Publicado em setembro-outubro de 2019 - ano 60 - número 329 - Pág. 25-34
“Todo aquele que odeia seu irmão é homicida” (1Jo 3,15) Uma leitura da primeira carta de João 3,11-24
Por Centro Bíblico Verbo
A destruição provocada pelo rompimento da Barragem Mina de Feijão, em Brumadinho, no dia 25/1/2019, foi imensa.
Cerca de 270 hectares foram devastados, entre mortos e desaparecidos houve 332 vítimas. No Brasil, 3,5 milhões de pessoas vivem em cidades com barragens em situação de risco.
Introdução
Diante da realidade mencionada na introdução deste artigo, como nos sentimos e nos posicionamos? Somos cristãos que confessamos: Jesus Cristo, Palavra de Deus feita carne humana, é o caminho e a manifestação do amor de Deus (cf. 1Jo 4,2). Ele assumiu o projeto da justiça e do amor até a entrega da própria vida. As pessoas cristãs são chamadas a vivenciar o amor de Deus e dar continuidade à missão do Jesus da história, rejeitando todas as realidades de injustiça que desfiguram a vida humana.
Tanto no século I como hoje, as realidades de injustiça continuam eliminando pessoas. No contexto de morte vivido na grande cidade de Éfeso, no fim do século I, o autor da primeira carta de João escreve: “Todo aquele que odeia seu irmão é homicida” (1Jo 3,15). É um grito em defesa da vida humana. O amor ao próximo é o primeiro e o último passo para respeitar e recuperar a vida de todos os seres humanos. Cada pessoa é digna somente pelo fato de existir, pois é uma forma única e irrepetível, é expressão do infinito amor de Deus: “Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4,8). Lemos as mensagens da primeira carta de João e refletimos sobre elas para alimentar e fortalecer nossa humanidade na fé no Sagrado encarnado em nosso meio.
1. O patronato, a associação e a comunidade crista
A população de Éfeso era constituída por dois terços de escravos/as, que trabalhavam, por exemplo, como estivadores do porto que movimentava a economia da cidade. Eram trabalhadores braçais sem direito à cidadania que sofriam muito com a exploração, a violência e a humilhação. Sofrimento, desespero, revolta dos pobres pairavam na sociedade!
Um dos meios de o Império Romano controlar os habitantes de uma cidade cosmopolita como Éfeso era a rede (sistema) de patronato ou clientelismo, que se caracterizava pela “troca” de favores entre as pessoas e criava verdadeira teia de influência e poder. O patrono rico, ao favorecer o cliente pobre, gerava dependência e submissão, porque a pessoa pobre se sentia grata e devedora de favores ao poderoso.
Na sociedade patronal, a figura máxima era o imperador, denominado pater patriae. Ou seja, ele era considerado o pai e o patrono do império, distribuidor dos bens, defensor da pax romana, sendo até chamado de “Senhor”, kyrios, em grego. A imagem divinizada do senhor imperador era alimentada nas cidades conquistadas por meio de jogos, procissões, imagens, cultos, sacrifícios e dedicação de templos em sua homenagem.
Os funcionários romanos, os notáveis do local e os homens ricos e poderosos disputavam entre si a melhor forma de homenagear o imperador e sua família, em troca de “patrocínios” – benfeitorias. Os favores mais comuns eram a distribuição de cargos e honras, a assistência financeira, o direito de obter cidadania romana e até o de usar o sistema de suprimento de água.
O patronato era um fenômeno tão abrangente no mundo greco-romano que essa rede estava estabelecida na sociedade como um todo. A criação de associações, geralmente marcadas pelo patronato, por exemplo, era muito comum nos centros urbanos do Mediterrâneo, com um constante vaivém de pessoas de várias regiões. As inscrições descobertas nas grandes cidades atestam a existência de várias associações, como a dos comerciantes, a dos tintureiros de púrpura, a dos fabricantes de jugo etc.
