A vida em comunidade nas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (2019-2023)
Por Pe. Eliseu Wisniewski, cm
Introdução
Foi na 57a Assembleia Geral dos Bispos do Brasil, realizada em Aparecida-SP, de 1º a 10 de maio de 2019, que as Diretrizes para a Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (2019-2023) ocuparam o lugar de tema central. Como sabemos, as Diretrizes são a tentativa de escuta dos sinais dos tempos e dos desafios que neles se apresentam, abordando aspectos prioritários da ação evangelizadora e a indicação dos rumos a serem seguidos e inspirando o planejamento da Pastoral de Conjunto das Igrejas particulares no Brasil. Ao colocar-se como servidora da humanidade, a Igreja reconhece o momento histórico em que se encontra e é convocada a buscar caminhos para a transmissão da fé. Trata-se do encontro entre o único e eterno evangelho com a vida das pessoas e povos em determinado momento da história. Para a Igreja, o desafio que se destaca é o que se relaciona mais diretamente com sua missão: a transmissão integral da fé no interior de uma cultura em que se verificam rápidas e profundas transformações.
Dito de outra forma, a Igreja no Brasil – para corresponder melhor à ação do Espírito numa realidade em constante transformação –, no seu rico processo de planejamento pastoral, elabora suas diretrizes, fazendo, para isso, duas perguntas fundamentais: o que está acontecendo com o mundo de nossos dias e em que aspectos o atual momento histórico interpela a ação evangelizadora. Desse modo, busca-se identificar as causas e discernir consequências evangelizadoras, compreendendo a realidade para melhor interagir com ela, em vista do crescimento do Reino de Deus, e levando em consideração que toda ação evangelizadora e pastoral tem como meta a salvação da pessoa e da humanidade.
As Diretrizes apontam um desafio imenso, pois, em cada indicação, pedem o esforço de não nos assustarmos diante das transformações pelas quais passa o mundo, mas, confiantes no Crucificado-Ressuscitado que tudo venceu, olharmos para o horizonte novo, assumindo corajosamente o que a graça de Deus nos pede para os dias de hoje.
A fim de ampliar e avançar um processo eclesial promovido desde a recepção do Documento de Aparecida e o Magistério do papa Francisco, por meio das Diretrizes Gerais de 2011-2015, nas conhecidas “urgências pastorais” – que diziam respeito à busca e ao encontro de caminhos para a transmissão e a sedimentação da fé num período histórico de transformações profundas e tiveram continuidade no quadriênio seguinte (2015-2019) –, as Diretrizes de 2019-2023, tendo em conta a cultura urbana, propõem agora como eixo central a “comunidade cristã”. Esta é concebida como a “casa dos cristãos” e é sustentada por quatro pilares, que refletem as quatro dimensões das primeiras comunidades cristãs retratadas nos Atos dos Apóstolos (cf. At 2,42; At 8,48): 1) casa da Palavra: iniciação à vida cristã e animação bíblica da pastoral; 2) casa do pão: liturgia e espiritualidade; 3) casa da caridade: serviço à vida plena para todos; 4) casa aberta: estado permanente de missão. A Igreja no Brasil assume o compromisso e o empenho de formar comunidades que sejam casa da Palavra, do Pão, da Caridade e da Missão.
É precisamente do tema da comunidade cristã que queremos tratar aqui. No desenvolvimento desse tema, percorrendo a Introdução e os quatro capítulos que compõem o texto das Diretrizes – 1) O anúncio do evangelho de Jesus Cristo; 2) Olhar de discípulos missionários; 3) A Igreja nas casas; 4) A Igreja em missão –, recolhemos deles o que se diz a respeito da cultura urbana, da ação evangelizadora e da comunidade cristã, a fim de perceber como esses três elementos estão interligados; a partir daí, chamamos a atenção para alguns elementos a serem levados em conta pela comunidade cristã para que, de fato, esta seja o modelo de vida cristã, testemunho encarnado na história, encravado nas realidades, comprometida com as dores e lutas dos homens e das mulheres, dos jovens, crianças e idosos de nosso país, desejosos de testemunhar outro mundo possível, uma realidade nova: o Reino de Deus.
