Ser rico diante de Deus
I. Introdução geral
Este dia em que se recorda o falecimento de São João Maria Batista Vianney, de Ars, França – o Santo Cura de Ars (1786-1859), modelo de simplicidade e fé –, é também o primeiro domingo do mês dedicado às vocações na Igreja, entre as quais a presbiteral. Rezemos pelos presbíteros e peçamos a Deus que desperte vocações para os diversos ministérios existentes em nossas comunidades.
As leituras deste domingo trazem como tema a vivência ética do cristão. Assim, podemos iniciar a celebração nos perguntando: O que dá sentido à nossa vida? O que significa ser rico diante de Deus?
II. Comentários dos textos bíblicos
1. I leitura: Ecl 1,2; 2,21-23
O livro do Eclesiastes ou Coélet (Qohélet) foi provavelmente escrito na segunda metade do século III a.C., no período da dominação grega. O autor parece ser um conhecedor da realidade, alguém crítico e realista. O tema desse livro é explicitado de forma sintética e solene no v. 2: “Ilusão das ilusões, tudo é ilusão”. A palavra traduzida por “ilusão” tem também, em hebraico, o significado de “fumaça”, “coisa vã”, “vazio”, “sem consistência”, “fugacidade”, “absurdo”. Por isso encontramos em algumas traduções a palavra “vaidade”. A intenção do autor é ressaltar a condição efêmera, transitória, da vida humana. Ecl 2,21-23, trecho escolhido para a liturgia, está inserido no conjunto das reflexões sobre o esforço humano e seus resultados, especialmente sobre a acumulação de riqueza e o juízo negativo de tal procedimento. Após observar as diferentes realidades, o autor tenta resumir sua reflexão em Ecl 2,22-23, ou seja, chega à conclusão de que não vale a pena trabalhar desesperadamente, gastando a energia em afadigar-se e preocupar-se, se depois não se pode usufruir do fruto do próprio trabalho – quem fará isso será outro, que em nada colaborou. Este herdeiro, por não ter realizado nenhum esforço, esbanja tudo com a maior facilidade. Desse modo, Qohélet conclui que nada tem valor nem sentido e é vão se preocupar em trabalhar investindo numa busca desenfreada de acumular dinheiro ou riquezas. Quando chega o final dos dias, sem ter desfrutado, resta à pessoa somente a frustração de não ter gasto seu tempo em coisas realmente importantes, a saber: em usufruir do trabalho como um dom e um meio de subsistência, e não para acumular riquezas; em saborear a alegria da partilha, do encontro, do estar juntos para celebrar momentos significativos, para compartilhar a vida.
2. Evangelho: Lc 12,13-21
A parábola de Jesus presente neste texto de Lc 12,13-21 tem como ponto de partida o Reino de Deus e nos oferece pistas para responder à pergunta: como seria a vida humana se os valores do evangelho prevalecessem? Nesse sentido, percebemos que a novidade do Reino, normalmente, entra em contraste com as atitudes e a mentalidade humana. O evangelho começa com a súplica de uma pessoa, não identificada, para que Jesus intervenha numa questão de herança entre irmãos. Jesus se recusa a resolver essa questão, mas exorta a pessoa e a multidão a refletir sobre a raiz do problema, ou seja, o acúmulo de riquezas. Alguém movido pela ganância parte do pressuposto de que a abundância de bens e de riqueza lhe dará segurança, comodidade e irá manter a sua vida. No entanto, um projeto de vida fundamentado nessa concepção não tem solidez. Para ilustrar essa exortação, Jesus conta a parábola do homem rico, um proprietário de terras afortunado por ter realizado excelente colheita. Este, porém, em vez de considerar essa fartura como um dom a ser compartilhado, pensa somente em acumular. A mentalidade do proprietário tem como foco o seu mundo; ele se mostra completamente insensível às necessidades do outro e deposita a própria segurança em algo sem consistência. Quando pensa em usufruir egoisticamente sua vida, fazendo planos de armazenar riqueza, ironicamente morre naquela mesma noite. A pergunta que permanece é: quem ficará com o que ele acumulou? Essa conclusão aponta para a transitoriedade e a precariedade da vida. É uma parábola sapiencial que mostra que a verdadeira vida não se mede pela quantidade de bens ou de dinheiro em posse de determinada pessoa. A segurança da vida não está na riqueza acumulada. Portanto, a parábola não condena a riqueza nem o desejo do homem rico de viver de forma cômoda, mas desaprova sua insensatez de restringir a vida ao acúmulo de riqueza, avaliando sua existência à luz dos bens adquiridos, e não à luz de seu relacionamento com Deus e com o próximo. A riqueza também tirou do homem rico a consciência de sua real condição de pessoa (cf. Sl 39,6-7). Ele esqueceu que todo o seu viver é marcado pela gratuidade de Deus e que os bens recebidos também são dons a serem compartilhados.
