Deus fez aliança com Israel ao libertá-lo do Egito. Esse pacto foi instituído por meio de um rito. Primeiramente, o sangue do cordeiro pascal foi derramado em substituição à vida dos primogênitos dos hebreus. Depois o rito continuou na celebração de uma refeição, a ceia pascal, memorial da libertação, celebrada a cada ano pelos filhos de Israel para atualizar aquele evento fundador e paradigmático da religião bíblico-judaica.
No Novo Testamento, Jesus faz sua última refeição juntamente com os discípulos dele. Tal refeição não é apenas o coroamento da atividade missionária de Jesus, mas o coroamento de todas as refeições que ele havia feito com os pecadores ao longo de sua vida terrestre. Conforme os evangelhos sinóticos, nos momentos finais da vida de Jesus, os comensais celebram uma ceia pascal. E nessa ceia Jesus substitui o cordeiro pascal e também se identifica com o pão ázimo e com o vinho abençoado. Jesus transforma radicalmente o significado dos elementos da ceia pascal, pois é nele que se dá a libertação definitiva e plena do ser humano. Portanto, é instaurada uma nova aliança firmada na libertação integral da humanidade. Na ceia eucarística, atualiza-se a libertação escatológica realizada por Jesus ao longo de sua vida, que culminou na morte de cruz, celebrada antecipadamente nos gestos da última ceia.
II. Comentário dos textos bíblicos- Evangelho (Mc 14,12-16.22-26): Tomai e comei, isto é meu Corpo
No Oriente antigo, o sangue simbolizava a totalidade da vida de um ser, animal ou humano. Por isso, quando o sangue de um animal era ofertado a Deus, na verdade o que se ofertava era a vida da pessoa que fazia a oferenda.
O termo sacrifício significa “tornar sagrado”; portanto, quando o sacerdote colocava o sangue do animal sobre o altar, a vida da pessoa ofertante é que se tornava sagrada, ou seja, consagrada a Deus. A ideia de sacrifício não tinha a atual conotação de “realização de algo difícil ou penoso”, mas de santificação ou sacralização da vida.
Antes de derramar o sangue na cruz, Jesus fez de sua vida uma oferta a Deus e à humanidade. Por isso ele antecipa, no gesto profético da última ceia, o que se dará no momento culminante do dom de si mesmo, a morte na cruz. É por causa de uma vida inteira ofertada, a Deus e ao outro, que a morte de Jesus, cume dessa oferta, pode ser chamada de sacrifício. A vida inteira de Jesus é sacrifício, é uma vida consagrada, santificada. Jesus oferta a própria vida como nosso representante.
Sua obediência e fé integral nos substituem, já que não conseguimos ser obedientes e fiéis da mesma forma. Sua vida humana sem pecado nos liberta do pecado, sua ressurreição nos liberta da morte. Em tudo isso Jesus nos representa e nos substitui. Cessam, daqui por diante, os antigos sacrifícios de animais. O sangue, a vida ofertada da nova aliança é o que vigora doravante.
Também era comum, na cultura antiga, a concepção de que beber o sangue significava assumir a vida presente nele. Os povos vizinhos a Israel, na Antiguidade, costumavam beber sangue de animais porque com isso acreditavam assimilar as características do animal, como força, coragem, valentia. Por isso, o Antigo Testamento proíbe beber o sangue de animais. As palavras do Senhor: “Isto é meu corpo… isto é meu sangue”, “tomai e comei… tomai e bebei”, deveriam nos recordar de que nos compete assimilar em nossa vida as características da vida de Jesus.
Dessa forma, no Corpo e Sangue de Cristo vive e cresce a Igreja, com os fiéis continuamente se alimentando de amor, de fidelidade, de doação ao outro, de perdão e de todos os aspectos da vida de Jesus.
O Corpo e Sangue de Cristo são centro e sustentáculo da vida cristã. Por isso, quem deles se alimenta há que aceitar participar da doação de vida realizada por Cristo, em adesão à vontade do Pai e em doação ao próximo. Assim, por meio da eucaristia, os fiéis vivem o mistério da vida, morte e ressurreição de Cristo, celebrando agora a comunhão sem fim na glória eterna.
- I leitura (Ex 24,3-8): Este é o sangue da aliança que o Senhor fez convosco
A primeira leitura descreve com detalhes o rito da aliança entre Deus e Israel. Moisés reuniu o povo, construiu um altar, mandou oferecer novilhos em holocausto, derramou metade do sangue deles sobre o altar e com a outra metade aspergiu o povo.
O termo hebraico para aliança, berith, significa também pacto e casamento (pacto de amor). Um pacto ou contrato, mesmo o casamento, implica a observância de certas exigências. Nesse texto que acabamos de ler, a exigência é o cumprimento das palavras proclamadas na presença do povo, a saber, aquelas concernentes ao decálogo. De sua parte, Deus se comprometeu a cumprir suas promessas, cuidando de Israel como um pai cuida do filho, suprindo-lhe as necessidades básicas e defendendo-o de todos os perigos.
O pacto bilateral da aliança no Antigo Testamento era estipulado mediante o sangue dos animais ali oferecidos em holocausto. O laço espiritual que unia o povo de Israel ao Deus da aliança era indicado pelo sangue aspergido sobre o povo.
- II leitura (Hb 9,11-15): Cristo ofereceu a si mesmo como oferta sem mácula
A antiga aliança prefigurava a nova, ratificada em Cristo não “por meio do sangue de cabritos e de touros, mas no seu próprio sangue” (v. 12). Os sacrifícios realizados na antiga aliança, apesar da profundidade de seu simbolismo, eram inadequados para purificar a consciência e trazer a salvação.
Na nova aliança há um só sacrifício, “oferecido uma vez por todas” (v. 12) por ter valor intrínseco, infinito. Nele não há animais sendo sacrificados nem sacerdotes fazendo rituais. Oferta e ofertante se identificam no Filho de Deus humanado, o sumo sacerdote, “o qual se ofereceu sem mancha a Deus”. Essa oferta eficaz tem o poder de purificar a consciência do ser humano “a fim de servirmos ao Deus vivo” (v. 14). Já não se trata de purificação exterior, e sim interior, que transforma o íntimo da pessoa, lavando-a dos pecados para que viva em conformidade com a graça.
III. Pistas para reflexão
Durante muitos séculos, foi esquecido da eucaristia o aspecto de comensalidade e refeição e superenfatizado o aspecto sacrifical do derramamento de sangue na cruz para o perdão dos pecados. Jesus foi transformado em animal de sacrifício. A celebração do Corpo e Sangue de Cristo deve chamar a atenção para o Pão e o Vinho, para a dimensão da refeição familiar onde todos participamos da mesma mesa.
Na reflexão deste dia, sejamos cuidadosos com as palavras, para que as pessoas da assembleia não tirem conclusões equivocadas. Jesus não é animal de sacrifício; a expressão bíblica que diz que ele é o “cordeiro de Deus” somente pode ser entendida à luz do significado do cordeiro pascal. É errado supor que Deus Pai, à morte de um cordeiro na Páscoa, preferiu a morte do próprio Filho. A carta aos Hebreus afirma que o sangue de animais não tira o pecado. Deus nunca precisou disso. Mas o sangue do cordeiro pascal substituía a vida do ofertante. Na realidade, o que se dava a Deus não era o sangue, mas a vida da pessoa (da família) que realizava o rito, e entregar a vida a Deus é ter a vida renovada, liberta, sem pecado. O sacrifício do cordeiro era um símbolo dentro de um rito.
Não há necessidade de que o Filho de Deus tenha o próprio sangue derramado como condição para que Deus nos perdoe os pecados, Deus Pai não é sanguinário. Jesus é aquele que se dedica à humanidade e ao bem comum e dá início ao Reino de Deus a partir da sua própria vida, feita inteiramente de doação ao próximo, sem excluir ninguém. A vida terrestre de Jesus de Nazaré foi uma oferta total ao Pai e à humanidade. O sangue de Cristo é a vida de Cristo, o corpo de Cristo é a vida de Cristo. Nessas espécies está figurada a vida inteira de Cristo, incluindo sua morte e ressurreição. Tal vida foi uma oferta, e por isso Cristo é a humanidade ofertada a Deus, libertada integralmente do egoísmo, do pecado e da morte. Por isso Cristo nos representa, sua vida substitui a nossa. É isso que celebramos na ceia eucarística.
Nesse sentido, comungar da eucaristia é assumir a vida de Cristo na própria vida, é acolher a todos, não ter preconceitos, desamor, rancor, não praticar qualquer exclusão.
Aíla Luzia Pinheiro Andrade, nj*
*Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas). E-mail: [email protected]