1. A cidade: imagem importante para a ação evangelizadora em nossos dias
As Diretrizes de 2019-2023 assumem o novo perfil de espaço urbano (cf. n. 28) para possibilitar o salto para uma experiência eclesial que corresponda à necessidade humana, antropológica, de comunidade, pois “só existe efetiva comunidade onde os relacionamentos humanos são marcados pelo conhecimento, pela mútua interpelação e pelo mútuo enriquecimento, por sonhos e causas comuns” (AMADO, 2010, p. 76).
Na esteira de Aparecida, as Diretrizes reafirmam que estamos numa mudança de época. Trata-se de “processo em andamento” (n. 44), e uma das maneiras para compreender esta mudança de época pode ser encontrada na imagem da cidade. Outras imagens também podem ser usadas, mas a figura da cidade ajuda a expressar o que está acontecendo no mundo de hoje. O olhar das Diretrizes sobre as cidades não é pessimista e intolerante, buscando nos lançar numa espécie de “guerra santa” contra um inimigo a ser combatido, mas um olhar carregado de positividade (cf. n. 114): “um ambiente a contemplar” (n. 32), porque “é o lugar da presença de Deus” (n. 10; 47), um Deus que “habita a cidade” (n. 46; 72) e “está no meio de nós” (n. 72; cf. Mt 28,20; Dt 31,6). E “contemplando o mundo com os olhos de Deus, é possível perceber e acolher o grito que emerge das várias faces da pobreza e da agonia da criação (n. 102)”, pois as questões sociais, a defesa da vida e os desafios ecológicos da atual cultura urbana têm que ser enfrentados pelas nossas comunidades numa postura de diálogo, respeito à dignidade da pessoa humana, defesa dos excluídos e marginalizados, compaixão, busca da justiça e do bem comum, e cuidado com o ambiente (n. 104).
Dessa forma, as Diretrizes recepcionam o que o papa Francisco aponta em sua exortação Evangelii Gaudium nos números 71, 72 e 75 ao referir-se às cidades: “culturas em contínuo processo de transformação, de recriação, onde coabitam angústias e buscas de apoio e sentido para a vida, onde existem conflitos, mas também solidariedade, fraternidade, desejo de bem, de verdade, de justiça”. Em 2014, dirigindo-se aos participantes do Congresso Internacional de Pastoral das Grandes Cidades, Francisco alargou os horizontes da ação pastoral nas cidades: “é preciso ter a coragem de realizar uma pastoral evangelizadora audaz e sem receios, porque o homem, a mulher, as famílias e os vários grupos que habitam na cidade esperam de nós, e precisam dela para a sua vida, a boa notícia que é Jesus e o seu evangelho” (SISTACH, 2016, p. 441).
Acrescentam as Diretrizes:
se a realidade se manifesta embaçada, com dores que se apresentam como invencíveis, o discípulo missionário reconhece, testemunha e anuncia que o Senhor não está inerte, que Ele não nos abandonou à própria sorte. Pela força de seu Espírito, o Senhor Jesus se faz presente como a pequena semente que pode chegar a transformar-se numa grande árvore, como o punhado de fermento que leveda uma grande massa, e como a semente que cresce no meio do joio (n. 72).
Assim sendo, a ação evangelizadora, levando em conta a complexidade das cidades (cf. n. 27; 28; 30), é provocada a reconhecer a presença de Deus (cf. n. 46; 47) e o que ele está dizendo e fazendo (cf. n. 32), como bem observou o número 514 do Documento de Aparecida: “a fé nos ensina que Deus vive na cidade, em meio às suas alegrias, desejos e esperanças, como também em meio às suas dores e sofrimentos”. Porém, como toda realidade traz consigo ambiguidades e contradições, é necessário identificar as sombras que negam o Reino de Deus, cabendo à Igreja um olhar prospectivo sobre a cultura urbana, a fim de que estabeleça com ela o diálogo e a ajude, por meio de seus valores e limites, a se abrir ainda mais ao Reino. A convocação ao diálogo é fundamental, levando em consideração que as marcas da mentalidade urbana são, em nossos dias, globais, mundiais e, ao mesmo tempo, diversificadas e plurais.
