No domingo passado, ouvimos o início do sermão do Pão da Vida, onde Jesus dá a chave de interpretação do sinal da multiplicação dos pães. O pão que desce do céu e dá vida ao mundo é Jesus. Importa saber, porém, que ele dá a vida não mecanicamente, mas porque diz por palavras – e mostra por gestos – quem Deus é. Em Cristo, Deus mesmo nos ensina, e ele se dá a conhecer a todos os que se deixam atrair a seu Filho.
II. Comentário dos textos bíblicos- Evangelho: Jo 6,41-51
O verdadeiro sentido da história de Elias no deserto, segundo a sugestão da liturgia de hoje (cf. primeira leitura), não se deve procurar naquilo que aconteceu antes da fuga do profeta (as experiências do deserto), mas naquilo que veio depois, cumprindo o plano de Deus. A comida de Elias prefigura a comida que tira todo o cansaço. Se o profeta, mortalmente cansado, recebeu do pão de Deus força para caminhar quarenta dias, o homem afadigado pelos impasses da vida recebe, do “pão descido do céu”, vigor para a vida eterna.
Mas, então, como pode Jesus dizer que ele “desceu do céu”? Os judeus se mostram céticos: “resmungam” (como fizeram no deserto) a respeito da origem por demais conhecida de Jesus (embora em 9,29 se recusem a crer porque não sabem de onde é...). Se, no deserto, Deus respondeu ao resmungo dos hebreus proporcionando-lhes um dom perecível, o maná, agora ele responde com o dom escatológico: “Todos serão ensinados por Deus”. Esta frase se refere ao cumprimento dos textos proféticos. Que Deus e sua vontade sejam conhecidos diretamente, sem o intermédio de mestres (cf. Is 54,13), é algo que faz parte da “nova aliança”, plenitude da antiga (cf. Jr 31,33-34). É isso que se cumpre em Jesus Cristo. O cristão o sabe: ninguém jamais viu Deus (cf. 6,46; 1,18), mas quem vê Jesus vê o Pai (cf. 1,18; 12,45; 14,9). Quem procura o ensinamento escatológico de Deus, na plenitude da aliança, só precisa ir a Jesus (cf. 6,45b).
Esse ensinamento, porém, contém um paradoxo: ao mesmo tempo que o ser humano é responsável por ir a Jesus, ele deve ser atraído pelo Pai. Temos exemplos de tal relação dialogal em nosso dia a dia: para realmente participar de uma aprendizagem, o aluno deve ser admitido pelo mestre, mas também querer aprender; para gozar plenamente a alegria de uma festa, a gente deve ser convidado, mas também ir com gosto. A fé não é algo unilateral. É um diálogo entre Deus, que nos atrai a Jesus Cristo, e nós, que nos dispomos a escutar sua palavra.
Quando se realiza esse diálogo, temos (já: no tempo presente; cf. Jo 6,47b; 5,24) a vida eterna. Já está ao nosso alcance nos saciarmos com a comida que proporciona vigor inesgotável. A “vida eterna” não é um prolongamento infindável de nossa vida biológica. É a dimensão inesgotável e decisiva de nossa existência, que é mais do que uma passagem para o além. A vida eterna, para João, não se inicia apenas no além, mas aqui e agora. Evitando o termo “Reino de Deus”, facilmente mal compreendido, João fala da “vida eterna” para indicar a realidade da vontade divina quando assumida e encarnada na existência humana. Quem encarna a vontade de Deus na existência humana é, por excelência, Jesus Cristo, seu Filho unigênito. Sua doação até a morte, sua “carne” (= existência humana) dada até a morte ensina e mostra, mas também realiza, para quem a ele aderir, esta “vida” para o mundo.
Portanto, sermos ensinados por Deus significa que, mediante a adesão à existência que Jesus viveu até a morte, abrimos espaço para a dimensão divina e definitiva de nossa vida, dimensão que lhe confere um sentido inesgotável e irrevogável, o sentido de Deus mesmo.
Há, nessa perícope, uma frase muitas vezes mal entendida: “Todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e aprendido, esse vem a mim” (Jo 6,45). Há quem entenda isso num sentido estreito, como se Jesus excluísse da salvação quem não tem a fé cristã (eventualmente restringida a uma das confissões cristãs). Tal interpretação contradiz uma frase central do Quarto Evangelho. Falando de sua morte na cruz, Jesus declara: “Eu, quando for levantado (ou enaltecido) da terra, atrairei todos a mim” (12,32). Deus instrui a muitos, em todas as religiões, como ele instruiu o povo de Deus no Antigo Testamento. E quem, em qualquer religião, ou mesmo num ambiente em que o termo “religião” não significa nada, acata o que Deus lhe ensina, no fundo do coração, numa consciência pura e generosa, sintonizado, talvez sem saber, com o que Cristo fala e faz, esse está sendo, de fato, atraído a Cristo por Deus.
