INTRODUÇÃO
Em dois números da Vida Pastoral, neste e no próximo, pretendo expor aos leitores como anda a questão mariológica na teologia. Com certeza, apenas em suas grandes linhas.
Antes de tudo, convém distinguir acuradamente entre “questão mariológica” ou simplesmente “mariologia” e “devoção mariana”. É da primeira que trato e não da segunda. “Mariologia” é parte da teologia — o esforço da razão para entender a fé — que considera eventuais afirmações de fé referentes a Maria: trata-se nela do momento intelectual-reflexivo e metodologicamente controlado das afirmações sobre Maria, que, em consequência, pretende ser responsável e bem fundado nas fontes adequadamente conhecidas e bem interpretadas; e que por isso não pode deixar tais afirmações ao léu de impulsos voluntaristas ou de meros sentimentalismos. A “devoção mariana” consiste nas atitudes e relacionamentos pessoais de piedade, devotamento e preces dirigidos a Maria, que, com efeito, podem nascer de puro sentimentalismo estéril e até mesmo de neuroses, psicoses e frustrações dos envolvidos, como também podem fundar-se em boa mariologia como justa consequência dela.
J. Moltmann[1]afirma judiciosamente: “As múltiplas formas de veneração a Maria avançam na maioria das vezes para além da mariologia aceita pela Igreja”. Por isso, a “figura de Maria” da chamada “devoção popular mariana” pode muito bem referir-se apenas na intenção subjetiva das pessoas à verdadeira Maria atualmente gloriosa no céu ou à Maria real de Nazaré de outrora. Pode, na verdade, acolher anseios, valores e frustrações do povo, que é interessante estudar sob o prisma de outras disciplinas, como a sociologia, a sociologia do conhecimento ou a psicossociologia, mas a referência das constatações e afirmações não será à Maria real, e, portanto, não poderão fazer parte da mariologia teológica. É à Maria real que a mariologia pretende e deve referir-se com interesse intelectual e teórico. Contudo, também essa teoria mariana, contemplando-a em retrospectiva histórica, não deixa de se nos apresentar hoje como socioculturalmente situada, limitada e marcada por ideologias, da mesma forma que as “devoções marianas” podem delas estar imbuídas.
Somos filhos do nosso passado, até que nos demos conta de seus limites e penosamente vamos eliminando seus estorvos para o presente que nos fecham para o futuro. Assim em tudo, assim em mariologia. Entre os estorvos está o “finca-pé” voluntarista e teimoso, não fundado racionalmente, em formas de devoção caducas e na respectiva “mariologia” fundante delas.
De 1854 (data-símbolo por causa da proclamação do dogma da Imaculada Conceição) até 1950 (também simbólica pela proclamação da Assunção de Maria aos céus em corpo e alma), vivemos na Igreja Católica período que podemos dizer marcado por uma espécie de maximalismo mariano, que ainda continua a nos influenciar como herança persistente (e penosa?). Somos recém-chegados de um século de hábitos e perspectivas de pensar sobre Maria e é difícil deles fugir, pois tendem a pré-conformar a si a recepção de todo novo conteúdo e conceito vazado sob novos prismas. Tanto em outros tratados teológicos como em mariologia, mas muito mais em mariologia.
Assim sendo, cabe-nos entrar nos meandros e tendências deste “maximalismo mariano” católico, o que faremos agora, deixando para um próximo artigo especificamente a visão crítica da mariologia deste período, na intenção de detectar os rumos para onde caminha ou deve caminhar. Daí, nosso esquema: um século de “maximalismo mariano” na Igreja Católica, a ser tratado neste número; e num próximo trataremos da maneira como fomos (e vamos) fugindo do “maximalismo mariano” e vergando os rumos da mariologia, vendo muito mais a problemática e tentativas de soluções do que soluções acabadas, uma vez que tudo está em processo neste campo.
II. UM SÉCULO DE MAXIMALISMO MARIANO NA IGREJA CATÓLICA
Chamo de “maximalismo mariano”, que não deixou de fazer-se acompanhar também de um “maximalismo mariológico”, a acentuação fortíssima da referência a Maria, uma exuberância fora do comum alcançada pelos temas marianos e mariológicos na Igreja Católica nos cem anos que antecederam ao Vaticano II. Passo a enumerar algumas das características que o configuram.