Em geral, os homens mais destacados fundavam as associações, formadas por pessoas que se ocupavam do mesmo ofício para promover contatos sociais e proteger seus interesses particulares, incluindo distribuição de comida, organização de sepultura, atendimento a viúvas e crianças órfãs etc. Nas reuniões, os homens poderosos e ricos, que patrocinavam as associações, eram homenageados pelos membros menos favorecidos. Os pobres preferiam ter os homens influentes como patronos para serem protegidos e beneficiados por eles. Contudo, na política e na economia, ficavam amarrados aos interesses desses patronos ricos, que se tornavam cada vez mais ricos e poderosos.
A estrutura de base de muitas associações era uma hierarquia patronal. Por exemplo, os membros dessas associações se reuniam pelo menos uma vez por mês, geralmente em ocasiões de festas, sobretudo em honra da divindade protetora. O culto às suas divindades era uma forma de alimentar o senso de proteção e de unidade do grupo. A reunião costumava ser na forma de uma refeição comunitária: o banquete patronal (deipnon). Normalmente, esse banquete se realizava nas casas dos patronos poderosos e obedecia a certas normas. Os convidados, por exemplo, sentavam-se de acordo com sua posição social: de um lado, os ricos, os poderosos e os influentes; de outro, os libertos, os pobres e os escravos (cf. Lc 14,7-11).
Os ricos eram recebidos no refeitório – triclínio – com tapetes e assentos confortáveis, onde se acomodavam, em média, de oito a dez pessoas. Eram os primeiros a ser servidos, recebendo os melhores alimentos. Os pobres eram acomodados no átrio, uma espécie de pátio, parcialmente coberto e menos confortável que o triclínio. A maioria das pessoas ficava em pé, encostada em alguma parede ou pilastra, e recebia comida e bebida inferiores. A estratificação social estava bem presente!
Tudo isso fazia parte da estratégia de dominação. O sistema patronal estava presente em todas as dimensões da sociedade como também nas associações, e era quase impossível viver à sua margem. A hierarquia da sociedade de patronato e clientelismo dividia os pobres, atrelava-os aos interesses de seus patronos e dificultava o surgimento de um movimento de resistência e de protesto contra os poderosos patrocinadores. Abafava e engolia a exploração, a violência e a humilhação, o sofrimento, o desespero e a revolta dos pobres no mundo greco-romano opressor.
Todavia, uma das associações, denominada “cristã”, estava na contramão do patronato. Ela tentava promover a solidariedade com os pobres e não se deixar corromper pelas estruturas injustas de patronato e clientelismo. Procurava não fazer distinção entre as pessoas, diferentemente do mundo greco-romano, que praticava a injustiça, privilegiando os ricos e os detentores do poder. Daí o princípio fundamental que orientava a ação cristã: o amor ao próximo, manifestado na vida concreta de Jesus, o Messias encarnado. Tal ação era exercida sem esperar nada em troca, sem deixar quem recebia os benefícios desse amor em situação de dependência e submissão.
No seguimento de Jesus, a comunidade cristã identificava o próximo com os pobres, os oprimidos e os marginalizados do mundo do império, baseado na riqueza e no poder: “Pois tive fome e vocês me deram de comer, tive sede e me deram de beber, era estrangeiro e me acolheram, estava nu e me vestiram, estava doente e me visitaram, estava na cadeia e vieram me ver” (Mt 25,35-36). Segundo os evangelhos, a opção de Deus pelos pobres foi assumida pela comunidade cristã – associação que professava a fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado.
Alguns relatos das cartas e dos documentos das comunidades sobre a ação cristã reforçam o atendimento às necessidades dos pobres: a) a partilha de alimento com os pobres nas ceias (cf. 1Cor 11,17-34); b) o acolhimento dos forasteiros sem direito algum (cf. 1Pd 1,1-2); c) o atendimento a viú-
vas e órfãos: “A religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, consiste em socorrer os órfãos e viúvas em seu sofrimento e não se deixar corromper pelo mundo” (Tg 1,27). O grupo social desvalido recebia especial atenção da caridade praticada pela comunidade cristã, na contramão do mundo escravagista, que valorizava “o ouro e a prata” (At 3,1-10).