- I leitura: 1Rs 19,4-8
A primeira leitura pode servir de aperitivo para o evangelho de hoje: Deus sustenta Elias com alimento e bebida para instruí-lo a continuar seu caminho. Elias está fugindo para o deserto a fim de escapar da perseguição de Acaz e Jezabel. Nessa travessia, revive a história de seu povo: fome, sede, desânimo, a ponto de desejar a morte (como os hebreus que resmungavam contra Deus), mas também a experiência da alimentação oferecida por Deus (como o maná no Êxodo), para que possa alcançar “a montanha de Deus”, o Horeb, onde ele aparecera a Moisés e tinha dado seu “ensinamento” (a Torá) ao povo. Elias volta às fontes, revivendo as origens da fé de seu povo.
- II leitura: Ef 4,30-5,2
Continua a leitura da carta aos Efésios, como nos domingos anteriores. O texto de hoje nos ensina que somos filhas e filhos de Deus, animados por seu Espírito. O selo de garantia de nossa salvação é o Espírito Santo, o Espírito de amor, que provém do íntimo de Deus. Nós podemos asfixiá-lo por mesquinharias de todo tipo (cf. 4,31), como também por estruturas que não lhe deixam espaço. Cabe a nós realizar o contrário: liberalidade, bondade, perdão, segundo o modelo de Cristo, em cuja doação se manifesta o amor de Deus. Devemos abrir em nossa vida e sociedade um espaço onde possa soprar o Espírito de amor de Deus.
III. Pistas para reflexão
Continuamos nossa meditação sobre o capítulo 6 de João, que, durante alguns domingos, constitui o fio das leituras da liturgia. No domingo passado, Jesus se apresentou como o pão descido do céu, com palavras que lembravam as declarações de Isaías sobre a palavra e o ensinamento de Deus. Hoje aprofundamos o sentido disso. Jesus é alimento da parte de Deus por ser a Palavra de Deus (cf. Jo 1,1), a qual nos faz viver a vida que está nas mãos de Deus – a vida que chamamos de “eterna”. Essa não é prolongamento indefinido de nossa vida terrestre (não valeria a pena!), mas é “de outra categoria”: da categoria de Deus mesmo. Nesse sentido, vida eterna e vida divina são sinônimos.
Jesus alimenta em nós essa vida divina com tudo aquilo que ele diz, faz e é. Sua vida é o grande ensinamento que nos encaminha na direção do Pai. Na antiga aliança, Moisés e seus sucessores ensinavam o povo, mas, segundo o sentir do evangelista, de maneira imperfeita. Agora se realiza a nova aliança, em que todos se tornam discípulos de Deus (cf. Jo 6,45; Jr 31,33; Is 54,13). Quem escuta Jesus, que é a Palavra de Deus em pessoa, já não precisa de intermediários (cf. Jo 1,17). Ninguém jamais viu Deus, a não ser aquele que desceu de junto dele, o Filho que no-lo dá a conhecer (cf. 6,46; 1,18). Jesus conhece Deus por dentro. Escutando Jesus, aprendemos a conhecer Deus, sem intermediários.
Escutar Jesus alimenta-nos a vida que é comunhão com Deus, válida para sempre. João diz que quem crê já tem a vida eterna (5,24). Como é, pois, essa vida eterna, divina? Será talvez a realização profunda e incomparável que sentimos quando nos dedicamos aos nossos irmãos até não poder mais? Quando arriscamos a vida na luta pela justiça e pelo amor fraterno? Quando doamos o melhor de nós, material e espiritualmente? É a felicidade de quem dá sua vida totalmente. Com efeito, é isso que Jesus nos ensina da parte de Deus. E, porque fez isso, ele é o ensinamento de Deus em pessoa.
Para Israel, o ensinamento de Deus está na Escritura e na tradição dos mestres: é a Torá, termo que significa instrução, ensino, orientação (a tradução “Lei”, que vem da Bíblia grega, é inadequada). Para nós, a “Torá viva” é Jesus.
O tipo de vida que Jesus nos mostra e ensina é plenamente confirmado por Deus. Prova disso é que Deus ressuscitou seu Filho dentre os mortos, acolhendo-o em sua glória. É a vida que Deus deseja e nos ensina em Jesus. O pão que alimenta essa vida é Jesus. Ele a alimenta pela palavra que falou, pela vida que viveu, pela morte de que morreu: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu [...]. O pão que eu darei é minha carne dada para a vida do mundo” (Jo 6,51).
Johan Konings
Pe. Johan Konings, sj, nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina (Bélgica). Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”. E-mail: [email protected].