No domingo passado, a liturgia apresentou Jesus, movido por compaixão, ensinando muitas coisas ao povo desorientado. Ora, um bom ensino não apenas oferece teoria, mas inclui também exemplos práticos. É o que nos mostra a liturgia de hoje: Jesus sacia a multidão, mas não cede ao imediatismo entusiasta demonstrado posteriormente pelo povo. E nos próximos domingos será apresentado o sentido profundo da “multiplicação do pão” que a liturgia deste dia nos recorda.
Apesar de estarmos no Ano B, o evangelho de hoje não é tomado de Marcos, mas de João, e isso se repete nos próximos domingos. O Evangelho de Marcos (Tempo Comum do Ano B) é mais breve que o de Mateus (Ano A) e o de Lucas (Ano C); por isso, alguns trechos da primeira parte de João (os “sinais” de Jesus) foram escolhidos para completar o ciclo de Marcos. (A segunda parte de João, relacionada com o mistério pascal, é lida na Quaresma e no Tempo Pascal dos três anos litúrgicos.) Assim, o capítulo 6 de João aparece no ano “marcano” (B) como uma meditação sobre as multiplicações dos pães, narradas em Mc 6,35-44 (substituída, hoje, por Jo 6,1-15) e Mc 8,1-9 (omitida).
II. Comentário dos textos bíblicos- Evangelho: Jo 6,1-15
A versão joanina da multiplicação do pão é semelhante à de Marcos, mas coloca os acentos de modo diferente e, sobretudo, revela uma tensão muito significativa entre o gesto messiânico da multiplicação do pão (cf. Jo 6,1-13) e a retirada de Jesus, logo depois (cf. 6,14-15).
Vale a pena verificar algumas diferenças entre as versões de João e Marcos. Em primeiro lugar, João situa o fato na proximidade da Páscoa, festa em que os judeus lembram o êxodo e o sustento que receberam de Deus no deserto. Ele diz “a Páscoa dos judeus”, dando a entender que o sentido cristão pode ser outro. Quanto ao milagre mesmo, em Marcos ele é enquadrado no contexto da “aprendizagem” dos discípulos (a partir de Mc 6,7), que têm no episódio participação bastante ativa, o que não é o caso em João. Em Mc 6,37 os discípulos avisam Jesus de que seu ensino se estende e o povo deve procurar comida. Em João, nem se fala em ensino, mas tem-se a impressão de que Jesus pensou somente em oferecer pão à multidão (cf. Jo 6,5-6). João coloca a iniciativa totalmente nas mãos de Jesus. Assim, desaparecem em João os traços comunitários do relato marcano, que pode ser lido como uma partilha, da parte dos discípulos, a serviço da comunidade (cf. Mc 6,37-38). Em João não são os discípulos que, de sua provisão, distribuem ao povo. Jesus mesmo distribui. Além disso, João acrescenta alguns detalhes que evocam a atuação do profeta Eliseu em 2Rs 4,42-44: os pães “de cevada” (2Rs 4,42) e o “moço” (cf. Giézi em 2Rs 4,39.43) – o que justifica a escolha dessa perícope como primeira leitura de hoje.
João dá ao relato de Marcos um aprofundamento cristológico. Em Marcos, o mistério do Cristo é velado aos olhos dos discípulos. Em João, os discípulos são testemunhas do mistério que transparece no “sinal” de Jesus. Esse mistério se faz pressentir pela pergunta inicial: “De onde compraremos pão?”, em Jo 6,5. A expressão “de onde” já sugere ao leitor iniciado no mistério de Jesus a resposta: “de Deus” – e Jesus esclarecerá isso a seguir, no “discurso do Pão da Vida” (cf. Jo 6,24-71). O Jesus de Marcos deixa velada a natureza de sua missão, porque as categorias messiânicas do povo são inadequadas para compreendê-la; o Jesus de João revela ao cristão instruído a glória de Deus. Mas o resultado é o mesmo: nas duas versões, quem se apega às categorias messiânicas antigas fica por fora.
No fim do episódio, João descreve com insistência maior a quantia de restos que sobraram, sublinhando, mais uma vez, a revelação da obra de Deus em Jesus Cristo: nada (e ninguém) pode perder-se (cf. 6,12; 6,38).
Em Marcos não temos a reação equivocada do povo depois da refeição. Em Jo 6,14-15, o povo vê Jesus como “o profeta que deve vir ao mundo”, isto é, Moisés, o protoprofeta (cf. Dt 18,25) que saciou o povo. Mas Jesus se retira. Isso tem significado muito especial para João. O povo quer ver em Jesus o messias-profeta escatológico, que deve vir ao mundo, mas não percebe que sua missão divina supera a expectativa deles. O povo quer arrebatar Jesus para proclamá-lo rei segundo as categorias messiânicas tradicionais. Jesus, porém, não é rei nesse sentido (veja-se sua resposta a Pilatos: Jo 18,33-37). Não pode aceitar o messianismo do povo. Retira-se na solidão (cf. 6,14-15 e a recusa do messianismo judeu em Mc 8,27-33).