1. Veneração a Maria
Houve grande insistência dos Papas, com inúmeras Encíclicas, na veneração a Maria. Também elas estiveram marcadas pelo método teológico escolástico que exporemos abaixo (e solidárias de suas excrescências e defeitos). Quase todos os Papas houveram por bem escrever sobre Maria para a Igreja toda. As Encíclicas parecem pleito da devoção pessoal dos Papas a Maria, muitas vezes parecendo forma própria de eles exercerem essa devoção, precisamente usando de sua autoridade para promovê-la.
2. Os dogmas da Imaculada Conceição e da Assunção
O período como que se enquadra entre a proclamação do dogma da Imaculada Conceição e da Assunção (1854 e 1950 respectivamente), os únicos dogmas de interesse diretamente marianos, uma vez que os outros dogmas marianos e toda a reflexão teológica anterior de modo geral buscavam ser funcionais com referência à cristologia e à eclesiologia, sem o matiz de interesse imediato por Maria. Ela entrava no discurso como parte do quadro global do mistério da salvação, enquanto a ele servia em sua centralidade, permanecendo quase que como periferia voltada para este centro.
3. Profusão de congressos e escritos sobre Maria
Houve uma multidão de congressos marianos e mariológicos de todo nível: regional, nacional e internacional. Nada menos do que doze congressos internacionais desde 1902 (Friburgo) até 1967 (Fátima). Frisem-se, ademais, os jubileus de cinquenta anos (1904) e cem anos (1954) do dogma da Imaculada Conceição, marianamente comemorados com triunfo, por ordens hierárquicas de cima, e acompanhados de intensas e extensas reflexões teológicas nas várias línguas. Ao mesmo tempo, surgiu uma profusão de periódicos e revistas e grupos de teólogos em vários países com a finalidade de promover de forma específica os estudos mariológicos. Estes trabalhos de reflexão foram feitos, nos inícios dos cem anos de “maximalismo mariano”, cada vez mais sob o signo do método teológico escolástico, passando pouco a pouco a assumir as perspectivas novas, bíblicas, patrísticas, metodológicas, ecumênicas — que foram se impondo ao decorrer dos decênios, principalmente nos últimos cinquenta anos antes do Vaticano II. Talvez se tenha escrito mais sobre Maria nesse período do que sobre qualquer outro tema.
4. A perspectiva ecumênica esteve ausente
A maioria dessa literatura esteve marcada pelo enclausuramento dentro dos muros da Igreja Católica, pois pouca atenção se dava às outras Igrejas cristãs, que em seu gabarito de verdadeiras Igrejas ou comunidades eclesiais só foram reconhecidas no Vaticano II, sendo antes postas sob o signo da heresia e apostasia da fé. O período caracterizou-se em suas reflexões pelo descuido, no campo específico de que tratamos, a mariologia, pelo ecumenismo, movimento que eclodiu e veio a influenciar a reflexão teológica somente mais tardiamente, depois dos anos 1930. Necessariamente, na renovação da mariologia posterior, a perspectiva e o diálogo ecumênicos se impuseram como dever.
5. As aparições de Nossa Senhora
Uma série de aparições, supostamente de Maria (Catarina de Labouré em 1830, La Salette em 1846, Lourdes em 1854, e Fátima em 1917), atribuem-se a este período. Foram tidas oficial ou oficiosamente como autênticas e credíveis por autoridades eclesiásticas, até papais, chegando a denominar uma multidão de instituições e paróquias pelo mundo afora, enchendo a fantasia dos fiéis dessas imagens. Não teria bastado a operação salvífica de Jesus e o seu Evangelho para salvar o mundo? Foi preciso Maria vir dar mais um alerta, ou alertas, alguns marcados por tons ameaçadores e catastróficos? Este interesse já não envolve em si um tom antidogmático e antiecumênico? Não está aberto à mera credulidade, uma vez que não recai sob a fé divina?
6. Insistência nos privilégios e louvores a Maria
Há nesse período também uma insistência forte e unilateral nos privilégios e “glórias de Maria Santíssima”, no que ela apresentaria de singular e especial, fazendo-a emergir do simplesmente humano, como se dele não tivesse participado, em uma espécie de “mariologia de cima para baixo”: a partir de sua “maternidade divina”, pela qual Maria como que teria sido elevada a uma ordem superior de existir, quase que à altura da união hipostática do seu Filho. E este fato justificaria a devoção dos encômios e louvores de toda ordem, e da mais alta ordem, dirigidos a Maria (encômios que, afinal, em nada redundavam em benefício da conversão e vida cristã!). Chegou-se a cunhar motes como “De Maria nunquam satis” (“Sobre Maria nunca se consegue dizer o bastante”), e o silogismo escolástico: “Decuit, potuit, ergo fecit” (“Foi conveniente, Deus podia, logo fez”); que parece uma presunção e pretensão de sondar por dentro no segredo e mistério das conveniências do próprio Deus, somente dele conhecidos, para sacar cada vez mais conclusões laudatórias e mais privilégios e glórias para Maria. E tudo por via dedutiva, e não pela consideração da sua singularidade histórica ou a partir de sérios e fundados estudos bíblicos.
7. O método teológico neoescolástico como matriz da mariologia
O que sobretudo marcou o “maximalismo mariano” foi o peculiar método de produzir teologia, de que lançou mão: o método especulativo neoescolástico, aplicado com profusão principalmente em mariologia (devido à escassez e obscuridade dos dados bíblicos sobre Maria?). Caducando este método, caducará também o seu produto, evidenciando seus limites evidenciará também os limites do produto.
Tentemos delineá-lo em seus principais contornos, correndo o risco de caricaturizá-lo ao simplificá-lo em sua exposição.
a) Método neoescolástico
O método teológico neoescolástico agia a partir da perspectiva da busca da mera compreensão de verdades no quadro dos pressupostos da filosofia aristotélico-tomista. Quer dizer que o seu interesse voltava-se para obter ideias claras e bem sistematizadas, colimando o aumento quantitativo de verdades reveladas, e os moldes, nos quais tentava vazar a compreensão, eram as ideias pré-concebidas de uma filosofia humana determinada, que se julgava a mais apta a colher, acolher e ilustrar os dados da fé (sempre sob o ponto de vista da intelecção ou compreensão conceptual).
b) Silogismo dedutivo
O meio de aumentar o depósito das verdades reveladas era o silogismo dedutivo. Daí, o interesse acentuado em se buscar um princípio primeiro ou fundamental, que já contivesse em si explícita ou implicitamente todo o conteúdo de um tratado ou tema teológico. Em nosso caso, da mariologia. Em consequência, chegou-se a um peculiar uso da Escritura como prova de teses já estabelecidas, bem como a deduções (“verdades reveladas” ou “contidas nas verdades reveladas” ou “pressupostos das verdades reveladas”) — as mais variadas e de cunho ontológico-coisístíco (transferidas e tiradas do seu habitat bíblico original, ou seja, do seu enfoque funcional, histórico e processual, que caracteriza a Bíblia).
Ilustremos, por meio de exemplos adrede buscados na mariologia, cada uma dessas afirmações teóricas e com razão incompreensíveis para o não iniciado em filosofia e teologia aristotélico-tomista.
c) Busca de um princípio
Antes de tudo, vai a questão da busca de um princípio primeiro ou fundamental, que contenha como que em semente e síntese concentrada de todas as afirmações mariológicas. Este princípio, segundo a teoria, haveria de ser um axioma aceito por si e evidente, deveria conter em si implicitamente todos os dogmas e todas as doutrinas marianas, bem como possibilitar que fossem logicamente deduzidas. E, assim sendo, este princípio atuaria como fator unificante de toda a mariologia e desta com as outras doutrinas reveladas, marcando para ela seu devido e equilibrado lugar em toda a sistemática teológica.
Cada mariólogo apresentava sua variedade específica de proposta de um princípio primeiro-fundamental e sob ele tramava toda a distribuição do material respectivo, o que já acusa a intromissão nas “doutrinas” das pré-compreensões e interesses de cada autor, o que também relativizava o próprio dado dogmático, quando dele se tratava. Assim, houve tratações diversas, travadas, cada uma por sua vez, sob os mais diferentes axiomas tidos como primeiros princípios. Por exemplo:
— Maria, mãe do Cristo total, Cabeça e membros do Corpo místico.
— Maria, mãe do Redentor.
— A maternidade divina tomada concreta e historicamente.
— A mãe do Verbo divino encarnado entre nós para salvar a humanidade pela sua vida de renúncia expiatória e pela associação das almas redimidas a essa forma de vida.
— Matrimônio divino.
Essas propostas acima baseiam-se na “maternidade divina” de Maria acrescida de sua como que quase-extensão na “maternidade espiritual” para com os homens como consequência lógica daquela.
Ao passo que estes primeiros princípios em oferta apresentam a vertente da referência cristológica de Maria, outros primeiros princípios propostos tendiam a enxergar mais a referência eclesiológica ou eclesiotípica de Maria, como:
— Maria, a nova Eva, imagem original e típica da Igreja.
— Maria, a redimida de forma perfeita pela graça, que realizou e representa da forma mais plena o que pode operar a graça de Deus no seio da humanidade e da Igreja.
— Maria, aquela que obteve a maior participação na humanidade de Cristo.
Todos estes ensaios e outros pretendiam ser o desaguadouro lógico e legítima expressão da revelação original bíblica ou de Magistério: “Maria, aquela que gerou a Deus” (linguagem dos Concílios cristológicos dos primeiros séculos), ou “Maria, mãe de Jesus” (linguagem bíblica geral do Novo Testamento), e “Maria, cheia de graça” (linguagem bíblica lucânica em Lc 1,28: texto usado para confirmar a tese da plenitude da graça em Maria).
d) O uso da Bíblia
Em segundo lugar, vejamos o uso que se costumava fazer da Bíblia. A Sagrada Escritura era usada como fonte de provas para teses posteriores, com frequência já vazadas em categorias fortemente escolasticizadas. Com isso, tomava-se um evento singular retirado ao contexto e perspectiva redacionais dos evangelistas — conceitos expressos nos moldes de pensar funcional, processual e histórico, ou nas categorias delicadas do simbolismo, tão frequente nos autores bíblicos — e passava-se a entender tudo em categorias metafísicas e ontológicas de naturezas, substâncias e acidentes, e, por meio de silogismos dedutivos, chegava-se a conclusões também elas de alcance e conteúdo ontológicos, a que se atribuía coerência, cogência e premência lógicas optimais. Demos um exemplo de raciocínio silogístico no campo da mariologia nesse sentido:
— Maria é a mãe do Redentor de todos os homens;
— ora, a maternidade divina implica causalidade com referência a todas as qualidades essenciais do Filho;
— ora, o Filho é causa da Salvação;
— logo, Maria é mãe de todos os homens.
Tal inferência, consideramo-la hoje de infantilismo gritante, mas atente-se para o fato de que na verdade era feita e facilmente se encontra ainda hoje em literatura mariana de divulgação produzida por desinformados em mariologia e em homilias marianas.
E daí se salta para a busca de fundamento bíblico para as afirmações assim produzidas sob pressupostos totalmente estranhos à Bíblia. E o processo implica como que em arrancar a golpes e garras de fórceps o dado novo (com novo conteúdo, posterior, carregado de matiz ontológico e pressuposta coerência lógica) do texto antigo. De tal forma viu-se a mariologia marcada por linguagem e dados tão estranhos, distanciados e distorcidos da Bíblia, que se sentiu grande mal-estar neste campo, passando-se a uma espécie de “silêncio mariano” na reflexão teológica após o Vaticano II. Veio-se a perceber que estávamos pensando um pensamento segundo (de Tomás de Aquino ou de um neoescolástico qualquer) sobre um pensamento primeiro (o da Bíblia ou fonte da revelação) muito mais do que o pensamento primeiro, sobrepondo-se o pensamento segundo ao primeiro.
Para exemplificar o trato dado à Sagrada Escritura, apresentemos dois casos.
O primeiro refere-se à fundamentação do item da maternidade espiritual de Maria para com os homens (que se estabelecera pelo silogismo escolástico tal como foi apresentado acima). Buscava-se, e ainda se busca, pelos desinformados da complexidade do texto bíblico, a base ou o argumento bíblico em Jo 19, 25-27 (“… disse à sua mãe: ‘Mulher, eis o teu filho!’. Depois disse ao discípulo: ‘Eis a tua mãe!’…”).
Se nos deixarmos levar pelo pensar costumeiro e vezeiro, parece estar na letra desse texto bíblico a alusão à maternidade espiritual universal de Maria, baseada na palavra mesma de Jesus, donde adquiriria foros dogmáticos. Mas isso é correto? Funda-se biblicamente? Em que termos?
Só o fato de o Evangelho de João se distinguir pelo emprego exuberante de símbolos e sinais, já nos deveria levar a ser cautos. Há exegeses diferenciadas do texto, por si muito opaco. Uma delas nos vem dizer que o discípulo mencionado não representaria a humanidade, mas a nova aliança que se baseia no sangue de Jesus e na fé daquele que nele crê, e Maria não representaria a maternidade espiritual para com o discípulo, mas simplesmente a antiga aliança que então é recebida na “casa” da nova. Maria seria, em consequência, o símbolo da antiga aliança e não a mãe de todos os homens[2].
