“Os confins do universo contemplaram a salvação do nosso Deus” (Sl 97,3)
I. Introdução geral
A promessa da contemplação da salvação de Deus (I leitura) se realiza na encarnação do seu Filho, enviado para comunicar a Boa-Nova da graça, da bondade, do amor divino do Pai (evangelho). Que, neste Natal, possamos nos deixar envolver pela gratuidade desse amor e ser, também nós, portadores da Boa-Nova do nascimento do Filho de Deus para todas as pessoas.
II. Comentário dos textos bíblicos
1. I leitura: Is 52,7-10
A passagem de Isaías escolhida para esta liturgia se inicia com um elogio dirigido ao mensageiro que leva a Boa-Nova a Sião (cf. vv. 7-8). A imagem da sentinela (cf. v. 8), geralmente, caracteriza a missão profética (cf. Jr 6,17; Os 5,8; 6,5; Hab 2,1; Ez 13,5).
Os temas centrais do anúncio, dirigido a Jerusalém, são a libertação e o resgate de seu esplendor. Os verbos “proclamar” e “evangelizar” são usados para indicar um anúncio público de algo novo ou que acontecerá (cf. Is 40-48). O verbo “dizer”, no Segundo Isaías (cf. Is 40-55), é empregado para introduzir um conteúdo positivo, como no v. 7, para proclamar a realeza de Deus (cf. Is 40,9; 44,26; 41,13; 51,16; 62,11). Esses verbos são utilizados para o anúncio de um evento acontecido no passado, em lugar diverso daquele no qual está sendo anunciado, e que tem repercussão nos interlocutores. De modo geral, são notícias positivas e, na perspectiva teológica, seu conteúdo é a vitória do Senhor e o advento da salvação. O verbo “anunciar”, mormente, tem como sujeito um mensageiro enviado por Deus (cf. Is 41,27). Essa missão tem um caráter universal.
Os termos traduzidos por “bem” e “paz” podem ser entendidos como consequência do evento histórico-salvífico que consiste justamente no retorno dos exilados, com o povo sendo libertado de seus adversários (cf. Na 2,1). A paz também tem o significado de bem-estar e segurança nas dimensões política e econômica (cf. Gn 26,29; Dt 23,7; Esd 9,12; Jr 8,15).
A salvação, em Is 52,7, assume o significado de administrar a justiça (cf. Is 60,16; 63,5.8.9) na defesa do povo (cf. Is 41,14; 44,6; 49,7; 63,8; 61,8-10).
Assim, há o convite para anunciar a salvação, isto é, as manifestações da potência divina mediante a intervenção de ações concretas, realizadas na criação e na história de Israel. A mensagem a ser transmitida (“teu Deus reina”, v. 7) é uma espécie de profissão de fé. Essa locução reafirma o monoteísmo e a realeza de Deus explicitada nas manifestações salvíficas e tem, como consequência, o restabelecimento ético, por meio dos termos “paz” e “bem”, trazendo a estabilidade, o bem-estar e o controle das forças hostis cósmicas, a fim de manter a ordem instaurada nos inícios e ainda em contínua restauração.
O exultar de alegria (cf. v. 8) provavelmente tem como motivo a vitória de Deus, seu julgar com retidão (cf. Sl 51,16; 67,5; 145,7; Dt 32,43) e o cumprimento das promessas (cf. Sl 132,9.16). O convite a exultar certifica a realização da redenção prometida pelo Deus de Israel, a qual todos poderão contemplar (cf. v. 10), e revela os efeitos da inauguração do Reino de Deus (cf. v. 7; Sl 72).
O louvor, explícito no v. 9, tem como motivação o ser consolado e resgatado. Após a mudança da condição de Jerusalém, o v. 10 abre um horizonte universal, no qual o Senhor mostra a salvação para todas as nações. Podem-se entender as nações (cf. v. 10) como todos os responsáveis pelo povo (os soberanos das nações) e pelos tribunais (os juízes). O convite a reconhecer o poder de Deus e celebrar sua soberania, portanto, é direcionado a todos, não só ao povo de Israel.