Chamando a atenção para a complexidade, a abrangência, as diferentes perspectivas na compreensão da presença da Igreja nas cidades e a partir das cidades, e evitando cair nas generalizações e nos reducionismos, as Diretrizes esclarecem e evidenciam o que entendem por ação da Igreja no mundo urbano. Entendem a cidade como o “encontro de estruturas físicas com relações humanas e sociais” (n. 29) e resgatam, do número 19 da Evangelii Nuntiandi, uma compreensão essencial no tocante à evangelização: não se trata tanto de pregar o evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos ou a populações maiores em dimensões de massa, mas de chegar a atingir e como que a modificar pela força do evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação (n. 48).
Em decorrência disso, é a partir das cidades que as Diretrizes olham para o mundo como um todo (cf. n. 28; 31; 32), não abandonando com isso o campo nem deixando de olhar para os ambientes que não estão diretamente nas cidades (cf. n. 10; 28; 46). Trata-se, ao contrário, de perceber que também eles estão marcados pela mentalidade urbana, com todas as consequências – humanas, éticas, sociais e ambientais, entre outras (cf. n. 31). Asseveram as Diretrizes que por detrás disso está o reconhecimento de que nosso mundo está cada vez mais se tornando urbano e isso acontece não só porque a maioria das pessoas tende a residir mais nas cidades que nos campos, como também e principalmente porque a mentalidade das cidades vai se espalhando sobre todos os demais espaços. O mundo se torna uma grande cidade, onde o viver se manifesta fortemente interligado e o estilo de vida das grandes cidades é capaz de influenciar até mesmo o mais distante ponto do planeta, principalmente em decorrência dos atuais meios de comunicação (n. 28; cf. n. 46).
2. Pensamentos, sentimentos, valores… O estilo de vida e a mentalidade da cultura urbana
O primeiro requisito básico para que a evangelização aconteça nas grandes cidades é conhecer a cidade (cf. n. 45; 49). As Diretrizes defendem a tese de que o mundo vai se tornando progressivamente mais urbano (cf. n. 28) não só porque as pessoas tendem a residir cada vez mais nas cidades, mas também porque o estilo de vida e a mentalidade desses ambientes se expandem para as demais regiões. Ninguém está fora do mundo das cidades, pois a mentalidade das cidades vai se espalhando sobre os demais espaços, trazendo, por isso, implicações para a ação evangelizadora, a qual é desafiada a perceber até que ponto esses ambientes estão marcados pela mentalidade urbana, com todas as suas consequências – humanas, éticas, sociais, ambientais, entre outras (cf. n. 47; 48). Assim, todas as iniciativas eclesiais e pastorais se voltam para as cidades, buscando compreender seu jeito de pensar, sentir e agir para nelas incidirem – exigindo, por isso, que a ação evangelizadora seja pensada tendo em conta essa complexidade (cf. n. 45).
As grandes cidades geram e alimentam uma mentalidade (cf. n. 49-56) que traz consequências para o agir pastoral rumo a um estilo novo de evangelizar (a proposta de uma “Igreja em saída” do papa Francisco) e apresentam-se com estas características principais: como o local da individualidade, do consumo e do consumismo; do enfraquecimento das instituições e das tradições; da pluralidade cultural, ética, associativa e religiosa; da alta mobilidade; da aguda fragilidade de referências. Identificando tais características, que afetam o tempo e o espaço, busca-se, com base nelas, tomar conhecimento de que conteúdo as cidades são revestidas para que, em meio aos seus valores e limites, luzes e sombras, ambiguidades e contradições, se abram, ainda mais, ao Reino de Deus.
a) Individualidade. Se, por um lado, a pessoa possui em si uma dignidade irrenunciável e insubstituível, fruto da ação criadora de Deus, por outro, discernimos como sombra do mundo atual a afirmação do indivíduo em detrimento do convívio, da fraternidade e da comunhão. Valores como honestidade, integridade e abnegação correm o forte risco de se verem absorvidos pela mentalidade da autorreferencialidade e da autocontemplação, sem qualquer preocupação com o presente e o futuro.
b) Consumo e consumismo. As pessoas são avaliadas em virtude de sua capacidade de participar dos mecanismos do mercado, isto é, como efetivas consumidoras. Os bens e serviços são disponibilizados a quem tem condições de arcar com os respectivos custos, e tudo tende a ser feito para ser consumido, esgotado e, consequentemente, substituído. O que se faz com os objetos acaba sendo transferido às relações humanas.
