A liturgia deste domingo nos convida a viver segundo as virtudes teologais, a celebrar na alegria a salvação que nos foi garantida pelo Filho, Verbo encarnado, humano como nós. Ele nos ensina a viver segundo a vontade do Pai para que tenhamos vida, e vida em abundância.
II. Comentários dos textos bíblicos- I leitura: Jr 31,7-9
O exílio babilônico foi uma das experiências mais desafiadoras e profundas do povo de Israel. O povo, debilitado e abatido, teve de reformular e reafirmar sua fé no Deus salvador. O profeta Jeremias viveu essa experiência em seu momento inicial, e a postura por ele assumida lhe custou perseguições e punições. Sua mensagem, porém, é permeada pela esperança de novo tempo. A primeira leitura deste dia é parte do chamado Livro da Consolação (cf. Jr 30-33), que consistia em um anúncio de salvação e um convite à alegria pela reunificação dos reinos e pelo retorno dos exilados.
O pano de fundo é a nova aliança entre Deus e seu povo. O exílio é semelhante ao deserto dos tempos de outrora (cf. Jr 31,2), lugar onde Israel encontra seu Deus e é convidado a tomar alegremente o caminho rumo à terra (v. 7), como em novo êxodo (Sl 126). A imagem apresentada nestes versículos evoca um rebanho guiado pelo pastor. Ele busca, reúne e conduz seu numeroso rebanho, no qual há cegos e aleijados, parturientes e mulheres grávidas (v. 8), o que indica que a salvação de Deus alcança a todos, os mais frágeis e débeis e os fecundos.
O realizador dessa salvação é o Senhor mesmo. Dele é a iniciativa, como um pai que cria e educa seu filho (cf. Os 11; Is 1,2.4). A menção a Efraim diz respeito a Israel, e a alusão à primogenitura recorda os numerosos privilégios e a consideração especial de que gozava o primeiro filho (cf. Ex 13,1-16). Como um pai, o Senhor consolará seu povo (v. 9).
- Evangelho: Mc 10,46-52
O evangelho nos traz o acontecimento que marcou a última etapa do caminho rumo a Jerusalém – caminho compreendido não só no sentido geográfico do termo. A cura do cego de Jericó assinala o final da seção de ensinamento aos discípulos, na qual Jesus lhes anuncia o próprio destino, enquanto Servo sofredor, bem como as condições e exigências do seguimento, como pudemos acompanhar na liturgia dos domingos anteriores. A cura do cego arremata o caminho do discipulado.
Jesus, seus discípulos e grande multidão saíam de Jericó em direção a Jerusalém. Um cego que estava à beira do caminho, pedindo esmola, põe-se a gritar, chamando por Jesus, aclamando-o como Filho de Davi e pedindo-lhe que tenha compaixão dele (vv. 46-47). Aqui podemos ver o contraste inicial: Jesus e seus discípulos estavam a caminho, e o cego, à margem do caminho; de Jesus conhecemos nome e título, e do cego, apenas o nome de seu pai; Jesus era acompanhado por seus discípulos e grande multidão, e ao cego foi dada a ordem de calar-se: a multidão apenas quer contê-lo. Filho de Davi é o título que os judeus davam ao Messias, de quem esperavam a restauração do reino de Israel. Desse modo, o grito do cego consiste numa profissão de fé, embora tal título não represente bem a missão de Jesus. Ele mesmo o questiona em Mc 9,35-37.
A narrativa segue: Jesus, ouvindo o grito do cego, manda que o chamem. Desta vez, a multidão o encoraja. O outro levantou-se de imediato e, deixando para trás tudo o que possuía, foi até Jesus. Vale lembrar que o cego era um mendigo e seu manto era sua única garantia de conforto e de segurança da própria vida. Jesus dirige ao filho de Timeu a mesma pergunta feita, há pouco, aos filhos de Zebedeu: “Que queres que eu te faça?” O cego decididamente responde: “Mestre, que eu veja!” (v. 51). O “ver”, no Evangelho de Marcos, segue a dinâmica do “ouvir” no Antigo Testamento: mais que um ato físico, comporta um peso teológico imenso. Ver implica “comprometer-se com”. Outra vez, o cego utiliza um título para referir-se a Jesus: “Mestre”. E como Mestre Jesus não só o curou, mas o enviou. O cego passa a segui-lo resolutamente pelo caminho (v. 52).
A cura do cego de Jericó é o último ato portentoso de Jesus, apresentado pelo evangelista, antes de sua chegada a Jerusalém. É significativo o fato de se tratar da cura da cegueira, já que seus discípulos e os leitores de Marcos necessitavam, e ainda hoje necessitamos, ver claramente quem é Jesus, seu caminho de cruz e de serviço, caminho que cada cristão é chamado a trilhar. O filho de Timeu, assim, é modelo para os discípulos de Jesus de todos os tempos, chamados a testemunhar sua fé e a seguir decididamente seu Mestre e Senhor pelo caminho.
- II leitura: Hb 5,1-6
O texto de Hebreus vem nos recordar que a figura de mediação entre Deus e o ser humano não surge de uma decisão e iniciativa humanas, mas, ao contrário, divinas. Com isso, diz-nos que, desde sempre e por todo o sempre, Deus nos precede, porque é amor e porque ama sua criatura e jamais a abandona. A figura do sumo sacerdote é crucial para a compreensão de que Deus e o ser humano são radicalmente diferentes e de que este é incapaz de chegar àquele por si só.
Em Cristo, o sumo sacerdote perfeito – porque Filho divino e filho do homem, portanto, humano –, podemos nos aproximar de Deus sem medo. Nossos pecados já não serão nossa sentença de morte quando nos encontrarmos diante de Deus, porque nosso sumo sacerdote é aquele que se oferece como dom por todos nós. Desse modo, reconcilia-nos com o Pai, e isso é motivo de alegria.
III. Pistas para reflexão
Cada uma das leituras aponta para uma das virtudes teologais: fé, esperança e caridade. Embora o texto de Jeremias convide à esperança, é a virtude da fé a que mais se destaca: com efeito, o povo exilado havia perdido tudo que representava a presença de seu Deus e Senhor e, diante da negação total, é pela fé que esse povo ouve e acolhe com alegria a palavra de restauração pronunciada pelo profeta.
O evangelho, como a primeira leitura, traz indícios de fé e esperança, porém é a segunda que sobressai, porque ao cego, sentado à beira do caminho, nada mais restava senão a esperança de uma intervenção divina inesperada. E o inesperado, mas desejado, acontece. O Senhor o chama e o socorre em sua necessidade, naquilo que o fazia viver à margem e sem esperança.
A segunda leitura ressalta a caridade, expressa na solidariedade do Filho de Deus, sumo sacerdote misericordioso para com seus irmãos humanos, frágeis e pecadores, necessitados de um mediador, defensor de suas causas.
Ainda que a fé apareça referida a todo o povo de Deus, a esperança a um membro “excluído” desse povo e a caridade ao próprio Filho de Deus, Senhor do povo, elas servem de orientação e norteiam a vida do cristão. Assim, como membros do povo de Deus e filhos no Filho, somos instados a viver pela fé, na esperança e na prática da caridade.
Rita Maria Gomes, nj
Ir. Rita Maria Gomes, nj, é natural do Ceará, onde fez seus estudos em Filosofia no Instituto Teológico e Pastoral do Ceará (Itep), atual Faculdade Católica de Fortaleza. Possui graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde leciona Sagrada Escritura. É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, que tem como carisma o estudo e o ensino da Sagrada Escritura. E-mail: [email protected]