As mesmas cartas, entretanto, trazem informações sobre a ação de alguns membros da comunidade cristã que discriminavam, oprimiam e envergonhavam os pobres, como agem em geral os ricos e poderosos do mundo:
a) Discriminação e ostentação na ceia: “Então, quando vocês se reúnem, o que fazem não é comer a ceia do Senhor. Porque cada um se apressa em comer sua própria ceia. E assim, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado. Vocês não têm suas casas onde comer e beber? Ou desprezam a igreja de Deus e querem envergonhar aqueles que nada têm?” (1Cor 11,20-22a).
b) Desprezar e humilhar os pobres: “Vocês desprezam o pobre. Não são os ricos que oprimem vocês e os arrastam aos tribunais? Não são eles que blasfemam contra o Nome sublime que foi invocado sobre vocês?” (Tg 2,6-7).
c) As imundícies do mundo: “Com discursos pomposos e vazios, e com a isca sensual da libertinagem, seduzem aqueles que acabaram de se afastar dos que vivem no erro. Prometem a eles liberdade, mas são escravos da corrupção, pois cada um se torna escravo daquele a quem se rende. Portanto, se pelo conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo alguém se afastou das imundícies do mundo, e novamente se deixa seduzir e se rende a elas, seu último estado torna-se pior que o primeiro” (2Pd 2,18-20).
O último relato revela o problema e o conflito vivido pela comunidade cristã no início do século II, na Ásia Menor: alguns membros, sobretudo os homens mais destacados e poderosos da comunidade, deixam de seguir o evangelho de Jesus Cristo, o Messias encarnado. Separando a fé da vida prática, eles cultivam e propagam as “imundícies do mundo”, alegando ainda que estão em comunhão com o Deus verdadeiro pelo conhecimento (gnosis) racional e espiritual dele.
O mesmo problema acontece com a comunidade da primeira carta de João, do fim do século I ou início do século II, na Ásia Menor: “Como pode o amor de Deus permanecer em quem possui os bens deste mundo, se esse tal vê seu irmão passando necessidade e lhe fecha o coração?” (1Jo 3,17). Com a práxis do patronato e da associação do mundo greco-romano, os homens destacados e poderosos da comunidade, que providenciam o recinto das reuniões e a alimentação para os pobres, deixam-se seduzir pelo mundo e agem segundo a estratificação da sociedade escravagista, desprezando e humilhando os pobres.
O autor da primeira carta de João condena a prática dos poderosos, chamados de anticristos em 1Jo 2,18, retoma e propõe o princípio fundamental que orienta a ação cristã: o amor ao próximo (cf. 1Jo 3,11-24).
2. O amor ao próximo
O autor inicia 1Jo 3,11-24 – a nova seção da carta, paralela a 1Jo 2,3-11 (que traz como tema o mandamento do amor fraterno) – com o princípio fundamental da ação cristã: “Porque esta é a mensagem que vocês ouviram desde o princípio: que nos amemos uns aos outros” (1Jo 3,11). O mandamento do amor ao próximo, vivido e transmitido por Cristo Jesus, o Messias encarnado, opõe-se à prática de patronato e de clientelismo. Esta prática usa os pobres e busca mantê-los na pobreza e na dependência, beneficiando de fato os poderosos, que agem geralmente impulsionados pela busca desenfreada de bens, poder, prazer e honra do mundo do Maligno (cf. 1Jo 2,12-17).
Para sublinhar a oposição entre o amor e o ódio, a história de Caim e Abel (cf. Gn 4,1-8) é lembrada: “Não façam como Caim, que pertencia ao Maligno e assassinou seu irmão. E por que o assassinou? Porque suas obras eram más, e as do seu irmão eram justas” (1Jo 3,12). O amor fraterno e o ódio homicida! Quanto mais o amor fraterno do Messias encarnado for acolhido e vivido, mais será combatido o mundo do Maligno. Isso poderá fazer surgir o ódio e a inimizade, uma vez que a vida segundo os desejos e a ganância do Maligno é irreconciliável com a prática cristã. Daí acontece a perseguição: “E não fiquem espantados, irmãos, se o mundo odeia vocês” (1Jo 3,13).
