“Santo de casa não faz milagre”: essa é, aparentemente, a lição do evangelho do 14º Domingo do Tempo Comum – Ano B. Porém, não devemos ver isso como uma mensagem negativa, centrada no aparente fracasso de Jesus no meio dos seus. Pelo contrário, esse trecho do evangelho prepara o que vamos ouvir nos próximos domingos: o “santo” não fica em sua casa, mas dirige-se a todos aqueles que esperam a sua mensagem; e os de casa saberão que houve um profeta no meio deles, como diz a primeira leitura. A aparente impotência do “santo” é uma denúncia contra seus conterrâneos que não são tão santos assim. A presença do profeta no meio deles deve conscientizá-los a respeito da vontade de Deus.
II. Comentário dos textos bíblicos- Evangelho: Mc 6,1-6
O evangelho de hoje conta o episódio da pregação de Jesus em sua própria terra. Para ver o significado desse episódio no conjunto da atividade de Jesus, devemos voltar até o início do Evangelho de Marcos. Depois de ser batizado por João, Jesus passa a anunciar a Boa-nova do reinado de Deus na Galileia em geral e, especialmente, na região de Cafarnaum, à beira do mar da Galileia, onde ele chama os primeiros discípulos. Desde o início, a atividade de Jesus é marcada pela expansão, pelo rompimento de fronteiras e pela abertura a todos os que necessitam de libertação. Já no início de seu ministério, Jesus repete, aos que querem segurá-lo para si, que ele deve pregar também nas outras cidades, e o faz de fato (cf. Mc 1,37-39). Ninguém é dono daquele que traz a Boa-nova do reinado de Deus.
É sobre esse pano de fundo que devemos ver o texto do evangelho de hoje. Depois de ter percorrido a Galileia, Jesus chega à sua cidade paterna, onde vivem seus parentes (ou “irmãos”, como a Bíblia chama os membros do mesmo clã). Segundo Lc 4,16, essa cidade é Nazaré (Lucas coloca esse episódio no início do ministério de Jesus, mencionando que Jesus já operou curas nas outras cidades – cf. Lc 4,23).
A chegada de Jesus à sua cidade se dá depois que ele pregou o reinado de Deus, em forma de parábolas, ao povo de toda a Galileia (cf. Mc 4,1-34). Nessa oportunidade Jesus havia dado a entender que seus verdadeiros irmãos não são necessariamente os parentes, os do seu clã, mas aqueles que escutam sua palavra e cumprem a vontade do Pai, o reinado de Deus (cf. Mc 3,34-35). Depois fez gestos admiráveis, milagres vistosos, que atestavam a sua missão profética, em ambos os lados do mar da Galileia (cf. Mc 5). Até chegar à sua cidade paterna (cf. Mc 6,1).
A reação de seus parentes é reticente, por espanto ou por inveja. Jesus é chamado de “carpinteiro”, alguém que faz telhados ou casas (Mt 13,55 diz “filho do carpinteiro”). Como um carpinteiro pode fazer coisas desse tipo? Mesmo sendo mais do que um escravo ou operário braçal, o carpinteiro, não tendo propriedade, era um sem-terra, um andarilho, que ia de lugar em lugar. O ensinamento admirável e as curas impressionantes, contados nos capítulos anteriores, não eram coisa de carpinteiro! Para um bom entendedor, deviam significar que Deus estava com aquele homem como estava com os profetas Elias e Eliseu, que faziam milagres e sinais. Porém, os habitantes de sua cidadezinha não percebem a realidade por esse viés. Alegam que conhecem os “irmãos” e “irmãs”, ou seja, os membros da família ou clã de Jesus, gente que não tem nada de especial. Alguns desses “irmãos” se tornaram importantes na primeira Igreja, principalmente Tiago e Judas, a quem são atribuídos duas epístolas no Novo Testamento; mas, no momento da pregação de Jesus em Nazaré, eles não tinham nada de especial.
Então Jesus clama sua vocação profética, usando como argumento a afirmação de que o profeta só não é reconhecido em sua própria terra. Os sinais do profeta são os milagres, mas, onde não há desejo desses sinais nem abertura para eles, não adianta fazê-los. Por isso Jesus não pôde fazer ali muitos milagres. Deus não queria. O poder maravilhoso que Deus lhe havia dado não servia para esse público.
Na sequência do Evangelho de Marcos, Jesus aparecerá sempre mais como o profeta rejeitado que, contudo, é o salvador do povo e de todos os seres humanos. Assumindo-se como o servo de Deus, dará sua vida pela multidão (cf. 10,45).
- I leitura: Ez 2,2-5
A figura do profeta rejeitado é compreendida com maior clareza se olhamos a primeira leitura.