c) Pluralidade. Manifesta-se como luz à medida que permite à pessoa exercer o dom da liberdade e escolher em meio a múltiplas variáveis. Manifesta-se como sombra à medida que, diante de cada pessoa, são também colocadas possibilidades de escolha que conduzem não à vida, mas ao sofrimento e à morte. No tocante à pluralidade religiosa, essa realidade é luz à medida que abre possibilidade para que a experiência religiosa seja fruto de uma escolha livre e consciente e convoca pessoas e grupos ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso. Converte-se em sombra quando permite ao indivíduo tornar-se ele mesmo critério absoluto para a escolha de um caminho religioso; quando enseja interpretações da Palavra de Deus que se tornam fonte de posturas que o próprio Jesus desabonou; quando fundamenta preconceitos que chegam até a agressão física e a tentativa fanática de destruição, bem como formas de viver a fé marcadas pela violência.
d) Mobilidade. É luz enquanto permite o encontro entre modos diferentes de lidar com a vida, entre enfoques diversificados. No entanto, é sombra quando as pessoas são forçadas pelas circunstâncias a viver na rua, a migrar e a buscar refúgio longe de sua própria terra.
Resumindo, podemos, segundo as Diretrizes, dizer que as cidades são marcadas pelas lógicas do consumo e da individualização. Quanto maiores, menor a influência das instituições e da tradição sobre os indivíduos. As cidades são ambientes em que as pessoas são continuamente chamadas a escolher e optar, tanto em aspectos mais imediatos quanto nas questões mais profundas, diretamente ligadas ao sentido da vida. São locais onde se manifesta, ainda que de formas e graus diferentes, a tendência ao imediatismo, à diversificação e à fragmentação. A individualização consumista da vida está intimamente ligada às cidades e traz como desdobramentos: a corrupção, atitude de quem só pensa em si, nos próprios interesses e ganhos, sem se importar com os rastros de abandono e sofrimento; o comércio de drogas, a violência e o esforço pela legalização da morte, dividindo as cidades em áreas controladas por poderes paralelos ao estado de direito; a pobreza, fonte de violência e de outras formas de sofrimento, como a crise de sentido, geradoras de desesperança, esgotamento existencial, depressão, suicídio. E tudo isso desencadeia a degradação do planeta e seus recursos (cf. n. 58-62).
3. A experiência comunitária nos primeiros lugares da agenda pastoral
Se, por um lado, nossa Igreja sofre o impacto do fenômeno urbano, por outro, a fé cristã reage ante os desafios do individualismo, do consumismo, da mobilidade, da momentaneidade, do pluralismo, da diversidade e da secularização (cf. n. 27). Diante disso, a interpelação: sentimo-nos interpelados a sair em missão, buscando responder a esses desafios, encontrar suas causas mais profundas e, em espírito de missão, trabalhar para a transformação da realidade, seja a diretamente urbana, seja a dos demais ambientes. E a missionariedade implica não se acomodar no interior das comunidades, protegendo-se do caos, mas, ao contrário, corajosa e alegremente, sair em missão, na certeza de que é melhor uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas do que uma Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças. A fé cristã, bem sabemos, é sempre uma fé com e em comunidade, onde ninguém se salva sozinho, isto é, como indivíduo isolado, nem por suas próprias forças. Deus atrai-nos, no respeito à complexa trama de relações interpessoais que a vida numa comunidade humana supõe, e, por assim ser, a ação evangelizadora tem como um dos desafios sempre novos fortalecer as experiências de efetiva comunidade.
Diante da cultura urbana, as atuais Diretrizes têm como eixo central a “comunidade eclesial”, concebida como a “casa dos cristãos” (n. 4; 8; 144; 204). Refletindo as quatro dimensões das primeiras comunidades cristãs retratadas nos Atos dos Apóstolos, essa casa é sustentada por quatro pilares: 1) a iniciação à vida cristã e animação bíblica da pastoral; 2) a liturgia e a espiritualidade, 3) o serviço à vida plena para todos; 4) a missão. O eixo e os quatro pilares são retomados na perspectiva da conformação crescente e dinâmica à pessoa de Jesus Cristo, para que tenham a eficácia propiciada pela ação santificadora do Espírito Santo, pretendendo-se, desta forma, que as comunidades sejam “escolas de santidade” (cf. n. 133). Ou seja, com a vida fraterna das comunidades, com o testemunho de santidade de seus membros – o rosto mais belo da Igreja, pois reflete a santidade de Deus neste mundo –, com as obras de misericórdia, com a solidariedade com os sofredores, com a colaboração na construção de uma sociedade justa e pacífica e, sobretudo, com o anúncio explícito e incansável de Jesus Cristo, essa casa manifesta ao mundo a razão da própria esperança.