A perseguição contra os cristãos é frequentemente relatada pela comunidade joanina: “Se o mundo odeia vocês, saibam que primeiro odiou a mim. Se vocês fossem do mundo, o mundo amaria o que é dele. Mas porque vocês não são do mundo, pois o fato de eu os ter escolhido é que separou vocês do mundo, por isso é que o mundo os odeia” (Jo 15,18-19). Há uma oposição entre Jesus Cristo e o mundo, entre o amor fraterno e o ódio ganancioso. A sociedade escravagista do mundo greco-romano e seus promotores não podem aceitar o testemunho da comunidade seguidora de Jesus, o “servo de Deus” (cf. Is 42,1-9).
A oposição entre Jesus Cristo (amar) e o mundo (odiar) antes aparecia acompanhada da oposição “estar na luz” e “estar nas trevas”: “Deus é luz, e nele não há trevas” (1Jo 1,5); “Quem diz que está na luz, mas odeia seu irmão, está na escuridão até agora. Quem ama seu irmão permanece na luz, e nesse não há ocasião de tropeço” (1Jo 2,9-10). O autor especifica que o tempo presente, o agora, vem acompanhado da oposição entre “vida” e “morte”: “Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos aos irmãos. Quem não ama permanece na morte” (1Jo 3,14). O amor gera “vida”, e o ódio, a vida sem solidariedade, com ganância e egoísmo, produz “morte”!
Ao descrever a antítese entre a vida e a morte, o autor insinua a gravidade dos desentendimentos e conflitos na comunidade. E o conflito provocado pelos anticristos na comunidade se acirra a ponto de eles serem acusados de ato homicida: “Todo aquele que odeia seu irmão é homicida, e vocês sabem que nenhum homicida tem a vida eterna dentro de si” (1Jo 3,15). O termo “homicida”, utilizado apenas três vezes no Novo Testamento, aparece duas vezes na primeira carta de João (cf. 1Jo 3,15) e uma vez no evangelho: “O pai de vocês é o diabo, e vocês querem realizar os desejos do pai de vocês. Ele era assassino (homicida) desde o princípio e não esteve do lado da verdade, porque nele não existe verdade” (Jo 8,44a).
Em Jo 8,31-59, os opositores de Jesus, que julgam ter a verdade, querem matá-lo por sua prática libertadora, que rompe com a ordem injusta dos poderosos. Após ter acusado os anticristos de rejeitar Jesus e de viver o projeto do mundo (cf. 1Jo 2,12-28), o autor da primeira carta de João afirma que quem odeia o irmão é “homicida”, porque o ódio está no princípio do pensamento e da ação do mundo do Maligno, que provo-
ca preconceito, discriminação, exploração, opressão e morte.
Ao contrário, o amor ao próximo está no princípio do sentimento, do pensamento e da ação do Deus da vida e de seu Filho, Jesus Cristo, que produz a liberdade, a vida nova e a vida eterna dos irmãos: “É nisto que conhecemos o que é o amor: porque Jesus entregou sua vida por nós; portanto, também nós devemos entregar a vida pelos irmãos” (1Jo 3,16). Jesus, capaz de dar testemunho do amor ao próximo até o fim, encoraja a pessoa e a liberta do medo da morte, provocada pelo poder dos opressores.
Em outras palavras, trata-se de acreditar na força do amor de Deus diante do poder do mundo do Maligno: “A palavra de Deus permanece em vocês, e vocês estão vencendo o Maligno. Não amem o mundo nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor de Deus não está nele” (1Jo 2,14b-15); “Neste mundo vocês terão aflições, mas tenham coragem: eu venci o mundo” (Jo 16,33b). A vida cristã sustenta-se na fé absoluta em Deus e na prática do seu amor!
Depois de apresentar a morte de Jesus como o amor ao próximo até o fim, o autor da primeira carta de João faz uma pergunta sobre a prática do amor e da solidariedade no cotidiano da comunidade: “Como pode o amor de Deus permanecer em quem possui os bens deste mundo, se esse tal vê seu irmão passando necessidade e lhe fecha o coração?” (1Jo 3,17). O amor fraterno tem de se mostrar concreto mediante o testemunho cotidiano: “Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com obras e na verdade” (1Jo 3,18).