- I leitura: 2Rs 4,42-44
Contemple-se inicialmente a primeira leitura, que mostra alguns traços discretamente entretecidos no texto do evangelho. Narra um episódio da história de Eliseu, que, assim como Elias, renova os “grandes feitos” de Deus do tempo do êxodo – no caso, alimentar o povo.
Eliseu sacia cem pessoas com vinte pãezinhos de cevada, destinados à oferta de primícias. Quando o seu ajudante, o moço Giézi, questiona a possibilidade de alimentar o povo com tão pouca coisa, o profeta aponta para o poder e a generosidade do Senhor: “Comerão e sobrará”, frase que lembra a fartura do maná no deserto. O Evangelho de João traz um eco desse episódio, porque a plena abundância do tempo messiânico se realiza em Jesus Cristo.
- II leitura: Ef 4,1-6
Na segunda leitura, continua a carta aos Efésios, como nos domingos anteriores. Da essência da Igreja faz parte sua unidade, baseada em Deus e na sua obra em Cristo. Enquanto Ef 4,4-6 enumera as realidades divinas e indivisas que fundamentam a Igreja, Ef 4,1-3 ensina os meios para realizar essa unidade: a humildade, o mútuo suportar-se na caridade, a unidade do Espírito mediante o vínculo da paz. Portanto, não se trata de uma unidade de conveniência ou de rótulo, mas construída pela caridade: um Corpo, um Espírito, um Senhor, uma fé, um batismo, um Deus e Pai.
III. Pistas para reflexão
Em certos ambientes, é comum surgirem críticas à ação social da Igreja e, muito mais, às suas declarações sobre a política e a economia. Julga-se que a Igreja não deve tocar em assuntos “temporais”, mas ocupar-se com o “espiritual”. Mas, por acaso, a violência, a impunidade, a falta de saúde e de bom ensino, a fome de grande parte da população não dizem respeito ao Reino de Deus, que Jesus veio anunciar e inaugurar e a Igreja pretende atualizar?
No domingo passado, o Evangelho de Marcos descreveu a chegada de Jesus perante a multidão: compadeceu-se dela, porque era como ovelhas sem pastor. E começou a ensiná-la, com a consequência de que, no fim do dia, teria de alimentá-la. Esse gesto de alimentar materialmente o povo, a liturgia o descreve hoje nas palavras de João, preparando o aprofundamento no “sermão do Pão da Vida” (ausente de Marcos), lido nos próximos domingos.
Segundo João, Jesus não agiu surpreendido pelas circunstâncias, mas porque quis, expressamente, apresentar pão ao povo (cf. Jo 6,5-6), para depois mostrar qual é o verdadeiro “Pão”. Se, em Marcos, Jesus manda os discípulos distribuir o pão – um exemplo para a Igreja –, João diz que Jesus mesmo o distribui, para acentuar que o pão é o dom de Jesus. E, no fim, João menciona que o povo quer proclamar Jesus rei (messias), mas este se retira, sozinho, para a região montanhosa (cf. Jo 6,14-15).
Este último traço é muito significativo. O específico de Jesus não era distribuir cestas básicas, como se pretendesse ser prefeito. Sua atenção bem autêntica para resolver o problema material tem valor de “sinal”, mas não é exclusividade dele. É dever de todos. Para resolver os problemas materiais do povo, há meios à disposição, desde que na sociedade haja responsabilidade e justiça. Mas exatamente para isso é preciso algo mais fundamental: que as pessoas levem em consideração o Deus de amor e justiça que se revela em Jesus. O sermão do Pão da vida, que ouviremos nos próximos domingos, esclarecerá isso ao “leitor joanino”.
A preocupação social da Igreja deve pautar-se por essa linha. Para resolver os problemas econômicos e sociais, os meios estão aí. O Brasil é rico; mas é preciso que haja pessoas justas, sensíveis às necessidades do povo, para bem gerenciar essa riqueza. A missão específica da Igreja é, em primeiro lugar, colocar os responsáveis diante da vontade de Deus, como Jesus fez. E criar uma comunidade na qual o que Jesus ensinou seja posto em prática.
Para isso, não basta pregar ingenuamente a “boa vontade”, se as pessoas não forem conduzidas a uma prática eficaz. A boa vontade de usar bem os meios econômicos segundo a justiça social precisa de leis que funcionem, de mecanismos econômicos e de “estruturas” que os reproduzam, para amarrar a boa vontade a realizações concretas. Não é o papel da Igreja – senão subsidiariamente – inventar e implantar tais mecanismos, assim como Jesus não quis ser rei, mas a Igreja tem de mostrar o rosto de Deus, que é Pai de todos e deseja que nos tratemos mutuamente como irmãos. E para isso ela não pode deixar de apontar as responsabilidades concretas.
Ao fornecer pão à multidão, Jesus realiza um sinal que o autoriza como profeta de Deus, mas esse sinal não é uma façanha qualquer. O sinal é o dom que Deus faz em Jesus, o dom que Jesus é, o dom que dá vida ao mundo.
Johan Konings
Pe. Johan Konings, sj, nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina (Bélgica). Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”. E-mail: [email protected].