A vida fraterna em comunidades abertas, acolhedoras e misericordiosas é indispensável para testemunhar a vivência cotidiana do amor fraterno (cf. n. 7). É a base que sustenta a missão, pois a vitalidade do amor fraterno e o testemunho das obras de misericórdia dão suporte à credibilidade do anúncio missionário. Isso se deve ao fato de que, conforme descrito em At 12,1-5, as primeiras comunidades compreenderam a integração entre a vida comunitária e a ação missionária. Há, portanto, um vínculo indissociável entre missão e comunidade, “são como dois lados da mesma moeda” (n. 7), de modo que “a comunidade autêntica é necessariamente missionária e toda missão se alicerça na vida de comunidade e tende a gerar novas comunidades” (n. 7).
4. Ambiente humano de proximidade e de confiança: as pequenas comunidades
Acentuando a personalização da evangelização e da pastoral e levando em consideração que nossas paróquias (e seus grandes territórios paroquiais!) – jeito mais usual de viver a fé – nem sempre têm conseguido cumprir plenamente essa função, a ação evangelizadora necessita investir ainda mais no discipulado e na missionariedade (cf. n. 71). A formação de pequenas comunidades é apresentada pelas Diretrizes como prioridade da ação evangelizadora (cf. n. 36; 204). A escolha dessa prioridade se deve ao fato de que os ambientes urbanos pedem uma configuração na experiência da Igreja e, no contexto da atual cultura urbana, a “conversão pastoral se apresenta como desafio irrenunciável. Essa conversão implica a formação de pequenas comunidades nos mais variados ambientes” (n. 33). Daí a insistência para que essas pequenas comunidades e grupos sejam capazes de se articular, conseguindo que seus membros se sintam discípulos missionários de Jesus Cristo em comunhão (cf. n. 24).
Sabendo que a vocação ao discipulado missionário é convocação à comunhão e que não pode existir vida cristã fora da comunidade, o Documento de Aparecida, em seus números 179 e 180, indica que a concretização dessas pequenas comunidades favorece e oferece meios adequados para o crescimento na fé, na comunhão fraterna, para a missão de seus integrantes e para a renovação da vida nas cidades como “sal da terra e luz do mundo” (Mt 5,16); a partilha de experiências, a mútua ajuda e a inserção concreta nas mais variadas situações oferecem aos cristãos ambientes e meios para uma formação sólida, integral e permanente (cf. n. 82); nessas pequenas comunidades, os cristãos leigos e leigas, por meio da participação na vida da Igreja, do senso de fé, dos carismas, dos ministérios e do serviço cristão à sociedade, vivem sua vocação e sua missão, em comunhão e solidariedade. São lugares de crescimento na fé e de fidelidade a Jesus Cristo e a seu evangelho, vivendo na força de sua Palavra como verdadeiras comunidades de discípulos missionários que sejam casa da Palavra, casa do Pão, casa da Caridade, propiciadoras da iniciação à vida cristã, comprometidas com os pobres, abertas aos jovens, anunciadoras do evangelho da família, cuidadoras da Casa Comum e missionárias, de portas abertas para acolher a todos (cf. n. 84). Comunidades onde as pessoas possam fazer a experiência da comunhão fraterna, como em família, entre amigos, irmãos na fé, companheiros de jornada nas estradas da vida, peregrinando rumo à Pátria definitiva (cf. n. 121).
No mundo urbano, essas pequenas comunidades – que não são pequenas capelas ou comunidades no estilo paroquial tradicional – contam com a coordenação de leigos (cf. n. 86) e reúnem-se para a leitura orante da Palavra (recordando que a Palavra de Deus nos é dada precisamente para construir a comunhão, para nos unir na Verdade no nosso caminho para Deus) de modo que, escutando o Senhor, encontrem luzes para viver a fé, partilhando a vida e integrando-se à paróquia – comunidade de comunidades e movimentos – para viver a comunhão, vencendo o anonimato e a solidão e promovendo a mútua ajuda para o bem de todo grupo (cf. n. 84).