Em seguida, o autor faz longa exortação à comunidade relativa à atitude de nosso “coração” diante de Deus:
Nisso sabemos que somos da verdade e podemos tranquilizar nosso coração diante de Deus. Porque, se nosso coração nos condenar, Deus é maior que nosso coração e conhece todas as coisas. Amados, se nosso coração não nos condena, temos confiança diante de Deus, e recebemos tudo o que lhe pedimos, porque guardamos seus mandamentos e fazemos o que lhe agrada (1Jo 3,19-22).
Na Bíblia, o termo “coração” refere-se ao centro de tomada de decisões – a consciência: “Quando guardei silêncio, meus ossos se consumiram, gemendo o dia todo, pois dia e noite pesava sobre mim a tua mão; minha seiva (coração) se transformou em mormaço de verão” (Sl 32,3-4); “Em Cristo, eu digo a verdade, não minto, e disso minha consciência me dá testemunho no Espírito Santo: é grande a minha tristeza e contínua a dor em meu coração” (Rm 9,1-2). Tomar a decisão (o agir do coração) implica a existência humana – a ação cristã, como já mencionado: “Filhinhos, não amemos com palavras nem com a língua, mas com obras e na verdade” (1Jo 3,18).
No confronto do coração diante de Deus, a comunidade cristã tem de assumir e praticar o mandamento principal de Jesus, escreve o autor: “E o seu mandamento é este: que acreditemos no nome do seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, conforme o mandamento que ele nos deu” (1Jo 3,23; cf. Jo 15,12-13). Diante da antítese entre Deus e o Maligno, luz e trevas, Jesus e mundo, amar e odiar, vida e morte, o cristão e a comunidade cristã têm de tomar a decisão para produzir a vida nova e eterna, seja prestando assistência mais imediata a quem dela precisa, seja exprimindo sua solidariedade e seu amor também por meio de opções políticas.
Tomar decisão em favor da vida significa, sobretudo, permanecer em Deus: “Quem guarda os mandamentos dele permanece em Deus, e Deus nele. Nisso percebemos que Deus permanece em nós: pelo Espírito que ele nos deu” (1Jo 3,24). O termo “permanecer” também faz parte do vocabulário típico da literatura joanina e já apareceu diversas vezes no Evangelho de João: “Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês” (Jo 15,4a); “Da forma que meu Pai me amou, eu também amei a vocês: permaneçam no meu amor” (Jo 15,9).
Em Jo 15, o termo “permanecer” aparece 11 vezes, o que deixa transparecer a gravidade da crise da comunidade, causada pela perseguição dos poderosos do mundo e traduzida na grande desistência dos seus membros. Uma década mais tarde, a comunidade da primeira carta de João sofre com a crise provocada pelos anticristos: desintegração, conflito, desprezo, humilhação e opressão contra os pobres. É preciso caminhar com Jesus Cristo encarnado, observando o mandamento do amor e criando uma rede de solidariedade concreta na sociedade marcada pelo Maligno. É o dever cristão!
Na caminhada cristã, o autor reafirma a presença do Espírito: “Deus permanece em nós: pelo Espírito que ele nos deu” (1Jo 3,24b). O dom do Espírito mantém sempre viva a memória de Jesus, ensina e renova seu ensinamento de ontem e de hoje. Queira Deus que os cristãos, ungidos pelo Espírito, saibam discernir e encarnar Jesus Cristo em suas práticas concretas em favor dos irmãos.
3. O retrato da comunidade da primeira carta de João
A primeira carta de João termina com um resumo conclusivo:
Nós sabemos que somos de Deus, mas o mundo inteiro está sob o poder do Maligno. Sabemos que o Filho de Deus veio e nos tem dado entendimento para conhecermos o Deus verdadeiro. E nós estamos no Verdadeiro, no Filho dele, Jesus Cristo. Este é o Deus verdadeiro e a vida eterna. Filhinhos, fiquem longe dos ídolos! (1Jo 5,19-21).