3. III leitura: Cl 3,1-5.9-11
O trecho de hoje da carta aos Colossenses (provavelmente escrita por um discípulo de Paulo) dá continuidade ao que foi dito na celebração do domingo anterior, que apresentava o sentido do batismo. Desta vez, o tema central é a vivência ética do cristão.
No batismo, participamos do mistério pascal de Cristo. Essa adesão a Cristo e essa participação em sua morte e ressurreição nos desafiam a viver os valores do evangelho, a viver conforme a fé professada e os dons recebidos. Desse modo, o batizado é orientado para “as coisas do alto”, ou seja, para tudo aquilo que Jesus anunciou por meio de suas palavras e gestos: a partilha, a solidariedade, o respeito, o despojar-se do pecado e o revestir-se dele, Cristo. Sublinha-se que se orientar pelas coisas do alto não significa desprezar o mundo, mas vê-lo como dom de Deus para a humanidade. De fato, aderir a Jesus supõe mudança de critérios. Significa ser realmente uma criatura nova, membro de uma comunidade que vive, no mundo, o Reino inaugurado por Jesus crucificado e ressuscitado. Assim, o Reino e Cristo tornam-se os critérios que pautarão o agir. Na lista dos vícios elencados no v. 5, além daqueles relacionados à imoralidade sexual, temos a cobiça ou a avareza – o desejo de acumular, chamado de idolatria pelo autor, pois pode ocupar o posto de Deus no coração das pessoas. Outro vício é a mentira, que entra em contraste com o evangelho, dado que este se caracteriza pela verdade. O autor retoma o tema do batismo para reforçar a seriedade desse sacramento, que não implica somente fazer morrer a mentalidade marcada pelo pecado, mas também revestir-se do novo, provocando real transformação no próprio ser. É verdadeiramente uma nova criação.
Por fim, o autor afirma que as divisões causadas pelas diferenças étnicas, culturais, religiosas e sociais não podem existir na comunidade cristã, pois todos nós somos um só em Cristo. Na comunidade, devem prevalecer a fraternidade, as relações humanas e justas. Enfim, todas as comunidades cristãs são chamadas a testemunhar a concretização do Reino de Deus na história.
III. Pistas para reflexão
Esta liturgia, a exemplo de outras, aponta-nos qual é o justo lugar dos bens, a necessidade de sermos livres diante deles e qual deve ser realmente o centro de nosso coração e de nossa vida. Denuncia toda cultura que propaga que a felicidade está em possuir bens, em ter no centro das preocupações e atenções o acúmulo de riquezas. Também algumas correntes religiosas propagam a teologia da prosperidade, que se revela completamente contrária ao evangelho anunciado por Jesus. Como vimos, o problema não está em desejar usufruir da vida, em ter determinados bens, nem em que o/a trabalhador/a receba seu salário e viva com dignidade, mas sim em depositar a segurança nas riquezas. Está em fazer desses bens o centro de nossa existência, tornando-nos insensíveis às necessidades de nosso irmão. De fato, ter a riqueza como o fundamento do nosso viver é sermos idólatras. Diante das leituras desta celebração, podemos refletir: onde estamos depositando nossa segurança, nossa esperança? Onde está o sentido de nossa vida? Somos ricos diante de Deus? Quais são as implicações éticas da nossa adesão a Cristo, do nosso ser batizados? Como testemunhamos que somos revestidos de Cristo na própria vida, na sociedade, no trabalho? Como testemunhar a vivência cristã diante das atitudes discriminatórias e das divisões sociais, étnicas, raciais, culturais e religiosas presentes na sociedade? Essas divisões ainda estão presentes em nossa realidade eclesial, paroquial ou comunitária?
Zuleica Aparecida Silvano
Ir. Zuleica Aparecida Silvano, religiosa paulina, licenciada em Filosofia pela UFRGS, mestra em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutora em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde atualmente leciona. É assessora no Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas) em Belo Horizonte. E-mail: [email protected]