Observam as Diretrizes que “o importante é que elas não estejam isoladas e os ministérios, principalmente os de coordenação, com boa formação, ajudem-nas a se manterem em comunhão com a Igreja particular” (cf. n. 86; 87). Ou seja, “há diferentes formas de a Igreja se expressar nas casas; todas, porém, precisam manter o vínculo de pertença a uma paróquia, que é uma parte da diocese que constitui, por sua vez, uma porção do povo de Deus, que é a Igreja” (cf. n. 34; 84; 129). Assim, a “reunião de todas as pequenas comunidades na grande comunidade paroquial, especialmente para a Eucaristia, é expressão visível da comunhão do corpo de Cristo que é a Igreja” (cf. n. 85). O texto das Diretrizes, em sua primeira versão, no n. 55 dizia que “nas Igrejas nas casas geralmente não se celebra a Eucaristia nem os demais sacramentos. Melhor é celebrá-la nos templos, para que seja expressão visível e sensível das comunidades, e deles com a Santíssima Trindade”. Entendendo a comunidade como uma rede que une as pessoas, em sua totalidade, no empenho por “constituir comunidades maduras na fé, consequentemente no humanismo autêntico, essa deve ser a meta das dioceses, paróquias, movimentos, comunidades novas, associações, serviços e famílias cristãs em todo o Brasil” (n. 128). Assim, tornando-se – nas palavras do papa Francisco – o lugar do encontro com Deus e com os irmãos e espaço de santificação, que “guarda os pequenos detalhes do amor, e na qual os membros cuidam uns dos outros e formam espaço aberto e evangelizador, é lugar da presença do Ressuscitado, que a vai santificando segundo o projeto do Pai” (n. 133).
5. Tirando do baú coisas novas e velhas
As reflexões acima foram nos mostrando que a comunidade cristã não existe como um fim em si mesma. Constitui-se para a missão, para ir em missão e para ser presença pública no mundo de hoje, como “sinal que aponta para sua presença no mundo para além da própria comunidade” (LIBANIO, 2001, p. 168). Pensando-a em vista do Reino, é preciso ter claro como articulamos a dimensão comunitária com a dimensão da presença pública da Igreja:
não é o Reino que se reduz à Igreja, mas a Igreja se volta para ele. Não se trata de trazer o mundo para dentro da Igreja, mas antes de ela perder-se no mundo, como fermento na massa. A comunidade é chamada a ser comunidade para ser enviada. Existe para ser ministra do plano de Deus no mundo. A verdadeira natureza da Igreja se realiza como missão (LIBANIO, 2001, p. 168).
Para efetivar a experiência de comunidade, é indispensável compreender o verdadeiro motivo de estarmos juntos na comunidade cristã. Estamos juntos em comunidade para a missão e para a melhor internalização dos valores do Reino. A comunidade não é vista em termos narcisistas, pois não nos reunimos por nossa causa, mas pelo Reino de Deus. A “orientação aos valores nos tira do fechamento egoísta, tornando-nos superiores às rivalidades e aos jogos feitos de alianças utilitaristas e defensivas; abertos a todos, não monopolizamos ninguém” (MANENTI, 1985, p. 19). Neste sentido caminham as Diretrizes, deixando claro que missão e comunidade, em Jesus Cristo, são como “dois lados da mesma moeda, não podendo-se separar a vida em comunidade da ação missionária, como se uma só dessas dimensões bastasse. Alicerçar a mentalidade missionária como um ambiente natural da vida comunitária deve ser a meta das comunidades cristãs”.
Essa conduta é condizente com o evangelho e, nesse sentido, a comunidade cristã só cresce se em cada uma das pessoas existir a capacidade de internalizar os valores evangélicos, transformando as relações comunitárias em “amor oblativo-desinteressado; conduzir-nos reciprocamente, não apenas um em direção ao outro, mas em direção à aliança com Deus e a seguir Cristo” (MANENTI, 1985, p. 20).
Tal convicção ajuda a corrigir ambiguidades e perspectivas limitadas de vida comunitária não condizentes com a proposta evangélica, as quais impedem que os valores em que se acredita se tornem também valores vividos. Vive-se sempre o dilema: a comunidade existe para a pessoa ou a pessoa existe para a comunidade?
