Se o túmulo está vazio, o motivo é nosso coração estar cheio
I. Introdução geral
A Vigília Pascal constitui o âmago de todo o ano litúrgico. Ela pode ser considerada a mãe de todas as vigílias, e, por isso mesmo, é fundamental que todos participem dela e vivam essa experiência. A vigília começa após o pôr do sol, no sábado santo, fora da igreja, onde o fogo é abençoado pelo celebrante. Esse fogo simboliza o esplendor do Cristo ressuscitado dissipando as trevas do pecado e da morte. Apresentamo-nos como discípulos do Ressuscitado com uma única palavra nos lábios – “Eis-me aqui” – e com a disposição para seguir o mesmo caminho trilhado por ele. Da escuridão nascerá a luz de Cristo. Jamais nossos caminhos serão marcados pela escuridão. Nele e por causa dele, a luz brilhará eternamente em nosso coração a fim de que possamos também iluminar a vida daqueles que nos cercam. A Vigília Pascal se divide em quatro momentos: 1) liturgia da luz – o fogo é abençoado e torna-se novo para nós. Acende-se o círio pascal, o mesmo fogo que guiou o povo do Antigo Testamento na caminhada rumo à terra prometida; 2) liturgia da Palavra – todas as leituras e salmos recordam a ação de Deus no meio do seu povo. Pela proclamação da Palavra, a morte foi vencida, tudo se fez novo, agora só há luz e vida; 3) liturgia batismal – os novos cristãos são acolhidos pela comunidade. Todos os santos são invocados para interceder por aqueles que serão batizados, e estes professarão a fé; há a renovação das promessas batismais daqueles que já receberam o sacramento. Sendo assim, todos são batizados pela ressurreição de Jesus; 4) liturgia eucarística – o Cristo proclamado na Palavra como Ressuscitado é o mesmo da Eucaristia. A Palavra e a Eucaristia são alimentos essenciais para a vida dos batizados.
II. Comentários aos textos bíblicos
(Os comentários sugeridos abaixo referem-se apenas a duas leituras das 8 possíveis para a vigília)
I leitura: Gn 22,1-18[F1]
Levantar-se cedo indica a prontidão de Abraão e seu desejo de obedecer. Diante do chamado, ele responde prontamente: ”Eis-me aqui!” (v. 1). Estou presente! Eu não fujo! É a expressão de quem assume o projeto divino. Resposta de quem é chamado por Deus para uma missão. Diante do Deus que chama, não cabe qualquer outra resposta que não seja “eis-me aqui”. Quando o profeta Isaías foi chamado, sua resposta foi semelhante. Quando Deus nos chama, não há outra possibilidade válida a não ser nos apresentarmos diante dele. Isso não depende absolutamente de nossa boa vontade, se desejamos ou não, se estamos dispostos ou tomados pela preguiça, se temos talentos ou nos achamos incapazes de servir. Absolutamente não! Ao ouvirmos a voz de Deus nos chamar, devemos ouvir atentamente e, com espírito de servos, seguir os passos a nós destinados.
Um dos muitos nomes pelos quais Deus pode ser conhecido é Providência. Em meio a tantas lutas e desafios que enfrentamos diariamente, devemos ter a plena certeza de que Javé é o Deus de toda a providência. Diante dos temores de que alguma coisa nos falte, devemos recuperar a mensagem de Abraão e meditar nela. Ele, num momento marcado pela angústia e pela incerteza, pela contradição e por um desafio enorme, levanta os olhos (cf. v. 13). Não permanece com os olhos presos ao chão e a respostas humanas. Levanta os olhos como se estivesse à procura de uma saída e, ao fazê-lo, enxerga a resposta. Seus olhos encontram a resposta dada por Deus. Este já havia providenciado tudo quanto era necessário para resolver os maiores temores de Abraão. O patriarca já havia experimentado a presença do Deus peregrino, do Deus todo-poderoso, do Deus do impossível, e, agora, o Deus da providência estava bem à sua frente. É importante saber e reconhecer que o Deus da providência conhece cada uma das nossas necessidades e, mais do que isso, caminha alguns passos à nossa frente. Não estamos a mercê das contradições deste mundo. Podemos ter a plena certeza de que o Deus que caminha ao nosso lado providencia as soluções necessárias e definitivas. A experiência de Abraão foi tão significativa, que o lugar ficou conhecido como aquele em que Deus providenciou a resposta (cf. v. 14). O povo de Deus, quando no deserto, experimentou de muitas maneiras a providência divina. Possivelmente a história da providência de Deus, alimentando-os com o maná, tenha se refletido na maneira de viverem. Contudo, tanto a história do maná quanto muitas outras existentes na Bíblia são relatos distantes de cada um de nós. Precisamos perguntar sobre nossas próprias experiências! Afinal, o Deus da providência é o mesmo ontem, hoje e será para sempre! Às vezes, no entanto, é tão difícil confiar na providência de Deus. A exemplo de Abraão, cabe-nos aprender que ser dependentes de Deus não representa nenhum contratempo, porque ele sempre há de se manifestar como o “Deus da providência”.
