Encerrado o tempo do Natal, os evangelhos da liturgia dominical apresentam em lectio continua o início da pregação de Jesus segundo o evangelista do ano – no caso, Marcos. Assim, ouvimos hoje a proclamação da chegada do reino de Deus e da conversão que deve acompanhar essa boa notícia. Isso não deixa de suscitar algumas perguntas. Por que “conversão” ao receber uma boa notícia?
De fato, na 1ª leitura e no evangelho de hoje, a pregação da conversão ressoa em duas articulações bem diferentes, revelando a distinção entre o antigo e o novo. Na 1ª leitura, de Jonas, trata-se de pregação ameaçadora, dirigida à “grande cidade” de Nínive, capital da Assíria. Diante do medo que a pregação inspira, a população abandona o pecado e faz penitência, proclamando o jejum e vestindo-se de saco; e Deus, demonstrando sua misericórdia universal, poupa a cidade.
O Evangelho de Marcos, por outro lado, resume a pregação inicial de Jesus não na capital do mundo, nem mesmo no centro do judaísmo, mas na periferia da Palestina. Não anuncia uma catástrofe, mas a plenitude do tempo. “O tempo está cumprido”. Chega de castigo: o “reino de Deus” está aí. É uma mensagem de salvação, dirigida aos pobres da Galileia. O “Filho”, que no batismo recebeu toda a afeição do Pai e foi ungido com o Espírito profético e messiânico, leva a boa-nova aos pobres, participando de sua situação de opressão e demonstrando a compreensão verdadeira do amor universal de Deus, que começa pelos últimos.
Enquanto a mensagem de Jonas logrou êxito por causa do medo, a mensagem de Cristo solicita conversão pela fé na boa-nova. Enquanto na história de Jonas a aceitação da mensagem faz Deus desistir de seus planos e a história continua como antes, no Novo Testamento vemos que a proclamação da boa-nova exige fé e participação ativa no Reino cuja presença é anunciada.
Como no domingo passado, a 2ª leitura tem um tema independente, tomado das “questões particulares” da primeira carta aos Coríntios (cf. domingo passado), a visão de Paulo a respeito dos diversos estados de vida.
II. Comentários aos textos bíblicos- I leitura: Jn 3,1-5.10
A 1ª leitura de hoje narra, em estilo profético-sapiencial, a conversão de Nínive segundo o livro de Jonas. Deus quer a conversão de todos, não só do povo de Israel. Por isso, Jonas deve pregar a conversão em Nínive, capital do império dos gentios (a Assíria). E acontece o que um judeu piedoso não podia imaginar: a cidade se converte em consequência da pregação do profeta fujão. Deus chama à conversão, e quem aceita o chamado é salvo.
O salmo responsorial (Sl 25[24],4ab-5ab.6-7bc.8-9) sublinha a importância da conversão: Deus guia ao bom caminho os pecadores.
- Evangelho: Mc 1,14-20
Devidamente introduzido pela aclamação, o evangelho narra o início da pregação de Jesus como anúncio da chegada do reino de Deus e exortação à correspondente conversão. O Evangelho de Marcos é o evangelho da “irrupção do reino de Deus”. Como Jonas, na 1ª leitura, Jesus aparece como profeta apocalíptico, mas, em vez de uma catástrofe, anuncia a boa-nova da chegada do Reino e pede conversão e fé. E isso com a “autoridade” do Reino que se revela na expulsão de demônios e outros sinais (Mc 1,22.27). Ele é o “Filho de Deus” (1,1; 9,7; 15,39; cf. 1,11).
Mas por que essa mensagem exige conversão? A mensagem de Jonas logrou êxito e produziu penitência à base do medo; a mensagem de Cristo solicita conversão à base da fé na boa-nova. Observe-se que conversão não é a mesma coisa que penitência. Certas Bíblias traduzem, erroneamente, Mc 1,15 como “fazei penitência” em vez de “convertei-vos”. Penitência tem que ver com pena, castigo. Conversão é dar nova virada à vida. O grego metanoia sugere uma mudança de mentalidade. Por trás disso está o hebraico shuv, “voltar” (a Deus), não por causa do medo, mas por causa da confiança no dom de Deus, o “reino de Deus”, que é o acontecer da vontade amorosa do Pai, como reza o pai-nosso: “Venha o teu reino, seja feita a tua vontade”. Onde reinam o amor e a justiça, conforme a vontade de Deus, acontece o reino de Deus. Na medida em que Jesus se identifica com essa vontade e a cumpre até o fim, até a morte, ele realiza e traz presente esse reino em sua própria pessoa. Ele é o reino de Deus que se torna presente. Todo o Evangelho de Marcos desenvolve essa verdade.
No início, o significado de Jesus e de sua pregação está envolto no mistério, mas, aos poucos, há de revelar-se a quem acreditar na boa-nova, sobretudo quando esta se tornar cruz e ressurreição.
Por isso, enquanto, na história de Jonas, a aceitação da mensagem faz Deus desistir do castigo anunciado, em Mc 1 a proclamação da boa-nova exige fé e participação ativa no Reino que a partir de agora abre espaço. A aceitação da pregação de Jesus faz o ser humano participar do Reino que ele traz presente. Essa adesão ativa é exemplificada no chamamento dos primeiros seguidores. Imediatamente depois de ter evocado a primeira pregação de Jesus, Marcos narra a vocação dos primeiros discípulos, vocação que os transforma, pois faz dos pescadores de peixe “pescadores de homens”. Eles são uma espécie de parábola viva: sua profissão é símbolo da realidade do Reino à qual eles estão sendo convidados. E eles abandonam o que eram e o que tinham – até mesmo o pai no barco…
- II leitura: 1Cor 7,29-31
Em 1Cor 7, Paulo responde a perguntas com relação ao casamento. As respostas, cheias de bom senso e sem desprezo algum da sexualidade (cf. comentário do domingo passado), revelam um tom de “reserva escatológica”, ou seja: tudo isso não é o mais importante para quem vive na expectativa da parúsia. Porque “o tempo é breve” (7,29), matrimônio ou celibato, dor ou alegria, posse ou pobreza são, em certo sentido, indiferentes. Paulo se estende a respeito do matrimônio (recordando as palavras do Senhor) e a respeito do celibato (expressando seus próprios conselhos). O estado de vida é realidade provisória, que perde sua importância diante do definitivo que se aproxima depressa (Paulo, como os primeiros cristãos em geral, acreditava que Cristo voltaria em breve). Na continuação do texto, Paulo mostra o valor de seu celibato como plena disponibilidade para as coisas de Cristo – uma espécie de antecipação da parúsia (7,32).
Casamento, prazer, posse, como também o contrário de tudo isso, são o revestimento provisório da vida, o “esquema” (como diz o texto grego) que desaparecerá. Já temos em nós o germe de uma realidade nova, e esta é que importa. Assim, Paulo evoca a dialética entre o provisório e o definitivo, o necessário e o significativo, o urgente e o importante. Mas essa dialética deve ser formulada novamente em cada geração e cada pessoa. Nossa maneira de articulá-la não precisa ser, necessariamente, a mesma de Paulo, que pensa na vinda próxima do Cristo glorioso. Podemos repartir com ele um sadio “relativismo escatológico” (“Quid hoc ad aeternitatem?”), porém a maneira de relativizar o provisório pode ser diferente da sua. Relativizar significa “tornar relativo”, “pôr em relação”. O cuidado de viver bem o casamento ou qualquer outra realidade humana – o trabalho, o bem-estar etc. – deve ser posto em relação com o reino de Deus e sua justiça.
III. Pistas para reflexão
O evangelho contém os temas do anúncio do Reino, da conversão e do seguimento. Como o tema da conversão será aprofundado na Quaresma, podemos orientar a reflexão para o tema do seguimento dos discípulos, pensando também no lema da Conferência de Aparecida: “discípulos-missionários”.
Muitos entre os jovens que demonstram sensibilidade aos problemas dos seus semelhantes encontram-se diante de um dilema: continuar dentro do projeto de sua família ou dispor-se a um serviço mais amplo, lá onde a solidariedade o exige. Foi um dilema semelhante que Jesus fez surgir para seus primeiros discípulos (evangelho). Ele andava anunciando o reinado do Pai celeste, enquanto eles estavam trabalhando na empresa de pesca do pai terrestre. Jesus os convidou a deixar o barco e o pai e a tornarem-se pescadores de gente. O reino de Deus precisa de colaboradores que abandonem tudo, para que cativem a massa humana que necessita do carinho de Deus.
Esse carinho de Deus é aceito na conversão e na fé: conversão para sair de uma atitude não sincronizada com seu amor, e fé como confiança no cumprimento de sua promessa. Deus quer proporcionar ao mundo seu carinho, sua graça. Não quer a morte do pecador, e sim que ele se converta e viva. Jesus convida à conversão porque o reino de Deus chegou (Mc 1,14-15). Para ajudar, chama pescadores de gente. Tiramos daí três considerações:
– Deus espera a conversão de todos, para que possam participar de seu reino de amor, justiça e paz.
– Para proclamar a chegada do seu reinado e suscitar a conversão, o coração novo, capaz de acolhê-lo, Deus precisa de colaboradores que façam de sua missão a sua vida, até mesmo à custa de outras ocupações (honestas em si).
– Mas, além dos que largam seus afazeres no mundo, os outros – todos – são chamados a participar ativamente na construção desse reino, exercendo o amor e a justiça em toda e qualquer atividade humana.
É este o programa da Igreja, chamada a continuar a missão de Jesus: o anúncio da vontade de Deus e de sua oferta de graça ao mundo; a vocação, formação e envio de pessoas que se dediquem ao anúncio; e a orientação de todos para a participação no reino de Deus, vivendo na justiça e no amor.
Pe. Johan Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente é professor de ExegeseBíblica na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”. E-mail: [email protected]