A primeira dessas perspectivas limitadas é o que se denominou de “comunidade de observância”. Aqui a “diretiva básica que guia tudo é que as necessidades dos indivíduos são subordinadas e adaptadas às da comunidade. O importante é que cada um cumpra os papéis que lhe são atribuídos e haja acordo entre eles. A preocupação é garantir a unidade, mesmo às custas das diferenças das identidades pessoais” (MANENTI, 1985, p. 9). As pessoas estão subordinadas às exigências comunitárias. Estas criam uma “pseudomutualidade, um sentido muito forte de filiação, uma coesão de grupo aparentemente robusta, uma comunidade que parece perfeita, toda estruturada, com um papel para cada um, e o mesmo ideal de fundo aparentemente compartilhado” (MANENTI, 1985, p. 10). Nas comunidades de observância, anulam-se as diferenças e as identidades pessoais são vistas sempre como “ameaças ao sistema” (MANENTI, 1985, p. 10), desencadeando a insatisfação, pois “a experiência de controle e de dominação gera um clima de insegurança e mal-estar” (OLIVEIRA, 2013, p. 25), frutos da “falta de flexibilidade e compreensão” (OLIVEIRA, 2013, p. 24), cabendo aos membros da comunidade cumprir o que é estabelecido, sob pena de serem punidos e rejeitados. É a comunidade que vai premiar os bons e castigar os maus. Seus membros não transcendem nos valores evangélicos, mas estão sempre preocupados em buscar justificativas e escapatórias.
Outra perspectiva distorcida da vida em comunidade é denominada de “comunidade de autorrealização”, uma vez que o destaque é dado ao indivíduo, que se utiliza da comunidade como um espaço para que se realize e veja atendidas suas necessidades. “A comunidade funciona se tornar felizes seus membros. O valor supremo é a diferenciação da identidade dos indivíduos, o respeito da individualidade custe o que custar” (MANENTI, 1985, p. 11). Se é positivo o fato de a pessoa ser valorizada em suas potencialidades, por outro lado, com o passar do tempo, essa individualidade se torna individualismo narcisista e as relações com os demais são instrumentalizadas, pois as pessoas valem ou são descartadas conforme o interesse pessoal. Geram-se aqui atitudes meramente “utilitaristas e mecanicistas” (RUBIO, 2006, p. 38); tais comunidades são apenas “comunidades-cabides”. Nelas, “tudo é superficial, transitório, sem responsabilidades e sem ética. Talvez a ética imperante aqui seja a ética utilitarista: vale o que é bom para o indivíduo. Isso porque os laços nessas comunidades são vínculos sem consequências, são laços carnavalescos, ou seja, eles nunca são levados para casa, para a vida cotidiana” (OLIVEIRA, 2013, p. 29). Aqui emerge a figura do freguês e do cliente religioso. Tais figuras “expressam um tipo de relacionamento que, predominantemente, busca benefícios aqui e acolá, sem, contudo, assumir o compromisso com a comunidade; não se encaixam na autêntica experiência cristã […] e se fica no nível do imediatismo de resultados, ao estilo da teologia da prosperidade” (AMADO, 2010, p. 86-87).
As Diretrizes, mais uma vez, ao lembrar que a comunidade autêntica é necessariamente missionária e que toda a missão se alicerça na vida comunitária e tende a gerar novas comunidades, mostra que o melhor ponto de partida para o fato de estarmos juntos em comunidade é este: “a comunidade é para os valores; é um lugar que serve para internalizar melhor os valores do Reino. A comunidade se torna o lugar da transcendência. O objetivo da comunidade não é o fato de estar juntos, e sim estar junto para aprofundar o engajamento vocacional e construir o Reino de Deus. A comunidade é eficaz na medida em que favorece a autotranscendência, colocando cada pessoa diante de valores livres e objetivos” (MANENTI, 1985, p. 12). O que outrora nos disse o citado autor está em sintonia com o que as Diretrizes nos lembram, tendo como pano de fundo as primeiras comunidades cristãs:
não bastava fazer parte da comunidade, era necessário promover outro tipo de relacionamento entre as pessoas, tornando-as mais fraternas. […]. Ali havia uma reciprocidade que se caracterizava pela solidariedade e acolhida de todos. […]. O estilo de vida cristão não tinha como finalidade o isolamento, mas a responsabilidade de favorecer um testemunho capaz de atrair outras pessoas para o Caminho (n. 77).
