As profecias descreveram o Messias prometido com várias linguagens e títulos. Essa promessa alimentou a fé de Israel durante vários séculos. Hoje, nessa festa da luz, a esperança que animou o povo da aliança tornou-se realidade. A luz das nações, o Filho de Deus, manifestou-se na humildade, não veio como um guerreiro poderoso, mas na fragilidade de um recém-nascido. Hoje a fé cristã celebra sua primeira vinda, enquanto esperamos sua manifestação gloriosa, quando o dia eterno chegar.
II- Comentários aos textos bíblicos- Evangelho (Lc 2,1-14): Um filho nos foi dado
A promessa feita ao povo de Israel agora se realiza. E é em Belém, cidade de Davi, que se desencadeia a história da salvação. A imagem do Salvador deitado numa manjedoura tem um sentido profundamente teológico. Na manjedoura, como na cruz, o enfoque é o despojamento de Jesus, o fato de ele estar à mercê da acolhida ou da rejeição por parte das pessoas.
Outro fato importante é o lugar de seu nascimento. É estranho que não houvesse lugar para José e Maria (v. 7), já que, no Oriente, a hospitalidade é sagrada, principalmente para uma mulher que dava sinais da proximidade do parto. Por isso, a frase “não havia lugar para eles” deve ter um valor teológico, a saber: a sombra da cruz se projeta sobre os primeiros dias de sua vida, também não tinha onde ser sepultado.
Se, por um lado, não tem lugar para nascer, por outro, é acolhido pelos pastores, acontecimento que é o cume teológico desta seção (v. 11). A promessa divina tinha sido feita a pastores como Abraão, Jacó, Moisés, Davi etc. Agora, Deus estava cumprindo sua promessa e, por isso, o anúncio aos pastores tem caráter de evangelho, que quer dizer “boa notícia”.
O sinal (v. 12) dado pelos anjos aos destinatários da boa-nova não é o fato de o Menino estar envolto em faixas, pois isso acontecia com todo recém-nascido (cf. Ez 16,4) para que ficasse aquecido e protegido de doenças. O sinal é que o menino está em uma manjedoura, ou seja, há aqui uma alusão à eucaristia (pão do céu). Esse sentido pode ser reforçado pelo nome da cidade, Belém, em hebraico Baith-lehem, casa do pão. Dessa forma, o “sinal” não é para que encontrem o Menino, mas uma garantia da comunicação sobrenatural a respeito dele (cf. Ex 3,12).
A narrativa termina com um hino de glória (v. 14). Esse cântico significa que o anúncio da boa notícia encontra eco no céu. A liturgia celeste se une à comunidade cristã para celebrar esse mistério. A paz a que se refere o hino é uma das expressões mais usadas para falar da salvação esperada no tempo do Messias (cf. Is 9,5-6). O cântico manifesta que a humanidade é amada por Deus e por isso o Salvador nos foi dado, Jesus é o dom do Pai.
- I leitura (Is 9,1-6): Um menino nos nasceu
Zabulom e Nefitali foram as primeiras cidades do reino de Israel a ser atingidas pela invasão do grande império estrangeiro que deportou parte de sua população. Por isso, as profecias afirmavam que Deus devolveria a essas cidades sua antiga glória. As trevas que pairavam sobre aquela região seriam dissipadas quando um rei futuro inaugurasse uma etapa definitiva de justiça e paz.
A esse rei ideal foram atribuídas a sabedoria de Salomão, a honra de Davi e a religiosidade dos patriarcas e de Moisés. Ele seria a condensação das virtudes de seu povo. Um grande acento foi posto na sua sabedoria, critério exigido dos governantes de Israel, garantia de bem-estar para a comunidade. As expectativas messiânicas apontavam para um rei davídico ideal e, por isso, a Igreja primitiva viu no início do ministério de Jesus na Galileia, região onde ficavam aquelas cidades, a realização das antigas profecias.
- II leitura (Tt 2,11-14): A manifestação do Salvador
Esse texto é o coração da carta a Tito e corresponde à tática de fundamentar a práxis cristã nos alicerces sólidos da fé. Em primeiro lugar, está o amor de Deus, que comunicou a graça da salvação a todos os seres humanos. Em seguida sublinha a esperança da manifestação gloriosa de Cristo. Finalmente, recorda a redenção dos pecados por meio da oferta de Cristo. Por todos esses fatores, estamos capacitados para toda a boa obra que nos configura a Cristo e nos põe a caminho da vida eterna.
O autor da carta vê a salvação como fruto de uma manifestação da graça de Deus (v. 11). Essa manifestação é a vitória de Cristo, a ressurreição, e nos ensina a viver de acordo com o dom da vida plena, renunciando a todos os “valores” da morte.
Ensina também a esperar a manifestação gloriosa do “grande Deus e nosso Salvador Jesus Cristo” (v. 13). As expressões “grande Deus” e “nosso Salvador” eram próprias dos cultos aos deuses e aos imperadores romanos. Aqui elas são direcionadas a Cristo, mostrando a fé da comunidade cristã como contestação ao império romano.
O v. 14 dá um conteúdo prático, mais que pedagógico, à redenção trazida por Cristo. Ele se entregou por nós e com isso nos salvou da iniquidade, purificando para si um povo escolhido e zeloso nas boas obras.
III. Pistas para reflexão
O nascimento de Jesus nos ensina, primeiramente, a grande benevolência de Deus, que envia seu Filho ao mundo como dom. É importante resgatar esse aspecto nos tempos atuais, pois as pessoas quase não experimentam mais o valor da gratuidade. Vive-se numa corrida desenfreada pelo bem-estar pessoal, em que as relações são baseadas na troca, e não na gratuidade da entrega de si.
Outro ensinamento importante que nos trazem as leituras desta liturgia é o desapego, a renúncia. O nosso Salvador nasceu numa manjedoura e morreu numa cruz. Isso expressa o modo integral como viveu sua vida. Não procurou honrarias nem benefícios próprios. Não se apegou à sua condição de Filho de Deus, mas viveu a total entrega de si, de sua vida, sem esperar das pessoas reconhecimento algum. Viveu à mercê da acolhida ou da rejeição das pessoas. Viveu livremente sua entrega de vida, sua doação ao outro.
A encarnação de Jesus Cristo vem nos ensinar que a vida humana é puro dom de Deus. E como tal, deve ser recebida e vivida como entrega de si. Somente dessa forma podemos curar o mundo do egoísmo, grande mal que desfigura o ser humano.
Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj
Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj, é graduada em Filosofia e em Teologia. Cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, FAJE (MG). Atualmente, leciona na pós-graduação em Teologia na Universidade Católica de Pernambuco, UNICAP. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas). E-mail: [email protected]