Publicado em maio–junho de 2020 - ano 61 - número 333 - pág.: 50-53
Pentecostes – 31 de maio
Por Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
Veio o Espírito prometido, dom do Ressuscitado e do Pai
I. Introdução geral
Celebramos a plenitude do mistério pascal: a efusão do Espírito Santo sobre a comunidade dos discípulos, conforme Jesus lhes prometera e a liturgia dos dois últimos domingos nos preparou. Jesus prometeu aos discípulos que não os deixaria órfãos, mas junto com o Pai enviaria outro Defensor, chamado também de Espírito da Verdade (cf. Jo 14,16-17). A liturgia deste dia contempla o cumprimento dessa promessa. Os autores do Novo Testamento situaram esse evento na história segundo diferentes perspectivas, de acordo com as necessidades de suas respectivas comunidades. Lucas narrou-o em forma de teofania, situando-o no dia da antiga festa judaica de Pentecostes, quando os judeus celebravam a entrega da Lei de Deus a Moisés, 50 dias após a Páscoa (I leitura); para João, o Espírito Santo foi comunicado aos discípulos logo no dia da ressurreição (evangelho). Paulo, em vez de narrar um evento, fala dos efeitos do Espírito Santo na vida da Igreja: gerar unidade na diversidade, tendo em vista o bem comum (II leitura).
II. Comentários dos textos bíblicos
1. I leitura: At 2,1-11
Pentecostes era uma das grandes festas judaicas, junto com a Páscoa e a festa das Tendas. Inicialmente, era chamada de festa das Semanas, pois era celebrada sete semanas após a Páscoa. Somente a partir da dominação grega (cf. Tb 2,1; 2Mc 12,32) é que ganhou o nome de Pentecostes, cujo significado literal é “quinquagésimo dia”, o que equivale à soma das sete semanas mais um dia. Como quase todas as festas judaicas, também ela tem suas origens ligadas à vida agrícola. Era a festa da colheita e, para a sua celebração, os peregrinos iam até Jerusalém levando como ofertas os melhores grãos e frutos da terra, em gratidão a Deus. Com o passar do tempo, perdeu a sua relação com a agricultura, ganhando novo sentido: os judeus passaram a celebrá-la como recordação do dom da Lei a Moisés e da constituição do povo de Deus ao redor do Sinai. Na época do Novo Testamento, esse novo sentido já estava consolidado.
Como artifício literário, Lucas, autor do livro dos Atos dos Apóstolos, serve-se desse contexto, fazendo coincidir, em seu relato, o envio do Espírito Santo aos discípulos com a festa judaica de Pentecostes (cf. v. 1). Por ocasião da festa, a cidade de Jerusalém estava repleta de judeus peregrinos de todo o mundo (cf. vv. 5.9-11), que tinham ido agradecer a Deus pela Lei. Assim, Lucas ensina que o Espírito Santo é a nova Lei. Para permanecer fiel a Jesus, a comunidade cristã já não necessita observar os preceitos da Lei mosaica, mas deve estar aberta e sensível ao Espírito Santo, o dom do Ressuscitado por excelência. Para ilustrar ainda mais essa relação, o relato é construído com elementos semelhantes aos da teofania do Sinai, como o vento e o fogo (cf. vv. 2-3; Ex 19,16-19).
Ao contrário da Lei, que fora destinada a apenas um povo, o Espírito Santo é acessível a todos os povos da terra, facilitando a comunicação e a comunhão, ao invés de separação. Por isso, o primeiro efeito do Espírito Santo é a compreensão recíproca: cada um se expressa do seu modo, sem negar os traços da sua cultura (cf. v. 4), e é compreendido e respeitado pelo outro da maneira que é (cf. v. 5). Isso é o advento de um novo mundo, com a superação de todas as barreiras que impedem a compreensão e a convivência fraterna entre os povos. A referência a “outras línguas” (v. 5), aqui, não tem relação com o fenômeno carismático da glossolalia, e sim com a diversidade de idiomas e culturas representadas em Jerusalém (cf. vv. 9-11).
Enquanto o evento do Sinai deu origem a um único povo, a cena descrita por Lucas em Pentecostes marca o início da unidade entre todos os povos da terra, congregados pelo Espírito Santo para levar adiante o projeto libertador de Jesus Cristo.
2. II leitura: 1Cor 12,3b-7.12-13
Embora fosse reconhecida pelo fervor e pela riqueza de dons que possuía, a comunidade de Corinto tinha sérios problemas internos, com muitas divisões e conflitos entre os seus membros. Na segunda leitura, Paulo procura conscientizar os cristãos daquela comunidade a respeito da unidade que deveria existir entre eles, sobretudo no que diz respeito à diversidade de dons e ministérios, os quais deveriam estar a serviço do bem de todos.
