Publicado em setembro-outubro de 2020 - ano 61 - número 335 - pág.: 44-47
24º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 13 de setembro
Por Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
É preciso perdoar de modo ilimitado
I. Introdução geral
A liturgia da Palavra deste domingo propõe o perdão como tema central, apresentando clara continuidade com a do domingo passado, que tratou da correção fraterna, atitude que exige a capacidade de perdoar reciprocamente. Junto com o amor, o perdão constitui o núcleo central do ensinamento de Jesus, por isso é elemento essencial para a vida da comunidade cristã e de cada pessoa em particular. Esse tema é tratado, de modo mais explícito, na primeira leitura e no Evangelho.
O texto do Eclesiástico repudia o rancor e a vingança e ensina que o pedido de perdão a Deus só é credível se estiver acompanhado pela disposição e pela prática concreta do perdão ao próximo. Com isso, o autor praticamente antecipa o Evangelho – não apenas o trecho lido neste dia, mas também outras passagens de Mateus, como o discurso da montanha (Mt 5-7), especialmente o trecho correspondente à oração do pai-nosso (Mt 6,9-13). A segunda leitura também se alinha a esse tema, ao recordar que ninguém vive para si mesmo, mas para o Senhor. Logo, são indispensáveis a tolerância, o respeito e a aceitação das diferenças entre os membros da comunidade, para que a fraternidade seja vivida. E isso só é possível com disposição para amar e perdoar sem limites, na certeza de que todos pertencem ao Senhor.
II. Comentários dos textos bíblicos
1. I leitura: Eclo 27,33-28,9
O livro do Eclesiástico, também chamado de Sirácida, do qual é tirada a primeira leitura, foi escrito em hebraico por volta do ano 185 a.C., em Jerusalém, por um sábio judeu chamado Jesus Ben Sirac, com o objetivo de preservar as tradições culturais de Israel, ameaçadas na época pela dominação grega e pela imposição da respectiva cultura. Quase 50 anos depois, foi traduzido para o grego por um neto do autor, em Alexandria do Egito, para torná-lo acessível também às novas gerações. Composto de 51 capítulos, pertence à categoria dos livros sapienciais da Bíblia. Como é típico da literatura sapiencial, traz reflexões de caráter prático sobre a vida e sobre a Lei, incluindo as relações do ser humano consigo mesmo, com Deus e com o próximo.
O trecho lido neste domingo constitui verdadeira evolução na maneira de conceber o perdão no Antigo Testamento, mostrando a estreita relação existente entre o perdão humano e o perdão de Deus. O autor começa fazendo um alerta: rancor, raiva e desejo de vingança são pecados graves e, por isso, são sentimentos incompatíveis com uma pessoa que crê (27,33-28,1). Em seguida, mostra ser completamente incoerente pedir perdão a Deus sem que haja disposição para perdoar as ofensas do próximo (28,2-4). É claro que o perdão de Deus não está condicionado ao perdão humano, e o autor sabe disso. No entanto, é necessário haver coerência entre o que se pede e o que se pratica. Na Lei, já havia uma doutrina sobre o perdão ao próximo (Lv 19,17-18; Ex 23,4-5), e certamente o autor se inspira nela, dando, porém, enorme salto qualitativo e aproximando-se do ensinamento de Jesus: “perdoai-nos as nossas ofensas como perdoamos a quem nos ofendeu” (Mt 6,12), o que está muito relacionado ao Evangelho do dia.
Além das implicações na relação com Deus, o autor vê a condição humana com seus limites, sobretudo no que diz respeito à morte, como uma das razões para não cultivar rancor ou ódio contra o próximo (28,5-7). E esse dado também é muito significativo. Ora, o fato de sermos todos iguais e destinados a um mesmo fim é motivo para procurarmos viver em harmonia com Deus e com o próximo. É para isso que apontam os Mandamentos, toda a Lei (28,8-9) e, sobretudo, o ensinamento de Jesus, ao propor a prática ilimitada do perdão.
2. II leitura: Rm 14,7-9
Desde a retomada do Tempo Comum, após a conclusão do tempo pascal, a segunda leitura vem sendo tirada da carta de Paulo aos Romanos. O texto lido neste dia, que marca a conclusão dessa sequência, faz parte da seção exortativa da carta (Rm 12,1-15,13), que trata de questões relacionadas à vida cotidiana da comunidade e ao comportamento dos cristãos. No capítulo 14, ao qual pertence a leitura deste domingo, Paulo trata especificamente das relações dos cristãos entre si, recomendando o respeito e a tolerância diante das diferenças de comportamento e mentalidade.