O Espírito de Deus vem sobre Ezequiel, que é chamado “filho do homem”, ou seja, simples filho da raça humana. Aqui, esse tratamento não tem o sentido particular que receberá a partir de Dn 7,13-14: o ser humano poderoso enviado de junto de Deus e, finalmente, identificado com o glorioso Juiz escatológico (cf. Mt 25,31; 26,64 etc.). Em Ezequiel, o termo “filho do homem” significa o homem como criatura humilde, em contraste com a grandeza de Deus. Ezequiel é um servo, encarregado por Deus da ingrata missão de explicar ao “resto de Israel” a sua situação. Esse “resto de Israel” é o povo desarticulado depois da parcial deportação em 597 a.C. Ezequiel sabe que, mesmo em sua situação de desterro, esse povo não vai gostar de seu recado, pois, desde o tempo de Moisés, costuma rejeitar os enviados de Deus (cf. Ex 2,14; 15,24; 16,2 etc.). Mas, pelo menos, eles saberão que no meio deles está um profeta, ou seja, que Deus não fica calado (cf. Ez 2,5).
Algo semelhante acontecerá a Jesus: mesmo se os seus concidadãos não acolherem sua mensagem, ficarão sabendo que ele passou no meio deles como profeta. E o fato de mais tarde alguns deles se terem tornado seus seguidores mostra o efeito dessa conscientização. Por outro lado, tudo isso nos ensina a ter paciência, pois o efeito da profecia e do testemunho não é imediato. Não devemos, porém, ficar sentados para esperar o efeito: Jesus se levantou e continuou sua missão (cf. Mc 6,6b).
- II leitura: 2Cor 12,7-10
A figura de Paulo, na segunda leitura, reforça nossa disposição de assumir, apesar de nossa fragilidade, a missão que Deus nos confia, pois, com a missão, ele dá a força. A Jesus, em sua terra paterna, Deus não deu o poder de milagres, que para nada serviria, mas a Paulo, apesar de sua miséria humana, ele dá sua graça, para que tenha força suficiente. Não sabemos quais foram os problemas de Paulo nem o “espinho na carne” – coisa do demônio – que o incomodava. Isso não tem importância. O que importa é a conclusão. Paulo se gloria, felicita-se com sua própria fragilidade, pois ela faz aparecer a graça e a força que Deus lhe concede. Quando, por sua própria condição humana, o apóstolo é fraco, então ele é forte pela graça de Deus (cf. 12,10).
III. Pistas para reflexão
Os antigos israelitas não gostaram quando o profeta Ezequiel denunciou a infidelidade à Lei e à Aliança, infidelidade que provocou a catástrofe do exílio babilônico (1ª leitura). Mas, gostando ou não, Ezequiel entregou o recado: “Saberão que há um profeta no meio deles”. Algo semelhante aconteceu a Jesus quando foi pregar na sua própria terra, Nazaré, depois de ter percorrido Cafarnaum e as outras cidades da Galileia (evangelho). Os seus conterrâneos não aceitavam que esse homem, que conheceram morando no meio deles como operário braçal, lhes pregasse a conversão para participarem do Reino de Deus. Como poderia alguém socialmente inferior – não proprietário rural – ensiná-los com autoridade! Vale recordar a reação de muitas pessoas quando um operário se candidata a prefeito, governador ou presidente da República!
O evangelho nos diz ainda que, depois da rejeição ciumenta, Jesus não pôde fazer lá muitos milagres. Só uns milagrezinhos, umas curas de doentes. “Santo de casa...” A limitação dos milagres era um aviso de Deus para evidenciar a incredulidade dos destinatários, mas a pregação de Jesus não deixava de ser um sinal profético.
O que ocorreu a Jesus em Nazaré prefigura a rejeição que ele experimentará, poucos meses depois, em Jerusalém. Ali, não apenas recusarão sua palavra, mas o pregarão na cruz.
Como seria uma visita de Jesus a nós, católicos do tempo presente? Encontraria ouvidos? Até hoje, muitos seguidores de Jesus conheceram a mesma sorte. Pessoas simples, profetas que surgem, levantando a voz no nosso meio. São mortos por denunciarem as desigualdades, as injustiças sociais, a violência no campo e na cidade. São mortos, às vezes, por “bons católicos”. São considerados pouco importantes, porque não têm poder. Mas sua palavra tem. Sua voz não se cala, mesmo que estejam mortos. Porque a voz da justiça e da fraternidade é a voz de Deus.
Ao profeta não importam posição social ou eloquência (cf. Jr 1,6). Paulo gloria-se em sua fraqueza, pois nela é Deus quem age. Ele só quer anunciar o evangelho do Cristo crucificado e pede que suportemos essa sua loucura. Poder e eloquência não importam. Importa que o profeta seja enviado por Deus. Talvez ele seja um simples andarilho, pouco refinado e muito chato, que sempre insiste na mesma coisa. Talvez não faça milagres vistosos, talvez só levante o ânimo de umas poucas pessoas simples. Talvez seja crucificado, figurativamente, pelos que gostam de se mostrar muito religiosos. Mas o que ele fala é Palavra de Deus.
Johan Konings
Pe. Johan Konings, sj, nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina (Bélgica). Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”. E-mail: [email protected].