Jesus Cristo é o Deus verdadeiro! Eis a declaração de uma comunidade cristã que passa por grave crise interna e externa. Em seu interior, ela enfrenta o grupo de dissidentes – anticristos e falsos profetas (cf. 1Jo 4,1-3) – que nega o Jesus da história como o Filho de Deus (cf. 1Jo 2,22; 4,15), não pratica os mandamentos – o amor ao próximo (cf. 1Jo 2,3-11) – e seduz os fiéis para o mundo do Maligno (cf. 1Jo 4,5). Exteriormente, a comunidade sofre com a perseguição do mundo do Império Romano e, ao mesmo tempo, sente a forte sedução do mundo dos maus desejos e do dinheiro, simbolizados pelos “ídolos” (cf. 1Jo 2,15-16). Há desentendimentos e conflitos na comunidade.
O autor da primeira carta de João quer fortalecer a fé e o ensinamento tradicional dos cristãos (cf. 1Jo 1,3-4; 2,7), para não serem seduzidos pelos anticristos e falsos profetas. Para tanto, insiste no ensinamento e no projeto da comunidade, expressos pelos seguintes termos, que retratam a realidade comunitária, no resumo conclusivo da carta: o Verdadeiro, Jesus Cristo, os ídolos, os filhos de Deus e a vida eterna.
a) O Verdadeiro. Deus é o único verdadeiro, conhecido pelo que ele é: vida e amor. Desde o princípio, Deus é fonte da vida (cf. 1Jo 1,1). Ele, que é amor (cf. 1Jo 4,8), cria todo o universo para que todas as coisas tenham vida real, sólida e durável (cf. Gn 1,1-2,4a; Sb 1,13-14). Por isso, só no amor todos os seres vivos permanecem em comunhão com Ele: “Deus é amor: quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus permanece nele” (1Jo 4,16). O amor de Deus e o amor ao próximo, assim, estão interligados: o amor de Deus se concretiza no amor ao próximo, para que todas as pessoas tenham a vida em plenitude (cf. Jo 10,10).
b) Jesus Cristo. “Nisto se tornou visível o amor de Deus entre nós: Deus enviou seu Filho único ao mundo, para podermos viver por meio dele. É nisto que está o amor: não é que nós tenhamos amado a Deus, mas foi ele que nos amou e enviou seu Filho para expiação de nossos pecados” (1Jo 4,9-10). O amor de Deus se revela e se concretiza na vida de Jesus feito carne (cf. 1Jo 4,2), no qual a manifestação do Deus amor se torna histórica, palpável e testemunhada (cf. 1Jo 1,1-4). Em sua vida, Jesus é verdadeiro ser humano que sofre e morre na cruz, por amor ao próximo, até o fim. A salvação de Deus, assim, realiza-se na carne e no sangue do Jesus da história, o Filho de Deus, o amor encarnado: “Se vocês não comem a carne do Filho do homem e não bebem o seu sangue, não têm a vida em vocês” (Jo 6,53).
c) Os filhos de Deus. “É assim que se manifesta quem são os filhos de Deus e quem são os filhos do diabo: todo aquele que não pratica a justiça, quem não ama seu irmão, não é de Deus” (1Jo 3,10). Os cristãos são chamados de “filhos de Deus”, pois praticam a obra do Deus do amor e da justiça, seguindo os passos de Jesus Cristo, que nos revela Deus como amor e testemunha que o amor é o caminho, a verdade e a vida. A obra do amor e da justiça dos cristãos se manifesta sobretudo na vida comunitária. Na primeira carta de João, não são mencionados termos como hierarquia, organização, autoridade, relação de senhor e de súdito, porém observam-se alusões à comunhão com Deus e à unidade da comunidade: “Deus é luz, e nele não há trevas. Se dizemos que estamos em comunhão com Deus, e no entanto andamos nas trevas, somos mentirosos e não praticamos a verdade. Mas, se caminhamos na luz, como Deus está na luz, então estamos em comunhão uns com os outros” (1Jo 1,5-7a).
