Publicado em julho-agosto de 2020 - ano 61 - número 334 - pág.: 52-55
18º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 2 de agosto
Por Ir. Rita Maria Gomes,
Onde o Reino dos céus se torna realidade, não há fome
I. Introdução geral
Nos domingos precedentes, as leituras do Evangelho versavam sobre o Reino dos céus no discurso parabólico de Jesus (Mt 13,1-52). Na liturgia deste domingo, a questão do Reino permanece, mas agora em gestos e imagens que revelam o Reinado de Deus. Uma das imagens mais fortes da realidade do Reino é a abundância de alimentos, por isso o Evangelho e a primeira leitura trazem a imagem de um “banquete”, e a segunda leitura assegura a união amorosa de Deus, por meio de Jesus Cristo, com aqueles a quem chamou para fazerem parte de seu Reino. Por isso tudo, o salmista pode cantar: “Vós abris a vossa mão e saciais os vossos filhos” (Sl 144).
II. Comentários dos textos bíblicos
1. Evangelho (Mt 14,13-21)
Na versão mateana da partilha miraculosa do pão, a ocasião é preparada em referência à morte de João Batista. No texto marcano, fonte de Mateus para o texto de hoje, a primeira narrativa do episódio dos pães também está em relação com a morte de João Batista, porém com um acento diferente: o acontecimento segue os questionamentos de Herodes sobre se Jesus era João Batista que tinha ressuscitado (Mc 6,14), disponibilizando a informação sobre a morte do profeta. Contudo, é a volta dos doze da missão a ocasião para o milagre do pão.
Para Mateus, o afastamento de Jesus para um lugar deserto é motivado pelo conhecimento da morte de João Batista. Ao tomar conhecimento da triste notícia, Jesus se afasta para um lugar deserto de barco. Quem vai para um deserto de barco? A referência ao barco indica que o deserto aqui não significa o deserto físico, mas a condição de pouco movimento ou habitação. Chegando ao local, Jesus é recebido pelas multidões, que foram a pé. O aparente desejo de Jesus de estar sozinho malogra. Diante de uma multidão que o procura, todo seu ser se move: “Encheu-se de compaixão e curou os que estavam doentes” (v. 14).
Ao final do dia, os discípulos, também preocupados com a multidão, desejam que Jesus envie aquelas pessoas para que possam ir em busca de alimento. Jesus, no entanto, passa aos discípulos a responsabilidade de alimentar aquele povo. Tudo o que eles têm são cinco pães e dois peixes, a comida habitual do povo daquela região. Jesus pede que levem a ele o que têm e, após pronunciar a bênção sobre os alimentos, entrega-os aos discípulos para que distribuam. O resultado dessa partilha generosa é uma sobra impressionante: 12 cestos cheios. Alimentar 5 mil homens, sem contar mulheres e crianças, indica que, na verdade, se alimentou muito mais do que é possível calcular. A menção às mulheres e às crianças, própria de Mateus, marca a presença e a participação delas no banquete do Reino. É uma indicação de que todos podem ter acesso a ele.
Habitualmente, nos comentários a esse texto, diz-se que os 12 cestos representam as 12 tribos de Israel, o que é correto. Não se costuma dar muita atenção, no entanto, ao fato de que os 12 cestos são as sobras da alimentação de uma multidão indistinta. Se os 12 cestos das sobras representam Israel, isso pode indicar o transbordar da alimentação providenciada por Deus no deserto com Moisés. Nos relatos mosaicos, o maná era a cota que cada um podia comer no dia, não havia espaço para sobras. Aqui, supõe-se que esse alimento ainda servirá para alimentar Israel.
2. I leitura (Is 55,1-3):
A primeira leitura está intimamente conectada com o Evangelho. As multidões devem estar atentas ao convite divino expresso pelo profeta Isaías: “Inclinai vosso ouvido e vinde a mim” (v. 3). O Senhor, no texto de Isaías, convida a vir e a ouvir. O chamado está marcado em “vinde às águas”, “vinde e comei”, “vinde comprar” e, no final, “vinde a mim”. Em seguida, vem o convite a ouvir: “ouvi-me com atenção” e “inclinai vosso ouvido”.
Ir ao encontro de Deus é a condição para já não padecer a fome. O ouvir, nesse texto, tem o sentido de dar assentimento, obedecer. Trata-se do shemah Israel, “ouve, Israel”, que supõe muito mais que a simples capacidade física da audição, é o voltar todo o ser para o Senhor. “Ouvi e tereis vida” (v. 3) é um modo de indicar que a escuta do Senhor é a garantia de vida, tendo como imagem mais forte a alimentação, que garante a força e o vigor do corpo. A escuta é condição para o estabelecimento de uma aliança eterna, inquebrantável, que garante ao povo abundância e vida em plenitude.
3. II leitura (Rm 8,35.37-39)
A segunda leitura traz um texto curto, claro e muito forte. Não existe nada, nem no mundo físico nem no âmbito do transcendente, que possa quebrar a relação de amor que nos une a Deus por meio de Jesus Cristo. O autor da carta expõe os aspectos terrenos e transcendentes de modo diferente. As questões pertencentes ao âmbito do terreno são expostas por meio de perguntas, sendo a primeira a orientadora de todas as outras: quem nos separará do amor de Cristo? Todas as outras são desdobramentos desta: tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada? Ao final, o autor mesmo responde que, graças àquele que nos amou, já somos vencedores sobre todas as dificuldades que possam se levantar contra nós.
O aspecto transcendente, por sua vez, vem exposto como confissão de fé em que não existe nenhuma potência capaz de nos separar do amor de Deus. A pergunta inicial, a respeito da separação em referência ao amor de Cristo, agora está referida ao amor de Deus, manifestado em Cristo. No fim das contas, é um único e mesmo amor.
Uma vez que nos ligamos a Deus por meio de Jesus Cristo, em seu amor não existe nenhuma instância capaz de romper esse laço. A todas as perguntas dessa leitura temos um “não” como resposta.
III. Pistas para reflexão
O primeiro tema a considerar, que liga as três leituras, é a questão do alimento (pão), mesmo que a segunda leitura só toque transversalmente o assunto, quando, entre as perguntas, coloca a “fome”. A fome está implícita na primeira leitura, quando o profeta diz “vinde e comei”, pois antes diz: “vós que tendes sede, vinde às águas”. Essa frase é um convite a beber e saciar a sede. Do mesmo modo, o “vinde e comei” é um convite a saciar a fome. A mesma lógica aparece no Evangelho, com o desejo dos discípulos de despedir a multidão, para que comprasse comida, e a resposta de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Na primeira leitura e no Evangelho, aparece, junto com a questão do alimento, a do dinheiro, que se torna dispensável para a compra do alimento, pois é o próprio Deus quem provê a alimentação.
Por trás de tudo isso, está a noção de Reino dos céus, pois, quando e onde Deus governa, não falta o essencial ao sustento da vida, que é o alimento. No Reinado de Deus, o alimento não é privilégio de alguns, mas direito adquirido por todos, porque ele é o Deus da vida e a seus filhos não pode faltar o sustento.
Ir. Rita Maria Gomes,
é natural do Ceará, onde fez seus estudos de Filosofia no Instituto Teológico e Pastoral do Ceará (Itep), atual Faculdade Católica de Fortaleza. Possui graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde lecionou Sagrada Escritura. Atualmente é professora na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, que tem como carisma o estudo e o ensino da Sagrada Escritura.