Formada por cristãos oriundos de tradições culturais diferentes, a comunidade de Roma vivia tensões que ameaçavam sua unidade, em razão da falta de tolerância e compreensão recíprocas. Diante disso, Paulo chama-lhes a atenção, mostrando que ninguém vive para si mesmo (v. 7) e, por isso, não deve haver isolamento ou fechamento egoísta na comunidade. Não obstante as diferenças individuais e culturais, todos na comunidade devem convergir para o Senhor (v. 8), e é isso o que importa. Quem tem essa convicção não se deixa levar por questões secundárias; as diferentes maneiras de expressar e viver a fé na mesma comunidade devem ser respeitadas e toleradas, pois o que une a todos é a pertença comum ao Senhor. Quem vive para o Senhor não guarda rancor nem julga o próximo; respeita as diferenças, perdoa e ama de maneira ilimitada, porque sabe que Cristo morreu e ressuscitou por todos e, por isso, é o Senhor dos vivos e dos mortos (v. 9).
3. Evangelho: Mt 18,21-35
O Evangelho do dia é a continuação e conclusão do “discurso comunitário” do Evangelho de Mateus, cuja introdução e contextualização fizemos, embora brevemente, no comentário do domingo passado. Naquela ocasião, lemos o trecho que trata da correção fraterna e da oração. O trecho agora lido traz importante catequese sobre o perdão, elemento central na mensagem de Jesus e, por conseguinte, essencial para a vida da comunidade cristã; não à toa, é o tema conclusivo do discurso que trata especificamente das relações entres os membros da comunidade. O texto é composto de um pequeno diálogo entre Jesus e Pedro (vv. 21-22) e de uma parábola explicativa (vv. 23-35).
O perdão não é um tema novo na Bíblia, como atesta a primeira leitura. A novidade do Evangelho consiste na intensidade da proposta de Jesus. Com efeito, nos círculos rabínicos da época, recomendava-se que o perdão deveria ser dado até três vezes a uma mesma pessoa. A pergunta de Pedro (v. 21) já reflete uma superação dessa mentalidade pelos discípulos de Jesus: o número sete evoca perfeição e plenitude, além de ser mais do que o dobro daquilo que os rabinos recomendavam. Talvez Pedro esperasse até um elogio de Jesus por isso. Mesmo dando um passo a mais em relação ao que vigorava na época, a mentalidade de Pedro continuava limitada quantitativamente. A resposta de Jesus ensina a romper com todos os limites imagináveis: setenta vezes sete (v. 22). Embora contável (70x7=490), esse número indica infinitude, pois as relações na comunidade cristã não podem ser condicionadas a cálculos. Significa que não há limites para o perdão. Com a resposta de Jesus, Mateus faz também uma denúncia contra possíveis práticas de vingança, contrapondo o ensinamento de Jesus à postura de Lamec, um dos descendentes de Caim, o qual jurou vingar-se até 77 vezes (Gn 4,24). Assim, o perdão é também o meio mais eficaz de combate à violência. Por isso, sua prática ilimitada é indispensável na comunidade cristã.
Para concluir, Jesus conta uma parábola explicativa, a do “servo malvado” (vv. 21-35), com dois objetivos: o primeiro é mostrar a abundância do perdão ilimitado de Deus; o segundo é mostrar quão incoerente é pedir o perdão do Pai quando não há disposição de perdoar ao próximo também de modo ilimitado. A enorme fortuna perdoada pelo patrão (vv. 24-27) ilustra a infinita misericórdia de Deus. A maldade do servo, ao não perdoar uma dívida pequena a um companheiro (vv. 28-31), denuncia a hipocrisia humana. A parte conclusiva (vv. 32-35), longe de comparar Deus a um patrão vingativo, quer apenas enfatizar que a falta de perdão entre os membros da comunidade traz consequências irreparáveis. Essa parábola explica e reforça não apenas o diálogo precedente entre Jesus e Pedro, mas também outras passagens evangélicas, especialmente a do discurso da montanha (Mt 6,12.14-15). Deus perdoa sempre, e o seu perdão independe de méritos humanos, mas é necessário haver esforço entre os seres humanos para refletir, o máximo possível, o comportamento de Deus em seu agir.
III. Pistas para reflexão
Trata-se de celebração propícia para ampla catequese sobre perdão, tolerância e respeito às diferenças. É oportuno preparar bem o ato penitencial, assim como a homilia. Convém enfatizar a relação entre as leituras e mostrar a centralidade que o perdão ocupa no ensinamento de Jesus. A prática do perdão, junto com o amor, é a principal característica da pertença de uma comunidade ao Senhor; recordar que só vive para ele quem é capaz de perdoar, como ensina Paulo na segunda leitura. Estimular a prática do perdão em todas as instâncias, começando pelas famílias, e incentivar a continuar a celebrar o mês da Bíblia.
Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN).