Publicado em janeiro – fevereiro de 2020 - ano 61 - número 331 - pág.: 38-40
SANTA MARIA, MÃE DE DEUS – 1º de janeiro
Por Francisco Cornélio Freire Rodrigues
Pelo filho “nascido de mulher”, Deus nos dá sua bênção
I. Introdução geral
Na conclusão da oitava de Natal e início do novo ano civil, a Igreja celebra a solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, recordando a afirmação do Concílio de Éfeso, no ano 431 d.C., que a definiu como Theotókos, cujo significado literal é “geradora de Deus”. A intenção da Igreja, no entanto, com essa definição não era propriamente incentivar ou promover um culto a Maria, mas ajudar na compreensão da identidade de Jesus, seu filho, como verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Por isso, essa celebração é altamente cristológica e soteriológica, como é toda a liturgia da Igreja.
As três leituras desta celebração, por sinal, encontram seu ponto de unidade na paternidade de Deus: sobre Israel (1ª leitura), sobre Jesus (evangelho) e sobre a humanidade inteira (2ª leitura), resgatada da escravidão do pecado pelo Filho e passando também à condição filial, a ponto de poder chamar a Deus de Pai. O Filho de Deus, nascido de mulher, é a bênção por excelência, pois revela com clareza o rosto do Pai, cujo olhar se dirige especialmente para os pobres, como os pastores do evangelho deste dia. Essa obra maravilhosa teve a participação ativa de Maria. Além de dizer sim, ela soube meditar e guardar no coração as maravilhas realizadas por Deus em sua vida pessoal e na história do povo de Israel. Por isso, é justo que seja recordada, hoje e sempre, por ter contribuído para que, pelo seu filho, a paternidade e a bênção de Deus se estendessem à humanidade inteira.
No ano de 1968, o papa São Paulo VI declarou 1º de janeiro como o Dia Mundial da Paz. É um convite aos cristãos para que sejam construtores da paz, repudiando todas as formas de violência e vivendo relações fraternas, marcadas pelo amor. A paz é bênção de Deus aos seus filhos e filhas.
II. Comentários dos textos bíblicos
1. I leitura: Nm 6,22-27
A primeira leitura contém a bênção sacerdotal do livro dos Números, transmitida por Deus aos sacerdotes por meio de Moisés (cf. v. 22), para que abençoassem todo o povo de Israel (cf. v. 23). Essa bênção era proferida no final de cada ato litúrgico no Templo de Jerusalém, incluindo os sacrifícios. Como é centrada no nome de Deus, a invocação dessa bênção era exclusividade dos sacerdotes, uma vez que somente eles tinham permissão para pronunciar esse nome. Com a destruição do Templo, passou a ser utilizada também nas sinagogas, como ainda é, até hoje.
Na linguagem bíblica, a bênção não é apenas uma declaração ou desejo de coisas boas, mas se trata de palavra performativa e eficaz que, de fato, transmite os dons invocados. Os sacerdotes são encarregados de pronunciá-la, mas quem abençoa é Deus. A bênção consta de três invocações do nome do Senhor, com dois pedidos em cada uma delas. Como o número três significa perfeição, a tríplice invocação do nome de Deus evoca sua santidade e poder incomparáveis. Os seis pedidos da bênção contemplam as principais necessidades para o ser humano viver feliz e podem ser sintetizados como proteção de Deus e paz. De todos os dons invocados, o maior deles é a paz, o shalom hebraico, que significa o bem-estar do ser humano em todas as dimensões da vida: prosperidade material, saúde, harmonia nas relações com Deus e com o próximo e tudo o que conduz à felicidade.
Essa fórmula de bênção revela aspectos importantes da identidade de Deus: trata- -se de um “Deus pessoa” que tem nome (cf. v. 27) e rosto (cf. vv. 25-26), e pretende relacionar-se pessoalmente com seus filhos e filhas. Em Jesus, o Filho de Deus nascido de mulher, esse rosto se torna ainda mais claro e acessível a todos, pois Ele é a plenitude da revelação.
2. II leitura: Gl 4,4-7
A segunda leitura é retirada da carta aos Gálatas, uma das mais polêmicas que Paulo escreveu. Nessa carta, ele combate a tendência judaizante que queria impor a circuncisão e a observância de toda a Lei como condição para os cristãos alcançarem a salvação. Isso contradizia o que ele tinha ensinado nas comunidades da região, a saber, que para a salvação não era necessário outro meio, senão a fé em Jesus Cristo. O trecho lido hoje contém a única referência que Paulo faz à mãe de Jesus, mesmo sem citar o nome de Maria (cf. v. 4).