d) Os ídolos. “Filhinhos, fiquem longe dos ídolos!” (1Jo 5,21). Para o livro do Apocalipse, escrito na mesma época e região de 1Jo, o termo “ídolo” (eídolon, em grego) é, antes de tudo, o mundo do Império Romano, com seus deuses e seduções: “Não deixaram de adorar os demônios, os ídolos de ouro, de prata, de bronze, de pedra e de madeira, não podem ver, nem ouvir, nem andar. E não se arrependeram de seus homicídios, feitiçarias, prostituições e roubos” (Ap 9,20b-21). Na primeira carta de João, há alertas para resistir ao mundo: “Não amem o mundo nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele” (1Jo 2,15); “E não fiquem espantados, irmãos, se o mundo odeia vocês” (1Jo 3,13); “Porque todo aquele que nasceu de Deus vence o mundo. E esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé” (1Jo 5,4). A fé ativa no Deus que é amor e age por amor, no Deus da vida e no amor de Jesus Cristo leva os cristãos a viver na comunhão com o próximo, assegurando a construção do Reino da vida, oposto ao mundo do Império Romano, o mundo do Maligno (cf. 1Jo 2,14).
e) A vida eterna. “E o testemunho é este: Deus nos deu a vida eterna, e esta vida está em seu Filho. Quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho de Deus não tem a vida. Escrevo essas coisas para vocês saberem que têm a vida eterna, vocês que acreditam no nome do Filho de Deus” (1Jo 5,11-13). A expressão “a vida eterna” aparece cinco vezes nesta carta (15 vezes no Evangelho de João) e significa a vida de Jesus Cristo, sobretudo a vida eterna do Ressuscitado, que continua presente no meio dos cristãos. O termo “eterno” significa a continuidade da ação de Jesus Cristo ressuscitado, que move e anima os cristãos a viver na fraternidade e na plenitude: “Eu sou a ressurreição. Quem acredita em mim, ainda que morra, viverá. E todo aquele que vive e acredita em mim não morrerá para sempre. Você acredita nisso?” (Jo 11,25-26). Ou seja: “E já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim. E a vida que vivo agora na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20), diz Paulo.
O Verdadeiro, Jesus Cristo, os ídolos, os filhos de Deus e a vida eterna são termos que traçam o retrato da comunidade que acredita em Jesus feito carne como o Filho do Verdadeiro. Comunidade que pratica o mandamento do amor ao próximo não somente no dia a dia, mas também para além do assistencialismo, nas opções políticas mais amplas, na luta por um mundo sem injustiça e violência. Sem ter medo de perder a vida na perseguição do Império Romano, a comunidade da primeira carta de João pratica o evangelho do Jesus da história, amando o próximo e partilhando os bens deste mundo, e assim se torna, historicamente, uma luz da vida eterna do Sagrado no meio dos pobres sofredores.
Uma palavra final
A história se repete. O mundo do Império Romano dos tempos atuais continua a provocar muitos males, cometendo diversos atentados contra a vida humana, a natureza e a Terra:
- a pobreza cresce e atinge 55 milhões de pessoas no Brasil;
- conforme estimativas da ONU e da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), uma mulher a cada 15 segundos, um idoso a cada 10 minutos e 18 mil crianças por dia são vítimas de algum tipo de violência no país;
- até o mês de fevereiro, foram registrados 126 casos de feminicídio neste ano, que resultaram em 70 mortes, e esse número aumenta a cada dia. O Brasil responde pela quinta maior taxa de feminicídio no mundo;
- a morte absurda de dez meninos num centro de treinamento de futebol;
- tragédia em Brumadinho: número de mortos e desaparecidos em torno de 330 pessoas.
Após três anos do rompimento da barragem de Mariana, a história se repete em Brumadinho. A causa é a mesma: descaso com a segurança em benefício do lucro. Num desrespeito total com a vida humana, triunfa a lógica do lucro! O mundo, marcado pela busca ilimitada de bens, poder, prazer e honra, explora as pessoas, mata por qualquer motivo e não respeita o direito humano de viver em paz e fraternidade.
É preciso fomentar o amor, o respeito e o perdão na esfera social com a fé no Deus amor. É urgente recuperar a humanidade de todos os seres humanos para defender a vida, praticando a solidariedade e o amor, sobretudo com aquelas pessoas injustiçadas, exploradas e excluídas dos direitos de uma existência com dignidade: “Todo aquele que não pratica a justiça, quem não ama seu irmão, não é de Deus” (1Jo 3,10).
Centro Bíblico Verbo