Como primeiro efeito do Espírito Santo, Paulo apresenta o reconhecimento de Jesus como Senhor (cf. v. 3b), do qual deriva a certeza de que é um só o Espírito que opera na comunidade, gerando uma diversidade de dons e ministérios (cf. vv. 4-6) e tendo em vista o bem comum (cf. v. 7). A maioria dos conflitos na comunidade surgiam porque os detentores de dons e carismas especiais consideravam-se superiores, usando os dons gratuitos de Deus para o proveito pessoal e alimentando rivalidades, quando na verdade deveriam estar a serviço da unidade e da edificação de todos.
Assim, empregando a imagem do corpo humano com os seus vários membros (cf. v. 12), Paulo exorta os cristãos a viver a unidade na diversidade (cf. v. 13). Quando uma comunidade alimenta divisões, espírito de competição e vaidades, está se fechando ao Espírito Santo e, consequentemente, desvinculando-se de Jesus Cristo.
3. Evangelho: Jo 20,19-23
João situa a doação do Espírito Santo aos discípulos pelo Ressuscitado no dia da ressurreição, o primeiro dia da semana (cf. v. 19), como mostra o evangelho desta liturgia, um texto que já foi lido no 2º domingo da Páscoa, em uma versão mais longa. Embora a Igreja tenha apreciado mais o esquema de Lucas, descrito na primeira leitura, a perspectiva de João parece ter mais sentido. Amedrontada e sem poder de ação, a comunidade dos discípulos necessitava da força do Espírito com urgência, para abrir as suas portas e, vencendo o medo, iniciar a missão de reconciliar a humanidade consigo mesma e com Deus, conforme o mandato do Ressuscitado.
Embora curto, o texto é muito rico. Inicia-se com um dado que evidencia a necessidade do Espírito, o outro Defensor prometido por Jesus: os discípulos estavam reunidos com portas fechadas, com medo dos judeus (cf. v. 19). O termo “judeus”, aqui, não significa o povo, mas as autoridades responsáveis pela execução de Jesus. É inegável que os discípulos estavam em crise e a continuidade do projeto libertador de Jesus estava em risco. Por isso, o Ressuscitado se manifestou no meio deles e deu-lhes a sua paz, um dom que, neste contexto, significa a confiança e a coragem, antídotos contra o medo. Jesus comunica a sua paz estando no meio dos discípulos, e isso significa que, para a Igreja viver os propósitos do evangelho, é indispensável que no centro da sua existência esteja o Ressuscitado; a comunidade não pode ter outra referência que não seja ele. Por isso, ao se manifestar, o Ressuscitado aparece sempre no meio.
Após comunicar a sua paz aos discípulos, Jesus mostrou-lhes as mãos e o lado (cf. v. 20a), como sinal da continuidade entre o Ressuscitado e o Crucificado. Além de exprimir essa continuidade, as mãos e o lado são uma síntese da vida de Jesus: as mãos são sinais do serviço e de todo o bem que fez em favor da humanidade, enquanto o lado significa o coração com o qual amou os seus até o fim, a ponto de dar a vida por eles. Com isso, o evangelista diz que o Ressuscitado continua servindo e amando os seus, mas de uma maneira nova, já não condicionado às limitações de tempo e espaço como antes. Desta certeza brota a alegria dos discípulos (cf. v. 20b).
Oferecendo novamente a paz, Jesus envia os discípulos com a mesma autoridade com que fora enviado pelo Pai (cf. v. 21). Em seguida, confere o dom por excelência, o Espírito Santo (cf. v. 22), sem o qual o envio não teria sentido nem eficácia, cumprindo a sua maior promessa (cf. Jo 14,16.26; 15,26). Junto com o Espírito prometido, a comunidade cristã recebe a missão de reconciliar a humanidade consigo mesma e com Deus, continuando assim a obra de Jesus. Por isso, os discípulos recebem a missão de perdoar pecados (cf. v. 23). Esse mandato não significa que a Igreja tem poder para determinar se um pecado deve ser perdoado ou não, e sim que ela tem a responsabilidade de chegar a todos os lugares e comunicar o amor de Jesus. O que gera o perdão é o amor. Os pecados são perdoados à medida que o amor de Jesus se espalha por todos os lugares. Só há risco de haver pecados sem perdão se os discípulos de Jesus forem omissos e deixarem de comunicar o seu amor.
Credenciado para tirar o pecado do mundo (cf. Jo 1,29), Jesus compartilha essa responsabilidade com a comunidade cristã. Para isso, é necessário deixar-se impulsionar pelo Espírito e amar sem medidas.
III. Pistas para reflexão
Esta solenidade significa muito mais do que o marco cronológico que delimita a conclusão do tempo da Páscoa. É a confirmação da fidelidade de Jesus aos seus seguidores de todos os tempos e a certeza da presença perene do Espírito Santo na vida da Igreja. Coragem, abertura de mentalidade, capacidade de superar barreiras culturais, unidade na diversidade são apenas sinais que não podem faltar na comunidade que vive essa certeza.
Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues
é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN).