Roteiros homiléticos

4º Domingo do Tempo Comum – 28 de janeiro

Por Pe. Johan Konings, sj

I. Introdução geral

Uma das características do antigo judaísmo é seu caráter profético, a presença de personagens carismáticos, considerados porta-vozes de Deus. A figura do profeta ganhou sua imagem “clássica” no livro do Deuteronômio, iniciado no tempo da reforma religiosa de Josias (±620 a.C.) e apresentado como recapitulação da Lei de Moisés. O profeta deve ser alguém como Moisés, alguém que fale de modo confiável em nome de Deus (1ª leitura). Com o tempo, a figura do “profeta como Moisés” tornou-se imagem do Messias que havia de vir.

O evangelho de hoje (Mc 1,21-28) apresenta Jesus segundo esse modelo, como alguém que ensina “com autoridade”, não como os escribas! Essa autoridade evoca o poder profético de ensinar em nome de Deus e fazer sinais que confirmem a palavra. Entretanto, paira um mistério sobre a figura de Jesus no Evangelho de Marcos. Jesus proíbe aos discípulos e aos beneficiados de suas curas publicar o exercício de sua “autoridade”, que eles presenciaram. O mistério da identidade de Jesus só será desvendado na hora da morte, quando o centurião romano proclamar: “Este homem era verdadeiramente Filho de Deus” (15,39). Só na morte fica claro, sem ambiguidade, o modo e o sentido da obra messiânica de Cristo segundo “os pensamentos de Deus” (cf. Mc 8,31-33).

A 2ª leitura é tomada, mais uma vez, das “questões práticas” de 1 Coríntios. Na linha da “reserva escatológica” (cf. domingo passado), Paulo explica as vantagens do celibato, ao menos quando assumido com vistas à escatologia.

II. Comentáriosaos textos bíblicos
  1. I leitura: Dt 18,15-20

Pela instituição do profetismo, o povo de Israel se distingue das nações pagãs, que praticam todo tipo de adivinhação e superstição (Dt 18,14). Deus suscitará em Israel profetas conforme o modelo de Moisés, seu porta-voz no Sinai. O profeta deve anunciar a cada geração a palavra de Deus, não mensagens sensacionalistas, adivinhação ou seja lá o que for. Tais serão os “profetas como eu” que Moisés anuncia em Dt 18,15 (cf. 18,18). O profeta deve ser alguém como Moisés, alguém que escute a palavra de Deus e a quem Deus coloque suas palavras na boca para transmiti-las; alguém que não fale, em nome de Deus, o que este não lhe tiver inspirado, nem fale em nome de outros deuses; alguém cujas palavras sejam confirmadas pelos fatos (18,15-22). Mas, pouco depois do exílio babilônico, essa instituição entra em declínio e a expressão “um profeta como eu” (Dt 18,15) acaba sendo interpretada num sentido individual, significando o Messias. Jo 6,14 (cf. 1,21.45; At 3,22-23) mostra que Jesus foi identificado com esse Messias-profeta. 

  1. Evangelho: Mc 1,21-28

A palavra de Jesus é um acontecer e um agir. Marcos não narra o conteúdo daquilo que Jesus pregou na sinagoga de Cafarnaum, mas o efeito: Jesus age com autoridade (1,22.27) na expulsão dos espíritos imundos, que reconhecem nele o representante de Deus. Jesus ensina com autoridade, não como os escribas! Essa “autoridade” evoca o poder profético de ensinar em nome de Deus e fazer sinais que confirmem a palavra.

Ora, o termo grego que Marcos usa (exousía) não é costumeiro, no judaísmo helenístico, para falar do poder profético, e sim do poder escatológico do “filho de homem” descrito no livro de Daniel! Ao ler Mc 1,21-28, tem-se a impressão de que o povo viu em Jesus um profeta, o que é confirmado pelas opiniões populares citadas em Mc 6,15 e 8,28. Mas a presença da “autoridade” nele esconde algo que o povo não consegue entender: “Que é isso?” (1,27). Ao percorrermos o Evangelho de Marcos, descobrimos que a identidade que Jesus atribui a si mesmo é a do Filho do homem, o enviado escatológico de Deus, prefigurado em Dn 7,13-14. A este pertence a exousía, a “autoridade” (Dn 7,14). Quem percebe, mesmo, a identidade de Jesus é o demônio por ele expulso (Mc 1,24): o demônio reconhece aquele que põe em perigo o seu domínio!

No Evangelho de Marcos paira um mistério sobre a figura de Jesus: o “segredo messiânico”. Aos demônios (1,25.34; 3,12), aos miraculados (1,44; 5,43; 7,34; 8,26), aos discípulos (8,30; 9,9), Jesus lhes proíbe publicar o exercício da “autoridade” que presenciaram. Se Jesus ensina com autoridade e poder efetivo, que confirmam sua palavra profética, devemos enxergar nele o “Filho do homem”, que vem com os plenos poderes de Deus. 