II leitura: Is 55,1-11
A leitura traz um oráculo dirigido aos pobres. A situação deles é por demais crítica, pois carecem de alimentos básicos para a sobrevivência. A vida deles se encontra ameaçada. Correm, na verdade, o risco de morrer antes do tempo. Morrerão não porque seja vontade de Deus ou porque não tenham nenhum projeto de vida pelo qual valha a pena lutar. A morte se aproxima deles por mãos de outros: dos injustos e violentos que os ameaçam e, com isso, agridem a imagem de Deus neles. Encontramos no texto interessante releitura da tradição davídica, ao afirmar a dimensão comunitária da aliança; ou seja, Deus faz aliança diretamente com o povo. Nesse sentido, o poder, que nas mãos dos reis era geralmente utilizado para oprimir o povo mediante a cobrança de impostos, é, agora, entregue à comunidade a fim de que viva a prática da justiça e do direito.
Evangelho: Mt 28,1-10
Se o Império Romano produz morte, a ação de Deus produz vida. Há completa desestabilização e inversão de papéis no relato do evangelho: Jesus é ressuscitado e os guardas que cuidavam do túmulo “ficaram como mortos” (v. 4). Grande alegria invade as mulheres ao receberem a mensagem do anjo. Elas são as primeiras testemunhas da ressurreição. São as protagonistas do maior e mais fundamental evento da vida cristã. As mulheres discípulas fazem o primeiro anúncio. Pode-se até mesmo dizer que são as mulheres que evangelizam os discípulos nesse momento. Deve-se observar que o conteúdo da mensagem que elas anunciarão é, como o próprio anjo identifica, “Jesus, o crucificado” (v. 5). Nesse caso, a ressurreição é um dos sinais principais de que a violência do império contra Jesus e contra todos os pobres jamais terá a última palavra. Anunciar que Jesus, o Crucificado, ressuscitou é uma mensagem contracultural.
Enquanto as mulheres correm em direção aos discípulos, Jesus lhes aparece e sua primeira palavra como ressuscitado é: “Alegrem-se” (v. 9). Ressurreição é sinônimo de alegria. A morte foi vencida e, por isso, é necessário vibrar de alegria. O império da morte e da violência foi vencido, alegrem-se. O projeto de justiça, fraternidade e misericórdia de Jesus está vivíssimo, alegrem-se. Vida e alegria aproximam-se de tal forma em Jesus, que ficamos surpresos. Viver com alegria mesmo em meio à violência do império – de ontem e de hoje – é consequência do Ressuscitado entre nós. A ressurreição implica, dessa forma, repensar a vida desde o avesso – ou desde o contrário; representa resistência em meio à violência, alegria em meio à tristeza, protagonismo em meio à sujeição.
III. Pistas para reflexão
1) Talvez possamos absorver a real intensidade da experiência abraâmica alterando os termos que ali aparecem para sentir o forte impacto das palavras: retiremos, por alguns momentos, o nome de Abraão e insiramos nosso próprio nome. Conseguimos notar a diferença? Como responderíamos? Saibamos que Deus não se confunde nem, muito menos, nos confunde. Ele nos chama pelo nome a fim de vivermos intensamente seu projeto. O princípio é bem claro: o chamado é sempre individual. Dessa forma, algumas perguntas se fazem urgentes: O que o Senhor quer de nós? Como podemos ser úteis para sua missão e para seu projeto de transformação deste mundo?
2) A presença do Cristo ressurrecto em nós tem a capacidade de nos libertar ou nos guardar do marasmo. Somente a força da ressurreição pode interromper os passos dados nos descaminhos da vida. Nele podemos repensar a vida, os caminhos, os projetos e a maneira de vivermos como discípulos. Basta tão somente dizermos: “Eis-nos aqui, Mestre”. [F1]Registro que não está claro por que apenas duas leituras foram escolhidas para serem comentadas (das 8 possíveis, incluindo a carta do Novo Testamento) e por que justamente essas.
Luiz Alexandre Solano Rossi
é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade; A origem do sofrimento do pobre.