A força não era a comunidade por si mesma, mas os valores que nela estavam presentes, sendo necessário que cada pessoa os internalizasse, pois o “sim” a uma vida de acordo com o Reino é sempre um “sim” pessoal, que nunca pode ser delegado a terceiros. Foi isso que, segundo as Diretrizes, deu credibilidade àquelas comunidades e dará credibilidade às nossas diante da complexidade urbana e da mudança de época:
a credibilidade da comunidade se embasava no seu testemunho de comunhão, expresso na fidelidade ao ensinamento dos apóstolos, na liturgia celebrada, na diaconia da caridade fraterna, na martiria da fé e da esperança. Enfim, na mistagogia da autêntica vida cristã que se fazia missão, profecia e serviço.
Conclusão
As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (2019-2023), uma vez discutidas e aprovadas, tornam-se diretrizes para todos. Desejam ser uma resposta aos desafios que emergem de nosso tempo. Cada Igreja particular, visibilizando essas Diretrizes mediante o planejamento e planos pastorais, buscará traduzir essa proposta na vida das comunidades, concretizando suas indicações; acompanhando os ritmos das cidades, a ação evangelizadora tem de descobrir nelas a presença de Deus e ajudá-las a se conformarem à experiência proposta pela Igreja, isto é, a constituir comunidades que vivem na solidariedade, na fraternidade, no desejo do bem, da verdade, da justiça.
Estimulam-nos e encorajam-nos nesta caminhada as já citadas palavras do papa Francisco: “é preciso ter a coragem de realizar uma pastoral evangelizadora audaz e sem receios, porque o homem, a mulher, as famílias e os vários grupos que vivem na cidade esperam de nós, e precisam dela para a sua vida, a boa notícia que é Jesus e seu evangelho”. E, no contexto da cultura urbana, essa pastoral evangelizadora e audaz implica a formação de comunidades, nos mais variados ambientes, para que sejam casas da Palavra, do Pão, da Caridade e abertas à missão.
Por fim, cabe esperar que a necessidade de ação evangelizadora supere a tentação da pastoral da massificação. Os apelos das grandes cidades exigem “clara opção pastoral pelo desenvolvimento de uma fé pessoal-comunitária, no polo oposto do individualismo narcísico […], preocupada, acima de tudo, com o crescimento da fé pessoal-comunitária de cada pessoa” (RUBIO, 2006, p. 219-220), mediante comunidades reais que procuram viver a evangelização, a diaconia, a koinonia e a celebração comunitária da fé.
Comunidades reais que, conforme as indicações das Diretrizes, tomam a iniciativa de procurar as pessoas necessitadas da alegria da fé; buscam o envolvimento com sua vida diária e seus desafios; promovem o acompanhamento paciente em seu caminho de crescimento da fé; incentivam o reconhecimento dos frutos, mesmo que imperfeitos; compartilham a alegria da festa em cada pequena vitória. Igualmente, precisamos formar comunidades que acolham o pedido do papa Francisco, sendo Igreja em saída para percorrer as periferias geográficas e existenciais com a disposição para trilhar um caminho de discernimento espiritual, buscando a verdade do evangelho e o bem possível não como meros aplicadores rígidos da lei, mas sendo capazes de acompanhar, discernir e integrar as fragilidades humanas na promoção da cultura da vida em toda a realidade urbana, enfrentando os desafios da violência, da moradia, da população em situação de rua, da população encarcerada, dos migrantes e refugiados, das crianças e dos idosos, da juventude e da família, do mundo do trabalho, da educação, da saúde, do transporte, do ambiente acadêmico universitário, da ciência, da tecnologia, dos meios de comunicação social e da ecologia integral. Toda essa “riqueza vivida sempre em comunhão com a Igreja” (RUBIO, 2006, p. 220).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Pe. Eliseu Wisniewski, cm
Pe. Eliseu Wisniewski, cm, é presbítero da Congregação da Missão Província do Sul (Padres Vicentinos), mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) e doutorando em Teologia pela mesma universidade.