Roteiros homiléticos
Publicado em maio–junho de 2020 - ano 61 - número 333 - pág.: 56-59
Corpo e Sangue de Cristo – 11 de junho
Por Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
Comer do pão para viver eternamente
I. Introdução geral
Esta celebração é verdadeira extensão solene da Quinta-feira Santa. Nela a Igreja reafirma e proclama solenemente a sua fé na Eucaristia como “memorial da morte e ressurreição de Jesus Cristo” e como alimento que sustenta e conduz à vida eterna. Embora nenhuma das leituras desta liturgia narre a instituição da Eucaristia enquanto rito, todas três são altamente eucarísticas. Acima de tudo, ensinam que Deus alimenta e nutre as suas criaturas. No deserto, Deus alimentou o seu povo com a força da sua palavra e com o maná (I leitura), considerado uma prefiguração da Eucaristia desde as primeiras gerações cristãs. Jesus mesmo, na totalidade da sua pessoa, apresenta-se como o alimento doado por Deus para a vida do mundo (evangelho). O pão repartido na comunidade é alimento e vínculo de união com Jesus Cristo e dos cristãos entre si (II leitura).
Na Eucaristia celebramos, então, a nossa união com Deus, a identificação com Cristo e a união fraterna entre os membros da comunidade. Participar dela, portanto, é atitude comprometedora: é entrar em comunhão profunda com Jesus para assimilar a sua vida com a totalidade do seu evangelho, tornando-se, como ele, também doação de vida, justiça, amor e solidariedade. É uma vida assim que queremos que se torne eterna, como a dele se tornou com a ressurreição. Por conseguinte, alimentamo-nos dele no pão eucarístico, na esperança de com ele ressuscitarmos e, dessa forma, vivermos eternamente.
II. Comentários dos textos bíblicos
1. I leitura: Dt 8,2-3.14b-16a
O livro do Deuteronômio, cujo nome significa literalmente “segunda lei”, é composto de três discursos atribuídos a Moisés que trazem forte teor exortativo, para que Israel se mantenha fiel à Lei do Senhor. Por isso, as exortações e advertências são marcadas pela recordação dos grandes feitos de Deus em favor de Israel. A primeira leitura é tirada do segundo discurso.
Estando prestes a entrar na terra prometida, Israel não pode esquecer o caminho percorrido até então, marcado por muitas provações ao longo dos 40 anos de marcha pelo deserto. Se conseguiu superar todas as provas e dificuldades, isso se deve aos favores do Senhor Deus, que estava ao seu lado, dando-lhe forças e livrando-o dos perigos (cf. vv. 2.15). A sobrevivência no deserto por tanto tempo seria impossível, se não fosse a proteção e a providência de Deus. Mesmo que o ser humano não viva somente de pão, ainda assim o alimento físico é indispensável; por isso, o Senhor providenciou o maná (cf. vv. 3.16). Porém, o verdadeiro nutrimento de Israel no deserto foi a força da palavra de Deus (cf. v. 3).
A memória histórica – sobretudo a recordação dos momentos mais difíceis para o povo de Israel, incluindo o tempo em que foi escravo no Egito (cf. v. 14) – foi um elemento importante da pedagogia divina para motivá-lo à obediência e ao cumprimento da sua vontade. Por isso, é importante recordar quem o libertou e esteve sempre ao seu lado, dando forças e protegendo, alimentando e saciando: o Senhor Deus. O mesmo processo se aplica ao cristianismo com a memória da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
2. II leitura: 1Cor 10,16-17
A segunda leitura é tirada da primeira carta aos Coríntios, um dos principais escritos de Paulo. Embora curto, composto de apenas dois versículos, o trecho lido nesta liturgia é muito rico e comprometedor. Na época da carta, a comunidade de Corinto vivia o auge das suas divisões e rivalidades, havendo relações hostis entre muitos dos seus membros. Na necessidade urgente de recuperar a unidade, Paulo recorda o valor da Eucaristia: é dela que emana a unidade da comunidade, no que diz respeito tanto à comunhão dos cristãos com Cristo quanto à união deles entre si. Logo, a comunhão com o corpo e o sangue de Cristo é fonte de vida fraterna.