Com uma proclamação solene, Paulo declara, simultaneamente, as condições divina e humana de Jesus: ele é o Filho de Deus enviado ao mundo, nascido de mulher e sujeito à Lei (cf. v. 4). A expressão “nascido de mulher” recorda a fragilidade do ser humano (cf. Jó 14,1); “sujeito à Lei” significa a inserção na história concreta de um povo. Essa Lei fora dada por Deus para corrigir a conduta dos pecadores; mesmo sem pecado, Jesus submeteu-se a ela em solidariedade à humanidade pecadora. Dessa situação paradoxal, ele conseguiu dois resultados maravilhosos: libertou a todos os que estavam sujeitos à Lei e elevou todos os nascidos de mulher à condição de filhos de Deus (cf. v. 5).
Na condição de filhos, todos passam a uma relação de intimidade com Deus, superando a situação de escravidão imposta pela Lei. Por isso, recebendo o Espírito do Filho, aqueles que outrora eram escravos podem agora chamar a Deus, carinhosamente, de “Abbá” (v. 6), termo aramaico que significa papai ou paizinho, o que denota intimidade. Essa é a prova maior de que os cristãos já não são escravos, mas filhos e, portanto, herdeiros (cf. v. 7) de todos os dons divinos, como a salvação. Portanto, pelo Filho de Deus e de Maria, todos os nascidos de mulher se tornam também filhos de Deus, e isso é graça e bênção.
3. Evangelho: Lc 2,16-21
O evangelho é a continuação do trecho lido na noite de Natal. Ora, o anjo tinha anunciado aos pastores que nascera para eles um Salvador (cf. v. 11); marginalizados e excluídos como eram, eles não estavam habituados a receber notícias tão boas assim, por isso tiveram pressa em conferir se o anúncio do anjo era verdadeiro (cf. v. 16), pois quem espera por libertação não tem tempo a perder. Há aqui uma indicação clara de que são os pobres e marginalizados os primeiros destinatários da salvação inaugurada por Jesus.
Tendo encontrado tudo conforme o anjo tinha anunciado (cf. vv. 12.16.20), os pastores se tornam também evangelizadores: contam tudo o que lhes tinha sido dito (cf. v. 17) e fazem da vida um contínuo louvor e ação de graças (cf. v. 20). A reação de quem os escuta é de admiração, pois é grande novidade (cf. v. 18) – afinal, de acordo com a mentalidade da época, os pastores não tinham credenciais para receber um anúncio tão magnífico, por serem considerados a escória da sociedade e, de acordo com a religião, gente impura. Portanto, maravilhar-se com o que os pastores contaram, além de admiração, significa a compreensão de que uma nova história está sendo construída, a partir dos pequenos e excluídos. O sinal mais evidente dessa reviravolta histórica é a condição do salvador recém-nascido: não descansa em berço esplêndido, mas numa manjedoura, em meio a moscas e esterco.
A reação de Maria é ainda mais profunda. Como participante e colaboradora ativa de tudo o que estava acontecendo, ela “guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração” (v. 19), ou seja, refletia sobre os acontecimentos para, assim, apreciar melhor o significado, inclusive juntando com tudo o que já tinha vivido até então, desde o anúncio do anjo (cf. Lc 1,26-38). Como mãe do Filho de Deus e, portanto, mãe de Deus também, ela sentia que a história da salvação estava sendo reescrita segundo novos parâmetros, com uma inversão de ordem: os últimos, como ela e os pastores, passaram a ser os primeiros!
Com a circuncisão no oitavo dia, de acordo com a Lei, e a imposição do nome (cf. v. 21), o evangelista evidencia ainda mais a inserção concreta e plena do Filho de Deus na história; a experiência dos pastores não foi alucinação nem sonho. A circuncisão é o atestado de pertença ao povo judeu e de sujeição à Lei vigente. A imposição do nome de Jesus revela a identidade e a missão do menino, pois esse nome significa “Deus salva”. Com a vinda do Salvador ao mundo – o Filho de Deus nascido de Maria –, a humanidade recebe definitivamente a bênção de Deus e conhece seu rosto, voltado preferencialmente para os pobres e excluídos.
III. Pistas para reflexão
Recordar os elementos que unem as três leituras: a paternidade de Deus presente ao longo da história e tornada plena com a vinda de Jesus ao mundo. A maior das bênçãos é a certeza de que Deus é Pai. Como seus filhos, é nossa missão nos empenharmos, o máximo possível, na construção da paz no mundo, promovendo a civilização do amor, vivendo como irmãos. Por isso, é incoerência invocar a bênção de Deus e ser conivente com políticas armamentistas ou com qualquer iniciativa que promova a violência. Cabe-nos aprender com Maria a perceber o agir de Deus na história e guardar tudo no coração. O rosto do Pai, revelado por Jesus, é acessível à humanidade, mas seu olhar se volta especialmente aos mais necessitados, aos que têm pressa pela libertação, como os pastores.
Francisco Cornélio Freire Rodrigues
é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN).