A mesa partilhada é bênção para todos
I. Introdução geral
Os evangelhos nos mostram que, enquanto Jesus caminhava, olhos atentos repousavam sobre ele. Suas palavras e gestos eram acompanhados de muito perto. Eram palavras e gestos carregados de sentido e de poder transformador. Mas eram, também, palavras e gestos que causavam desconforto no modo de viver de muitas pessoas. Palavras que chegavam, de forma muito cristalina, à mente e coração daqueles que o seguiam. Não havia nada de conceitos esotéricos, difíceis e acessíveis somente a poucos escolhidos. A vida de Jesus e suas palavras abriam-se para o mundo a fim de transformá-lo. Não se tratava de Jesus construir uma seita de iniciados. Tratava-se, isso sim, de mostrar a todas as pessoas que a mesa da partilha estava posta para todos os que quisessem dela participar. Na mesa de Jesus não há espaço para exclusão. Na partilha há alimento para todos, porque a solidariedade e a fraternidade repousam sobre todos.
II. Comentários dos textos bíblicos
- I leitura (Eclo 3,19-21.30-31): a partilha como projeto de vida
A primeira leitura traz uma advertência contra o orgulho de ontem e de hoje. Na época do texto, provavelmente a advertência se relacionasse com a forte pressão sofrida pela sabedoria judaica diante da supremacia do saber especulativo e racionalista grego. O que fazer diante de uma cultura que se apresentava com força avassaladora e punha a identidade do povo em risco? O livro do Eclesiástico responde à pergunta, fundamentando sua reflexão no pressuposto da revelação divina. A sabedoria judaica trabalhava com uma lógica bastante distinta que, por certo, causava estranheza a muitos: a seu ver, quem repartia era justamente aquele que mais acumulava para o futuro. Sem dúvida se trata de uma lógica às avessas. Em geral, afirmamos exatamente o contrário, ou seja, que a melhor maneira de garantir o futuro é guardar no presente, sem qualquer possibilidade de partilha ou de divisão. É de bom tom também recordar que, muito tempo depois, na Igreja primitiva, as mesmas advertências eram lembradas contra a tendência gnóstica, que postulava a salvação por meio de fontes secretas de conhecimento não disponíveis a todas as pessoas, mas somente a alguns privilegiados que haviam sido iniciados no gnosticismo.
- II leitura (Hb 12,18-19.22-24a): o firme fundamento se encontra em Jesus
Existe um firme fundamento superior a todos os outros. Para o autor da carta aos Hebreus, já não cabem os sentimentos de medo e terror característicos do Sinai. No interior das relações comunitárias estão presentes outros sentimentos, justamente porque os fundamentos da comunidade foram mudados. A nova aproximação acontece de acordo com uma quádrupla realidade, assim disposta: Deus, os anjos, os mártires e Jesus. A certeza de alicerces bem fundamentados permite passar pelas tempestades e sobreviver. Várias evidências mostram que as comunidades passavam por momentos difíceis. Por isso, o testemunho que são chamadas a dar ocorre em meio a perseguições e sofrimento, podendo chegar ao martírio. É possivelmente essa perspectiva de conflitos que amedronta as comunidades, levando-as à letargia ou à apatia da fé, à falta de confiança e ao medo diante do sofrimento. Jesus, como mediador da nova aliança, produz nova maneira de ser e de viver. Existe, porém, um passo inicial a ser dado em direção à fonte correta da vida. Aproximar-se exige discernimento, e assim a segunda leitura faz questão de mostrar que se aproximam do firme fundamento todos aqueles que caminham em direção a Jesus.
- Evangelho (Lc 14,1.7-14): a verdadeira honra
Aonde quer que vá, Jesus sempre é observado por olhos muito atentos. Com curiosidade, e também de forma crítica, desejam verificar tudo quanto faz e diz. Num sábado, ele se encontra na casa de um chefe fariseu para almoçar. Quem é esse Jesus, cuja presença desperta muito mais interesse do que os próprios alimentos postos à mesa? Ali, olhares curiosos terão a oportunidade de aprender a integridade de atitudes e de vida. A pedagogia de Jesus, porém, desenvolve-se desde o reverso dos espaços sociais. Os convidados chegam e se sentam à mesa. E, num gesto considerado natural naquele tempo, olha-se com atenção a procedência e a credencial de cada convidado. Reivindicava-se procedência porque uns se achavam mais dignos do que os outros. Somos melhores e, aos melhores, os primeiros lugares, talvez fosse o refrão mais conhecido dos fariseus. Estes estavam seguros de si mesmos e, possivelmente, seguros também da inadequação de todos os outros diferentes deles. A geografia dos lugares, para os fariseus, era muito bem demarcada: de um lado, nós, e do outro lado, todos os diferentes e inferiores a nós.
Jesus olha atentamente e percebe que o momento da refeição, em vez de ser marcado pela partilha e pela fraternidade, havia se tornado um instrumento de aprofundamento das divisões sociais, ou seja, marcava e aprofundava as diferenças entre aqueles que eram e os que não eram, entre aqueles reconhecidos como fortes e os considerados fracos, entre puros e impuros, entre ricos e pobres. Tratava-se, na verdade, de uma prática que fazia da honra uma moeda de troca. Nada ali era gratuito, uma vez que as relações interpessoais se fundamentavam no interesse e na vantagem pessoal. Para Jesus, a refeição era considerada espaço privilegiado para viver o dom da gratuidade. Pedagogicamente, portanto, ele mostra a seu anfitrião que a gratuidade deveria ser considerada a marca das relações entre as pessoas. Quem de graça dá e se dá não permanece à espera de ser contemplado com algum favor por aquilo que fez. O princípio de Deus é o seguinte: quem dá para receber um prêmio não receberá nada; mas, se der sem pensar nisso, seu prêmio estará assegurado. Jesus não aprova um comportamento basea- do em conveniências ou mesmo na esperança de receber alguma compensação. É necessário convidar os mais pobres dentre os pobres. Destes não se esperava absolutamente nada: não tinham honra ou influência, não era prazeroso partilhar a refeição com eles à mesma mesa e, além disso, a presença deles era desabonadora (“o que vão falar de mim?”). A única forma de dar verdadeiramente é aquela que vem do influxo incontrolável do amor. Para Jesus, a mesa compartilhada se converte em expressão da comunidade aberta que inaugura o reinado de Deus. Na presença daqueles considerados desqualificados é que, de fato, acontece o banquete do Reino. Jamais se realizará o banquete do Reino de Deus enquanto não houver pão em toda mesa.
III. Pistas para reflexão
1) A primeira leitura faz séria advertência quanto à arrogância. Esta é como um veneno que se espalha por todo o corpo e impede a construção de relacionamentos saudáveis e de comunidades fraternas. Quais os prejuízos causados pela arrogância em sua vida e comunidade?
2) Qual é o fundamento de nossa fé? A qualidade do terreno onde fundamentamos a vida é essencial. Muitos são aqueles que a edificam sobre a areia e, assim, vivem crises intermináveis de fé. Os que têm Jesus como firme fundamento adquirem estabilidade.
3) Jesus é totalmente contrário a divisões sociais. Divisões promovem hierarquia entre ricos e pobres, fortes e fracos, puros e impuros. Por isso, numa comunidade sem divisão, é possível servir e ser bênção na vida do próximo, sem exigir algo em troca.
Luiz Alexandre Solano Rossi
Luiz Alexandre Solano Rossi é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade; A origem do sofrimento do pobre.