Bíblia estava espalhado entre várias nações na vastidão do Império Babilônico. O texto compara essa situação com um rebanho disperso durante uma tempestade “num dia de nuvens e escuridão”. No entanto, da mesma forma que um pastor reúne as ovelhas após a tempestade, Deus vai reunir seu povo novamente na terra que lhe deu por herança. Como um bom pastor, Deus irá recolher e contar o “rebanho” para que todos possam estar seguros sob sua proteção e cuidados. Ezequiel afirma que o Senhor vai lidar com as ovelhas de acordo com a necessidade de cada uma: “procurar a ovelha perdida, reconduzir a extraviada, enfaixar a da perna quebrada, fortalecer a doente e vigiar a ovelha gorda e forte”, para que esta última não seja presa fácil das feras. Essas imagens evocam a justiça e o cuidado de Deus para com seu povo.
Continuando a comparação com a realidade pastoril daquela época, o profeta nos mostra a soberania de Deus, ao conduzir seu povo ao longo da história. O Senhor está empenhado em instaurar uma nova ordem das coisas, na qual a equidade estará em oposição à situação injusta do passado. As injustiças sociais vão desaparecer, porque o Senhor vai atender às necessidades de cada ovelha. A situação de opressão é representada pelo que acontece entre os animais do rebanho: os animais mais fortes chifram os mais frágeis, empurrando-os para longe do alimento. Foi algo semelhante a isso que fizeram os líderes de Israel com os pobres e necessitados. No antigo estado de coisas, os mais fortes e os mais poderosos abusaram da sua situação privilegiada para desprezar os direitos dos mais fracos. Por isso, o profeta afirma que Deus vai fazer “justiça entre uma ovelha e outra, entre carneiros e bodes”.
3. II leitura (1Cor 15,20-26.28)
Na segunda leitura, Paulo está explicando aos coríntios o significado da ressurreição de Cristo para os cristãos. Ela é o resultado da poderosa intervenção do Pai, por meio da qual se realiza a vitória de Cristo sobre a morte. A fim de melhor explicar as consequências advindas da ressurreição de Cristo, Paulo emprega duas figuras retiradas do Antigo Testamento. A primeira delas é a prática de ofertar as primícias a Deus. “Primícias” é termo que descreve os primeiros frutos (Lv 23,10-14), os quais eram ofertados a Deus e representavam a totalidade da colheita. Da mesma forma, a ressurreição de Jesus garante nossa própria ressurreição, já que Cristo nos representa em sua oferta ao Pai. A segunda figura tirada do Antigo Testamento é a de Adão. Paulo faz uma analogia entre dois homens representativos. O primeiro Adão representa todas as pessoas que vivem em um mundo caracterizado por egocentrismo, pecado e morte. Isto é, o primeiro Adão representa um modo de viver da humanidade. Em Cristo, novo Adão, o Pai realiza nova criação. Por meio de Cristo ressuscitado, a humanidade será vivificada na ressurreição final. Como o novo Adão é também criador e inaugurador de nova humanidade, de novo modo de viver, essa nova criação começou em sua morte e ressurreição e terá sua consumação no fim dos tempos.
O reinado de Cristo, isto é, a era do Messias, teve início com a ascensão de Jesus e sua exaltação à direita de Deus. A expressão “é preciso que ele reine” indica que Cristo deve continuar a reinar até o final, quando todos os adversários do Reino de Deus forem destruídos, pois a vinda de Cristo vai aniquilar o pior dos poderes, a morte. O triunfo sobre a morte se dará mediante a ressurreição de todos os que pertencem ao Cristo. Isso significa que o fim último da caminhada do crente é a participação no Reino de Deus, na vida plena, para a qual somos criados e recriados.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
As leituras apontam para o fim dos tempos, pois somente aí o Reinado de Deus, isto é, sua soberania, se estenderá sobre toda a humanidade. Contudo, elas se referem muito mais ao presente da história do que ao fim dos tempos: trata-se mais de quem somos e de como deveríamos agir do que de uma descrição de como será no final de nossa vida. Aquilo que viveremos no futuro após a morte, ou seja, na vinda de Jesus, depende do nosso modo de viver agora. É nosso modo de viver no aqui e agora que define a bem-aventurança ou a maldição futura no fim dos tempos. Podemos viver à maneira do antigo Adão ou do novo Adão. Podemos viver como aqueles que usufruem do triunfo de Cristo sobre o pecado e a morte ou como aqueles que, mesmo dentro da Igreja e aparentando santidade, vivem submissos ao egoísmo e ao pecado. Hoje poderíamos atualizar as palavras de Jesus da seguinte forma: malditos todos aqueles que reduzem a religião somente a dogmas e ritos e não ensinam que religião verdadeira é partilhar a vida. Estes estão em conluio com todos aqueles que empobrecem e arrebatam os direitos fundamentais de seus irmãos, porque estão contra a única lei do Reino: o amor.
Ir. Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj
graduada em Filosofia e em Teologia, cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje (MG). Atualmente, leciona na pós-graduação em Teologia na Universidade Católica de Pernambuco – Unicap. E-mail: [email protected]