A expressão o “braço do Senhor” (v. 10) retrata seu poder como autor da salvação (cf. Is 51,9-11). Percebe-se que a santidade de Deus consiste em voltar-se para a humanidade de multíplices maneiras, a fim de libertá-la, salvá-la (cf. vv. 9-10).
A presença divina plenifica Jerusalém e a torna lugar, por excelência, da revelação teofânica da santidade a todas as nações.
A experiência da santidade está vinculada à ação de resgatar o povo (cf. v. 9) e de reconhecer a realeza divina (cf. v. 7). O conteúdo da consolação e da redenção é histórico e político, marcado pela reconstrução da cidade e pela mudança política e religiosa.
2. Evangelho: Jo 1,1-18
O prólogo do Evangelho segundo João se assemelha a um hino e, ao mesmo tempo, é uma síntese teológica dos temas que serão desenvolvidos no decorrer desse evangelho. As várias menções ao AT permitem articular várias tradições teológicas, como a da criação, a exodal, a teologia da presença, a sapiencial e a da aliança. Os vv. 1-18 podem ser estruturados em três partes: a origem da palavra divina (vv. 1-5); seu destino (vv. 6-13); a encarnação e sua acolhida pela comunidade (vv. 14-18).
O Evangelho segundo João, diferentemente dos evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc), não se inicia com as atividades de Jesus ou com as narrativas de sua infância, mas nos remete a Gn 1,1 – o relato da criação (cf. v. 1) –, para afirmar a força criadora da Palavra, que dá vida. O v. 1 também nos remete ao texto de Pr 8,22-36 (cf. também Is 55), a Sabedoria criadora. Desse modo, a Palavra existia antes da criação e participava da criação do mundo, sendo mediadora da criação (cf. v. 3). Essa Palavra de vida é também luz que ilumina os passos para a vida, dissipando as trevas (cf. 12,35), pois Jesus é a luz do mundo (cf. 8,12; 9,5), a luz que ilumina a todos (cf. v. 5). Desse modo, a luz e a vida são dons da salvação, por se contraporem às trevas. Esses pontos de contato, provavelmente, têm a intenção de apresentar o Filho como a Sabedoria criadora de Deus, que gera vida (cf. vv. 3-4) e se encarna, entrando na história.
Em Jo 1,6-13, num estilo mais narrativo, o autor evoca a figura de João Batista (cf. vv. 6-8), o precursor, que dá testemunho da luz. Ele, porém, não é a luz, não é o Messias. Essa luz testemunhada provoca nas pessoas uma tomada de posição. Portanto, ela pode ser rejeitada (cf. vv. 9-11) ou acolhida (cf. vv. 12-13). Todos aqueles que acolhem a luz, que é Jesus Cristo, são considerados filhos de Deus (cf. vv. 12-13). Essa filiação se dá na adesão a Jesus Cristo e no batismo, como marco inicial, mas deve ser cultivada no decorrer da vida do batizado.
A Palavra geradora de vida, que existia junto de Deus, encarna-se em nossa história (cf. v. 14), e, pela primeira vez, é afirmado que a Palavra é Jesus Cristo. O termo “carne” designa a totalidade da pessoa e também a humanidade em sua condição de fragilidade.
O conteúdo do v. 14 mostra-se influenciado pela tradição exodal, quando apresenta a encarnação de Jesus em nosso meio (cf. Ex 40) para nos revelar o Pai, constituir o ponto de encontro entre Deus e a humanidade e ser a manifestação da glória divina.
A expressão “e estabeleceu morada entre nós” está relacionada às tradições do Antigo Testamento, sobretudo da festa das Tendas (cf. Lv 23,34-36; Dt 16,13-15), da manifestação da glória de Deus (cf. Ex 25,8-9; 40,34-35) e da tenda do encontro (cf. Ex 33,7-11.18; 2Sm 7,1-13). O “fazer morada” remete-nos à presença de Deus, que acompanhava o povo no deserto, à morada da sabedoria, podendo também significar a presença definitiva de Deus (cf. Jl 4,17-18; Zc 2,14; Ez 3,37).