  1. II leitura: 1Cor 7,32-35

No espírito da “reserva escatológica” que vimos domingo passado, dando importância não tanto ao estado de vida, mas antes à diligência escatológica com a qual é assumido, Paulo explica que o estado celibatário lhe permite uma dedicação mais intensa àquilo que se relaciona, de modo imediato, com o Reino escatológico. Não condena, porém, as “mediações do Reino”, entre as quais o casamento, para o qual Jesus mesmo deu instruções (1Cor 7,10). O celibato é um conselho pessoal de Paulo (7,25). Como o sentido da escatologia é que o Senhor nos encontre ocupados com sua causa, Paulo aconselha o estado de vida que deixa nosso espírito mais livre para pensar nisso. Conselho não para truncar nossa liberdade, mas para a libertar mais ainda. É claro, está falando do celibato assumido, não do celibato “levado de carona”, como é, muitas vezes, o de parte de nosso clero; porque, se não é assumido interiormente, desvia mais da causa do Senhor do que as preocupações matrimoniais. Bem entendido, porém, o celibato, além de proporcionar liberdade para Deus aos que o assumem, constitui um lembrete para os casados, a fim de que, no meio de suas preocupações, conservem a reserva escatológica, que os faz ver melhor o sentido último de tudo quanto fazem.

 

III. Pistas para reflexão

Jesus é o profeta do reino de Deus. Mas que é um profeta? Conforme a 1ª leitura, o profeta é mediador e porta-voz de Deus. Moisés lembra aos israelitas que, quando da manifestação de Deus no monte Sinai (Ex 19), tiveram tanto medo, que Deus precisou estabelecer um intermediário para falar com eles. Esse intermediário foi Moisés, o primeiro “profeta bíblico”. E ele ensina que sempre haverá profetas em Israel para serem mediadores e porta-vozes de Deus, de modo que os israelitas já não precisam recorrer aos adivinhos cananeus, que consultam as divindades mediante sortilégios, búzios, necromantes (que evocam espíritos) etc. O profeta é aquele que fala com a autoridade de Deus, pelo qual é enviado. Muitas vezes, sua palavra é corroborada por Deus por meio de sinais milagrosos.

No evangelho, Jesus é apresentado como porta-voz de Deus e de seu reino. Deus mostra que está com ele. Dá-lhe “poder-autoridade” para fazer sinais. Na sinagoga de Cafarnaum, Jesus expulsa um demônio, e o povo reconhece: “Um ensinamento novo, dado com autoridade…” (Mc 1,27).

Ora, os sinais milagrosos servem para mostrar a autoridade do profeta, mas não são propriamente sua missão. Servem para mostrar que Deus está com ele, mas sua tarefa não é fazer coisas espantosas. Sua tarefa é ser porta-voz de Deus. Jesus veio para nos dizer e mostrar que Deus nos ama e espera que participemos ativamente de seu projeto de amor. Por outro lado, os sinais, embora não sejam sua tarefa propriamente, não deixam de revelar um pouco em que consiste o Reino que Jesus anuncia. São sinais da bondade de Deus. Jesus nunca faz sinais danosos às pessoas (como as pragas do Egito, que sobrevieram pela mão de Moisés). O primeiro sinal de Jesus, em Marcos, é uma expulsão de demônio. A possessão demoníaca simboliza o mal que toma conta do ser humano sem que este o queira. Libertando o endemoninhado do seu mal, Jesus demonstra que o Reino por ele anunciado não é apenas apelo livre à conversão de cada um, mas luta vitoriosa contra o mal que se apresenta maior que a gente.

O mal que é maior que a gente existe também hoje: a crescente desigualdade social, a má distribuição da terra e de seus produtos, a lenta asfixia do ambiente natural por conta das indústrias e da poluição, a vida insalubre dos que têm de menos e dos que têm de mais, a corrupção, o terror, o tráfico de drogas, o crime organizado, o esvaziamento moral e espiritual pelo mau uso dos meios de comunicação… Esses demônios parecem dominar muita gente e fazem muitas vítimas. O sinal profético de Jesus significa a libertação desse “mal do mundo” que transcende nossas parcas forças. E sua palavra, proferida com a autoridade de Deus mesmo, ensina-nos a realizar essa libertação.

Como Jesus, a Igreja é chamada a apresentar ao mundo a palavra de Deus e o anúncio de seu reino. Como confirmação dessa mensagem, deve também demonstrar, em sinais e obras, que o poder de Deus supera o mal: no empenho pela justiça e no alívio do sofrimento, no saneamento da sociedade e na cura do meio ambiente adoentado. Palavra e sinal, eis a missão profética da Igreja hoje.

O roteiro para a celebração da Apresentação do Senhor (no dia 2 de fevereiro) encontra-se no link.

Pe. Johan Konings, sj

Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente é professor de Exegese
Bíblica na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”. E-mail: [email protected]