O tempo da Páscoa aprofunda o sentido da ressurreição para a nossa vida. Os sacramentos da iniciação cristã – batismo, confirmação e eucaristia – estão radicados no mistério pascal, que nos concedeu participar da vida nova em Cristo. Mas essa é uma experiência de coparticipação. Estar unido a Cristo supõe estar unido a outros irmãos e irmãs que compartilham do mesmo chamado, da mesma experiência, da mesma destinação. A morte e a ressurreição de Jesus nos inserem, necessariamente, na comunhão de vida com o corpo do Senhor, a Igreja.
II. Comentário dos textos bíblicosA Palavra do Senhor é critério de permanência em Cristo e em Deus. Ela indica o caminho do amor, como esteio da comunidade que é capaz de reconhecer e integrar os que produzem frutos de conversão. Movida pelo Espírito – a seiva da videira que é Cristo –, a Igreja é chamada a viver confiantemente no amor que nos liga a Deus e aos irmãos.
- I leitura: At 9,26-31 – Um estranho no ninho
O apóstolo Paulo, ainda designado como Saulo, recém-convertido ao caminho do evangelho, encontra dificuldades em ser aceito pela comunidade dos discípulos, pois outrora fora ardoroso perseguidor da Igreja. Mas, com o testemunho de Barnabé, ele acaba sendo acolhido e permanece com eles, participando de sua missão, desafios e até da perseguição (v. 29). Recebe dos discípulos também proteção e cuidados. Quando ameaçado de morte, Saulo é levado pelos discípulos para Cesareia e, depois, para Tarso.
Essa leitura prepara os ouvidos para o evangelho, pois a comunidade é o corpo de Cristo, a forma concreta de permanecer com Jesus. Unido à Igreja, não mais a perseguindo, Saulo, como um ramo que produz frutos de conversão (cf. Lc 3,8), tornar-se-á o “apóstolo dos gentios”. Neste ponto cabe bem a conclusão da leitura: a Igreja vivia em paz em toda a Palestina (Judeia, Galileia e Samaria), crescendo no temor do Senhor com a ajuda do Espírito Santo. A vocação do apóstolo, integrada na comunidade e explicitada pelo relato lucano nos Atos dos Apóstolos, é pequeno retrato da fecunda união com Cristo que a comunidade viabiliza.
- Evangelho: Jo 15,1-8 – Ser parte do todo
O evangelho deste domingo retoma importante imagem para a Sagrada Escritura, a imagem da videira, muito aparentada com a imagem da vinha (plantação de videiras). No Primeiro Testamento, a videira/vinha, em termos gerais, simboliza o povo de Israel (cf. Is 5,1-7). Este simbolismo é uma forma de narrar as vicissitudes desse povo na sua relação com Deus. Deus, o agricultor, é aquele que cobre a sua videira/vinha de cuidados especiais, dando-lhe todas as condições para que seja fecunda e produza frutos saborosos, condizentes com os cuidados que recebe. Contudo, não é isso que acontece. Ao contrário, a videira decepciona sempre o seu dono/agricultor, produzindo frutos amargos. As imagens refletem a relação de aliança: enquanto Deus dedica o seu amor ao seu povo, este lhe devolve rejeição e distanciamento de sua vontade.
No Evangelho de João, a alegoria da videira está inserida num discurso de despedida de Jesus dirigido aos seus discípulos. Esse discurso recupera o anterior simbolismo da tradição de Israel, mas o remodela em Cristo, pois agora ele é a videira. Ou seja, aquela situação de infidelidade, na qual o povo não produz frutos de justiça, tem seu termo em Jesus. Ele põe fim à longa história de desobediência e pecado de Israel. Por isso cabe aqui assinalar o qualificativo: videira verdadeira. Evidentemente, trata-se de uma oposição às falsas videiras. Em termos joaninos, isso pode ser entendido não apenas em relação a Israel, que, sem dúvida alguma, é eixo da metáfora, mas também em relação aos pagãos recém-convertidos, sobretudo os de origem helênica, muito afeitos ao sincretismo.
Jesus, a nova videira, é a imagem do novo povo de Deus. Contudo, como o próprio texto sugere, é necessário que seus discípulos permaneçam nele, como os ramos. O Pai, agricultor da sua videira, cuida dos ramos para que produzam mais frutos e corta aqueles que não produzem fruto. Existe, portanto, uma proximidade entre os verbos permanecer e frutificar (produzir fruto). Permanecem e frutificam aqueles que observam a palavra de Jesus (v. 7) e se purificam por essa Palavra (v. 3). Este é o vínculo de permanência dos ramos na videira. Já os frutos têm duplo direcionamento: o amor aos irmãos (mandamento de Cristo) e a glorificação do Pai pela obediência a Cristo no discipulado (v. 8).
O texto mostra uma reciprocidade: permanecer em Cristo significa que ele permanece nos discípulos (v. 4). O vínculo com ele, pela Palavra e pelo amor, revela uma dependência dos discípulos para com Cristo, sem o qual nada realizam (v. 5) e não produzem fruto (v. 4). Neste sentido, o texto aprofunda o que foi afirmado no domingo anterior. Lá, Pedro declara curar em nome de Jesus, que foi feito por Deus, pela sua morte e ressurreição, a pedra fundamental. Aqui, Jesus é novamente posto no centro, como videira verdadeira, porque, por sua morte e ressurreição, realizou a relação de aliança que o povo de Israel já não observava. Fora de Jesus, isto é, sem permanecer nele, os discípulos serão como ramos estéreis, infrutíferos.
- II leitura: 1Jo 3,18-24 – Sob o crivo do amor
A segunda leitura explicita e reforça ainda mais o modo de permanência em Cristo: o amor concreto aos irmãos. Esta é uma característica marcante da comunidade cristã, que a distingue de qualquer outra proposta religiosa ou filosófica (gnose): o amor que se realiza não só de boca e com palavras, mas com a verdade das ações (v. 18). O amor fraterno é índice, o “termômetro” da permanência em Cristo, pois é o cumprimento do mandamento dele (v. 23). Vivendo assim, a comunidade não tem por que se inquietar, pois permanece em Deus e Deus permanece nela. Onde houver dúvida, esse critério (v. 19) ratifica a verdade do caminho do evangelho.
Mas o alicerce dessa experiência não está no esforço pessoal ou comunitário. Está sobretudo na compreensão de um Deus favorável, maior do que o coração humano, quando este nos acusa (v. 20). Para os antigos, o coração não é o lugar dos sentimentos, mas o lugar das grandes decisões e das opções. O lugar onde Deus habita com a sua Palavra, que ilumina o caminho e permite prosseguir junto a Ele. Seria grosso modo o que nós, ocidentais, chamamos de consciência. A consciência é um saber do coração em conexão com Deus. Quando o coração não se sente acusado, porque ama e porque segue a Palavra de Cristo, a confiança flui naturalmente diante de Deus, a liberdade e a herança de filhos são alcançadas (cf. oração do dia).
III. Dicas para reflexão
Permanecer em Cristo tem que ver com a comunidade de fé, onde o exercício do amor que acolhe e dispõe para a missão, mas também apoia e protege, é fruto do Espírito que gera paz e a faz crescer.
No seu discurso de despedida, Cristo mostra que não haverá separação de si se houver amor e fidelidade à sua Palavra. O cristão, unido a Cristo, frutifica pelos cuidados do agricultor (Pai), que poda os ramos para que produzam mais frutos e estabelece seu Filho como a videira verdadeira.
No coração dos fiéis e da comunidade mora o mandamento de Cristo, o amor. O amor verdadeiro, que se traduz em gestos, realiza a permanência e gera a confiança num Deus que é generosamente maior do que qualquer coração que se sinta acusado.
Luiz Alexandre Solano Rossi
Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade; A origem do sofrimento do pobre. E-mail: [email protected]