As referências ao “cálice da bênção” e ao “pão que partimos” (v. 16) evocam, obviamente, a última ceia de Jesus com seus discípulos, às vésperas da sua paixão, e demonstram que a celebração fraterna como memória daquela ceia já era uma tradição consolidada naquela comunidade (cf. 1Cor 11,23-26). Além de estimular a participação da comunidade na celebração eucarística, a certeza da comunhão gerada com o corpo e o sangue de Cristo é uma advertência sobre a participação em outros banquetes cultuais. Com efeito, muitos dos cristãos de Corinto tinham saído de religiões pagãs, e alguns ainda frequentavam seus cultos. Para Paulo, é importante evitar isso, para não serem acusados de fazer comunhão com os ídolos pagãos.
O chamado à unidade parte da certeza de que há um só pão, Jesus Cristo (cf. v. 17). Quem se alimenta desse pão forma um único corpo, entrando em comunhão profunda com o Senhor e com os outros que participam do mesmo banquete. A comunhão com o corpo de Cristo, portanto, gera uma união profunda não apenas com Jesus, mas também dos cristãos entre si. Daí podermos dizer que Eucaristia e amor ao próximo são inseparáveis.
3. Evangelho: Jo 6,51-58
O capítulo 6 do Quarto Evangelho foi construído com base em dois importantes eventos do Antigo Testamento: a multiplicação dos pães, por Eliseu (cf. 2Rs 4,42-44), e o episódio do maná no deserto (cf. Nm 11,13.22). Nesse capítulo está o relato do chamado sinal da multiplicação dos pães, o único dos milagres de Jesus narrado por todos os quatro evangelhos. A versão joanina é a mais rica, pois, além do relato do milagre, traz um longo discurso de Jesus, chamado de “discurso sobre o pão da vida”, no qual ele explica o sentido do sinal realizado. O evangelho desta liturgia corresponde à parte conclusiva desse discurso, na qual Jesus é apresentado como o pão da vida.
A autoafirmação de Jesus como “o pão vivo descido do céu” (v. 51) não é ainda uma referência ao pão eucarístico repartido na comunidade. Essa afirmação indica, antes de tudo, que é ele o Verbo encarnado e o único que revela o Pai com perfeição. Logo, só alcança a vida eterna quem faz experiência com ele, quem come a sua carne, o que significa assimilar a sua própria vida e acolher o dom do Espírito. Para os judeus, essa afirmação pareceu embaraçante e até escandalosa (cf. v. 52). Afinal, sua única referência de alimento descido do céu era o antigo maná comido pelos antepassados no deserto, e sabiam que era um alimento perecível (cf. v. 58).
A declaração solene de Jesus, “em verdade, em verdade” (v. 53), indica a importância do que está sendo afirmado. A referência paralela à carne e ao sangue significa a condição humana em sua totalidade. É impressionante o salto de qualidade: de doador de um alimento perecível (cf. Jo 6,1-13), em pouco tempo, ele se apresenta como o próprio alimento para a vida eterna, doando-se completamente. Só participa da vida eterna quem o recebe como alimento. Pela participação na vida de Jesus em sua totalidade, o ser humano recebe o dom da ressurreição (cf. v. 54), pois é a assimilação da sua vida que gera comunhão, uma comunhão indestrutível com ele.
A Eucaristia, enquanto sacramento, é a expressão concreta dessa comunhão. Por meio dela, temos a oportunidade de viver com Jesus uma relação semelhante à dele com o Pai (cf. v. 57), o que deve gerar também a construção de relações saudáveis e fraternas na comunidade.
III. Pistas para reflexão
Além de saciar nossa fome e sede de Deus, a Eucaristia acende em nós o desejo de vida eterna; quando dela participamos, livres e conscientes, compreendemos melhor o sentido da vida, a ponto de querermos torná-la eterna. E é somente a comunhão com a pessoa de Jesus Cristo que pode eternizar nossa vida. Sendo a Eucaristia sacrifício e refeição, quando dela participamos, assimilamos o Senhor em nossa vida, entramos em comunhão profunda com ele e com a comunidade reunida e nos abrimos para a eternidade, antecipando nossa participação no banquete celestial, na consumação dos tempos. Na homilia, é recomendável priorizar a mensagem das leituras e recordar que a fé e a participação na Eucaristia devem se traduzir em sinais e gestos concretos. Não há sentido em participar da refeição fraterna da comunidade sem a disposição de viver como irmão ou irmã. Compreendemos o sentido da Eucaristia e fazemos verdadeira comunhão quando assimilamos a vida de Jesus na nossa, vivendo à sua maneira.
Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN). é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN).