A liturgia deste domingo nos ajuda a refletir sobre um assunto bem atual: a “teologia da prosperidade”! O livro de Jó nos confronta com algo incompreensível a quem acredita que Deus recompensa os bons e castiga os maus nesta vida: Jó é um homem justo e, apesar disso, perdeu tudo. Durante 40 capítulos, Jó protesta contra a injustiça de seu sofrimento sem explicação, mas no fim Deus mostra sua presença, e Jó se consola e se cala.
Também Jesus, no Novo Testamento, nunca apresenta uma explicação do sofrimento, porque não há explicação. Mas ele traz uma solução: assume o sofrimento. Inicialmente, curando-o. No fim, sofrendo-o, em compaixão universal. Se Jó nos mostra que Deus está presente onde o ser humano sofre, Jesus nos mostra que Deus conhece o sofrimento do ser humano por dentro. E ele o assume até o fim.
A 2ª leitura continua com os assuntos dos coríntios, que pretendem ter a liberdade de fazer tudo o que têm direito de fazer. Paulo não concorda: nem sempre devo fazer uso de meu direito. A caridade, a paciência para com o menos forte, com o inseguro na fé, valem mais que meu direito pessoal.
II. Comentários aos textos bíblicos- I leitura: Jó 7,1-4.6-7
Jó foi fortemente provado por Deus. Perdeu tudo, até a saúde. Seus amigos não o conseguem consolar (Jó 2,11). Jó contempla sua vida com amargura e só consegue pedir que a aflição não seja demais e Deus lhe dê um pouco de sossego. A vida é um “serviço de mercenário”, diz. Como os boias-frias, ele sempre leva a pior. Desperta cansado e, deitado, não consegue descansar, por causa das feridas. Que Deus lhe dê um pouco de sossego…
Procurando uma resposta para o mistério do sofrimento, os amigos de Jó dizem que os justos são recompensados e os ímpios, castigados. Mas Jó protesta: ele não é um ímpio. A teoria da prosperidade dos justos, a “teologia da retribuição”, não se verifica na realidade (21,5-6). Menos ainda o convence o pedante discurso de Eliú, tratando de mostrar o caráter pedagógico do sofrimento (cap. 32-37). Os amigos de Jó não resolvem nada. Vendem conselhos, mas não se compadecem. Suas palavras são pimenta na ferida.
Por outro lado, mesmo amaldiçoando o próprio nascimento, Jó não amaldiçoa Deus; ao contrário, reconhece e louva sua sabedoria e suas obras na criação: o abismo de seu sofrimento pessoal não lhe fecha os olhos para a grandeza de Deus! E é exatamente por este lado que entrará sossego na sua existência. Pois Deus se revelará a ele, tornar-se-á presente em seu sofrimento – ao contrário de seus amigos sabichões –, e essa experiência do mistério de Deus fará Jó entrar em si, no silêncio (42,1-6).
- Evangelho: Mc 1,29-39
Como para preencher o que ficou aberto na 1ª leitura, o evangelho nos mostra o Filho de Deus assumindo nossas dores. A narrativa conta o fim do “dia em Cafarnaum”, iniciado em Mc 1,21 (cf. domingo passado). Jesus continua com seus gestos e ações que falam de Deus.
No início de seu ministério, Jesus assume o sofrimento, curando-o. Mostra os sinais da aproximação de Deus ao sofredor. Sinais feitos com a “autoridade” que já comentamos no domingo passado. Ao sair do ofício sinagogal, naquele dia de sábado, Jesus se dirige à casa de Pedro. Lá, ergue da febre a sogra do apóstolo. E ela se põe a servir, demonstrando assim sua transformação. Depois, ao anoitecer, quando termina o repouso sabático, as pessoas trazem a Jesus os seus enfermos. Jesus acolhe a multidão em busca de cura: novo sinal de sua misteriosa “autoridade”. Os endemoninhados, os maus espíritos reconhecem seu adversário, mas ele lhes proíbe propalar o que sabem (cf. domingo passado). E quando, depois, Jesus se retira para se encontrar com o Pai e os discípulos o vêm buscar para reassumir sua atividade em Cafarnaum, ele revela que a vontade de seu Pai o empurra para outros lugares. Ele está inteiramente a serviço do anúncio do Reino, com a “autoridade” que o Pai lhe outorgou.
No fim de seu ministério, Jesus assumirá o sofrimento, sofrendo-o. Aí, sua compaixão se torna realmente universal. Supera de longe aquilo que aparece no livro de Jó. Se este nos mostra que Deus está presente onde o ser humano sofre (e isso já é grande consolação), Jesus nos mostra que Deus conhece o sofrimento do ser humano por experiência.
Assim como o livro de Jó, Jesus não apresenta uma explicação teórica do sofrimento. Neste sentido, concorda com os filósofos existencialistas: sofrer faz parte da “condição humana”. Não há explicação, mas, sim, solução: Jesus assume o sofrimento. No livro de Jó, Deus se digna olhar para o ser humano que sofre. Em Jesus Cristo, ele participa de seu sofrimento.
- II leitura: 1Cor 9,16-19.22-23
A 2ª leitura continua com a 1ª carta aos Coríntios, abordando assunto muito especial. 1Cor 8-10 é uma unidade que trata da questão sobre se o cristão pode sempre fazer as coisas que, em si, não são um mal. Trata-se das carnes que sobravam dos banquetes oferecidos pela cidade em honra das divindades locais. Essas carnes eram, depois da festa, vendidas no mercado por “preço de banana”. O cristão, dizem os “esclarecidos”, pode comprá-las e comê-las sem problema, já que não acredita nos ídolos. Paulo, porém, pensa diferente: a norma não é a liberdade, mas a caridade (cf. Gálatas 5,13: usemos da “liberdade para nos tornar escravos de nossos irmãos”). Se o uso de nossa liberdade causa a queda do “fraco na fé”, que tem ainda resquícios de sua tradição pagã, devemos considerar a sensibilidade de nosso irmão.
Paulo não concorda com a pretensa liberdade dos coríntios para fazerem tudo que têm direito de fazer. Existe o aspecto objetivo (carne é carne e ídolos não existem) e o aspecto subjetivo (alguém menos instruído na fé talvez coma as carnes idolátricas num espírito de superstição; 8,7). Portanto, diz Paulo, nem sempre devo fazer uso de meu direito. E alega seu próprio exemplo: ele teria o direito de receber gratificação por seu apostolado, mas, como tal gratificação poderia ser mal interpretada, prefere ganhar seu pão trabalhando. A gratificação de seu apostolado consiste no prazer de pregar o evangelho de graça. Paulo teria os mesmos direitos dos outros apóstolos: levar consigo uma mulher cristã (9,5), ser dispensado de trabalho manual (9,6), receber salário pelo trabalho evangélico (9,14; cf. a “palavra do Senhor” a este respeito, Mt 10,10). Entretanto, prefere anunciar o evangelho de graça, para que ninguém suspeite de motivos ambíguos. Ora, essa atitude não é inspirada apenas por prudência, mas por paixão pelo evangelho: “Ai de mim se eu não pregar o evangelho… Qual é meu salário? Pregar o evangelho gratuitamente, sem usar dos direitos que o evangelho me confere!” (9,17-18). Se tivermos verdadeiro afeto por nosso irmão fraco na fé, desistiremos com prazer de algumas coisas aparentemente cabíveis; e a própria gratuidade será a nossa recompensa, pois “tudo é graça”.
III. Pistas para reflexão
As leituras de hoje estão interligadas por um fio quase imperceptível: enquanto Jó se enche de sofrimento até o anoitecer (1ª leitura), Jesus cura o sofrimento até o anoitecer (evangelho). O conjunto do evangelho mostra Jesus empenhando-se, sem se poupar, para curar os enfermos de Cafarnaum. E, no dia seguinte, o poder de Deus que ele sente em si o impele para outros lugares, sem se deixar “privatizar” pelo povo de Cafarnaum. A paixão de Jesus é deixar efluir de si o poder benfazejo de Deus. Ele assume, sem limites, o sofrimento do povo. Ele sabe que isso é sua missão: “Foi para isso que eu vim”. Não pode recusar a Deus esse serviço.
Nosso povo, muitas vezes, vê nas doenças e no sofrimento um castigo de Deus. Mas quando o próprio Enviado de Deus se esgota para aliviar as dores do povo, como essas doenças poderiam ser um castigo divino? Não serão sinal de outra coisa? Há muito sofrimento que não é castigo, mas, simplesmente, condição humana, condição da criatura, além de ocasião para Deus manifestar seu amor. O evangelista João dirá que a doença do cego não vem de pecado algum, mas é oportunidade para Deus manifestar sua glória (Jo 9,3; cf. 11,4).
Por mais que o ser humano consiga dominar os problemas de saúde, não consegue excluir o sofrimento, pois este tem outra fonte. Mas é verdade que o egoísmo aumenta o sofrimento. O fato de Jesus apaixonadamente se entregar à cura de todos os males, também em outras cidades, é uma manifestação do Espírito de Deus que está sobre ele e que renova o mundo (cf. Sl 104[103],30). O evangelista Mateus compreendeu isso muito bem, quando acrescentou ao texto de Mc 1,34 a citação de Is 53,4 acerca do Servo sofredor: “Ele assumiu nossas dores e carregou nossas enfermidades” (Mt 8,17). E, se pelo pecado do mundo, as dores se transformam num mal que oprime a alma, logo à frente Jesus se revelará como aquele que perdoa o pecado (cf. Mc 2,1-12).
Também se hoje acontecem curas e outros sinais do amor apaixonado de Deus que se manifesta em Jesus Cristo, é preciso que reconheçamos nisso os sinais do Reino que Jesus vem trazer. Não enganemos as pessoas com falsas promessas de prosperidade, que até causam nos sofredores um complexo de culpa (“Que fiz de errado? Por que mereci isso?”). Mas, em meio ao mistério da dor, dediquemo-nos a dar sinais do amor de Jesus e de seu Pai.
Pe. Johan Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente é professor de ExegeseBíblica na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”. E-mail: [email protected]