Um segundo exemplo, agora para fundar biblicamente o que se veio a chamar de dogma da plenitude de graça de Maria: Citava-se Lc 1,26, um texto que, levados pela tradução latina antiquíssima por “gratia plena”, traduzimos literalmente para o português por “cheia de graça”, parece nos sugerir a doutrina naqueles termos. Aliás, desse texto já se concluiu tudo sobre Maria, inclusive os dogmas da Imaculada Conceição e da Assunção de Maria. Mas a questão adquire feição bem diversa já pelo simples fato de termos no grego original o particípio passado em uma só palavra, ou seja, “kecharitoméne”, que literalmente se deve traduzir por “agraciada”, “alcançada pelo favor e benevolência divina”, que retira ao texto toda conotação de “plenitude” já por força vocabular (além de existirem outras razões de ordem contextual e redacional do evangelista, que não permitem vergar o termo para produzir o sentido escolástico ontologizado de “graça” como participação subjetiva em alguma coisa da parte de Maria, pois a “graça” aí é atributo e atitude de Deus para com Maria, o agrado de Deus por ela).
Grande problema na teologia e na Igreja, que continua ainda hoje a produzir efeitos malsãos, é que o próprio magistério da Igreja, em suas mais altas instâncias, embarcou neste método por inteiro; método que se comprovou inadequado e ilegítimo para se fazer teologia, tendo operado (e ainda hoje muitas vezes) com categorias ontológico-escolásticas, do que pode resultar que os dados obtidos — linguagem e conteúdos — não passem de algaravia de afirmações; algumas talvez contendo algo da fé genuína, mas embrulhadas em conteúdos de pensar provenientes da filosofia em uso, sem que sequer se percebesse este amálgama ideológico, pensando-se que se tratasse de definições indestrutíveis no seu todo, sem se perceber que a alma da teologia era este método, e até da interpretação da Escritura, e não a Escritura mesma. E, com toda evidência, não se pode apelar para o magistério infalível para dar razão e justeza para essa maneira de proceder, ainda não epistemologicamente sob suspeita nem testado. E não é justo confundir o magistério da Igreja, um dado teológico, com um método filosófico e racional de reflexão humana, que não pode reivindicar a autoridade daquele somente por que os detentores do magistério dele se serviram acriticamente durante determinado período, e até mesmo se identificando com ele, fato que tornou moroso o acesso a outros métodos que se tentaram aplicar e vieram a ser vitoriosos e amplamente usados nos últimos cinquenta anos antes do Vaticano II.
III. CONCLUINDO ESTA PARTE I
O “maximalismo mariológico” e mariano trouxe à luz uma superprodução de escritos sobre Maria (milhares e milhares de títulos), vazados na maioria nos moldes neoescolásticos preconizados por Leão XIII, com busca frenética de sistematização e primeiros princípios sistematizantes, com a independização do tratado da mariologia como tratado específico fazendo corpo à parte dos outros, vindo a se expressar em linguagem eivada de ontologismo e distante da linguagem bíblica e patrística sobre Maria, quase sempre trabalhando no sentido de exaltar as glórias e deslindar privilégios de Maria e esquecendo-se da mulher humilde e humilhada (pois que participou e terá sofrido da marginalização que recaía sobre as mulheres do seu tempo e meio ambiente), da mulher discípula de Jesus, cuja fé é muito mais de se exaltar do que sua maternidade física, fato que a situa muito mais do nosso lado juntamente com o Verbo que se fez carne (o lado frágil do nosso ser humano) e armou sua tenda entre nós (cf. Jo 1,14).
Após a Primeira Guerra Mundial, notando-se o mal-estar de uma linguagem e das afirmações sobre Maria provenientes de uma teologia correndo nos trilhos de uma epistemologia falha, a teologia católica ocidental, passo a passo com a mariologia, começou a entender-se como o final esclerosado de uma evolução que se comprovou em suas fraquezas como grande distância dos inícios bíblicos e patrísticos, que era necessário recuperar. A reflexão humana de determinados teólogos e da Escolástica ficara mais pensada e falada do que a origem dada por Deus, a fé objetiva (as verdades e fórmulas de fé) mais acentuada do que a fé subjetiva (a vivência da fé). Evidenciou-se a necessidade de aplicar novas epistemologias, novas perspectivas impostas pelos tempos modernos com suas novas interrogações e interesses, bem como mais acurado retorno à Sagrada Escritura, agora estudada de forma renovada com novos métodos de pesquisa, devendo tornar-se ela mesma a alma de toda teologia. Destas tentativas falaremos no próximo número de Vida Pastoral.
[1] Concilium, n. 188, p. 922.
[2] Sobre a complexidade do argumento bíblico, cf. R. Brown; K. L. Donfried; J. A. Fitzmyer; J. Reumann. Maria en el Nuevo Testamento. Salamanca: Sígueme, 1982, pp. 175-210.
Pe. João Rezende Costa