Os termos “graça” e “verdade” ocorrem na revelação de Deus a Moisés, quando este pede a Deus que mostre sua glória (cf. Ex 34,5-7). Também são utilizados na liturgia do povo de Israel. A palavra “graça” pode ter o sentido de compadecer-se, aproximar-se de alguém com benevolência. Verdade, por sua vez, não é um atributo abstrato, mas significa que Jesus é alguém fiel e é possível confiar nele.
O termo “Palavra”, no v. 14, traz em si todo o significado expresso nos versículos anteriores, a saber: essa Palavra já existia desde a eternidade (cf. vv. 1-2), participou na obra da criação (cf. v. 3) e é importante para as pessoas e para seu destino (cf. vv. 4-5). Tal Palavra é testemunhada por João Batista (cf. vv. 6-8) com o objetivo de suscitar a fé em Jesus Cristo, aquele que revela o Pai criador, Senhor do universo e Salvador (cf. vv. 9-12).
Por meio da encarnação do Filho, Deus torna possível a contemplação da sua glória, isto é, a comunidade experimenta a manifestação da presença divina (cf. Ex 33,11.18). Assim, por meio da fragilidade (encarnação) e da extrema vulnerabilidade humana (morte), é manifestada a glória de Deus. A cruz, desse modo, é o lugar da revelação, do encontro entre Deus e a humanidade (cf. Jo 6,51; 11,51-52; 12,24; 18,14).
Portanto, no prólogo joanino, somos conduzidos a conhecer Jesus Cristo – a encarnação da Palavra na história humana –, a responder a esse anúncio por meio da fé e sermos também testemunhas desse Deus que se faz carne e habita em nós e entre nós.
3. II leitura: Hb 1,1-6
Os vv. 1-4 da chamada carta aos Hebreus, cujo conteúdo se assemelha a uma homilia litúrgica, constituem uma introdução ao livro. O objetivo desses versículos é apresentar Jesus Cristo como o centro da história, como a definitiva palavra reveladora de Deus, e seu papel na ação salvífica. Em Cristo, as revelações e as intervenções divinas descritas no AT são plenificadas. Ele é a expressão máxima da comunicação de Deus com a humanidade (cf. v. 1).
No v. 2, o autor anuncia a identidade de Jesus, ao afirmar que Deus o constituiu herdeiro universal e por meio dele criou o universo. Esses elementos estão em harmonia com o texto do evangelho desta liturgia (Jo 1,1-18). A menção à herança nos remete ao AT e sintetiza as esperanças messiânicas (cf. Sl 2,8).
A estreita relação existente entre o Pai e o Filho é descrita no v. 3, por meio de metáforas retiradas do livro da Sabedoria (cf. Sb 7,26 e 8,1). Jesus é o reflexo da glória do Pai – aspecto já acenado no comentário ao evangelho –, mas também participa da criação e a sustenta com sua Palavra. Além da relação de Jesus com a criação, o texto evoca o evento histórico-salvífico de sua morte, por meio da expressão “purificação dos pecados”. Assim, Cristo Jesus é o mediador entre Deus e a humanidade, e elimina tudo aquilo que causa ruptura nas relações (os “pecados”). Outro aspecto mencionado é a entronização divina do Filho (cf. v. 3). Por isso, ele é considerado superior aos outros seres celestes. Para justificar essa afirmação, o autor insere várias provas escriturísticas nos vv. 5-6. As referências a Sl 2,7 e 2Sm 7,14 confirmam a diferença entre os seres celestes e Jesus. Desse modo, ressalta-se a superioridade de Jesus, pois ele é Filho e, portanto, tem uma comunhão especial com o Pai. Reafirma-se também a relação existente entre o messianismo de Jesus e a dinastia davídica. Consequentemente, os anjos são convidados a render ao Filho a mesma honra devida a Deus, ou seja: adorá-lo (cf. v. 6).
III. Dicas para reflexão
Ao contemplar o mistério da vida e o mistério da potência divina revelada numa criança, somos convidados a refletir sobre o que é essencial em nossa existência, a valorizar as pequenas vitórias e os momentos nos quais percebemos a revelação da graça e da bondade de Deus.
Zuleica Aparecida Silvano
Ir. Zuleica Aparecida Silvano, religiosa paulina, licenciada em Filosofia pela UFRGS, mestra em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutora em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde atualmente leciona. É assessora no Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas) em Belo Horizonte.