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Publicado em marco-abril de 2017 - ano 58 - número 314

Campanha da Fraternidade de 2017: uma nova concepção de “vida fraterna”

Por Nicolau João Bakker, svd

As ciências da vida, em certo sentido, apontam para uma nova concepção de vida fraterna. Somos verdadeiramente irmãos e irmãs não apenas dos nossos semelhantes, os seres humanos, mas também, como já intuía são Francisco de Assis, de todos os demais seres vivos do planeta. A Campanha da Fraternidade de 2017 nos convida a “educar o nosso olhar”, como já nos aconselhava Teilhard de Chardin.

Introdução

Surpreendeu-me o tema da Campanha da Fraternidade de 2017: “Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da vida”. O que a fraternidade tem a ver com os biomas brasileiros? Tradicionalmente, nossos biomas são seis: a Amazônia, o cerrado, a caatinga, a Mata Atlântica, o Pantanal e os pampas do sul. Ultimamente se acrescenta a eles a zona costeira e marinha. Não é um pouco artificial ligar esses biomas ao conceito de fraternidade? De fato, mais do que nosso estado ou região de origem, é o bioma que define o viver, conviver e sobreviver do ser humano. Cada bioma é o resultado de forças cósmicas que mudam apenas a longuíssimo prazo e ultrapassam em muito a capacidade humana de, de alguma forma, dominá-los. Muito antes de o ser humano destruir o bioma, o bioma irá destruir o ser humano. Em muitos sentidos, o bioma “gera” o ser humano, dando-lhe sua característica própria, não apenas nas feições do corpo, mas também nas da alma. O objetivo deste artigo é demonstrar que, das ciências da vida, surge uma nova concepção de vida fraterna. Faremos isto, em primeiro lugar, observando “a vida como ela é”. Em seguida veremos que também o bioma, como a própria vida, é sempre uma teia partilhada. E, finalmente, tiraremos algumas conclusões pastorais em defesa da vida.

  1. “A vida como ela é”

A fraternidade, antes de ser um fenômeno social, é um fenômeno biológico. Trata-se de um exagero colocar as coisas dessa forma? Parece, mas não é. A vida, apesar das ocasionais aparências contrárias, é toda ela fraternal. Podemos perceber isso melhor quando colocamos debaixo da lupa uma célula viva, de qualquer ser vivente, para observar seu metabolismo (BAKKER,, 278/2011). Antes de mais nada, devemos então distinguir entre células sem núcleo central e células com núcleo central. Os especialistas falam em células procariontes e eucariontes. Durante os primeiros 2 bilhões de anos, a vida no planeta Terra, iniciada há cerca de 3,7 bilhões de anos, foi comandada basicamente pelas bactérias, seres vivos unicelulares sem núcleo central. Seu DNA é mil vezes mais simples que o nosso e não passa de um único cordão de uns quatro mil genes que flutua livremente no líquido, o citoplasma. Mas não subestime as bactérias: sem sexo algum, elas podem multiplicar-se a cada vinte minutos e partilhar entre si até 15% do seu código genético diariamente! Esse pool genético deu-lhes a capacidade de adaptar-se às mais diversas e duras condições num planeta em permanente transformação. As bactérias acabaram desenvolvendo os principais mecanismos de sustentação da vida: a fermentação, a fotossíntese, a fixação do nitrogênio, a respiração aeróbia, a pigmentação, a locomoção etc.

Vamos agora pôr debaixo da lupa a nossa célula, a eucarionte, isto é, a que possui um núcleo central e apresenta uma complexidade muito maior do que a das bactérias. Devemos à grande microbióloga Lynn Margulis a comprovação científica de que não são apenas as mutações genéticas e as transferências genéticas diretas — como a das bactérias — que fazem evoluir a vida, mas existe também a poderosa força da simbiogênese (MARGULIS, 2002). É aí que percebemos com maior clareza que a vida, em qualquer nível, depende inteiramente da tal fraternidade biológica. Todas as células eucariontes são fruto de uma integração, uma colaboração íntima e permanente — uma simbiose — entre forças vivas antes separadas. Tomemos como exemplo a simples alga do mar, a antecessora das plantas. Colocada debaixo da lupa, os especialistas percebem que seu núcleo genético é uma fusão de dois tipos diferentes de bactérias: a arqueofermentadora, capaz de decompor cadeias de carbono, ou açúcares, transformando-os em energia, e uma já capaz de locomoção, a nadadora. Mais adiante, uma terceira bactéria veio enriquecer o conjunto da célula: a respiradora, especializada em respirar oxigênio. Os novos seres que, há aproximadamente 2 bilhões de anos, resultaram dessa múltipla fusão, ainda unicelulares, vieram receber depois a inestimável colaboração de uma quarta bactéria, a fotossintetizadora (a cianobactéria, verde-azulada). Contudo, os resquícios desta encontramos apenas no reino das plantas, e não no reino dos fungos ou no reino dos animais.

Ajustemos, porém, ainda mais a lente da nossa lupa. Dentro do núcleo central de cada célula eucarionte podemos observar claramente um pequeno mininúcleo que, em conjunto com o DNA principal do núcleo central, dá origem aos aproximadamente 500 milcentros de produção, os ribossomos, espalhados pelo fluido celular, cada um produzindo, além das proteínas e enzimas necessárias, também as quatro organelas principais que sustentam a vida da célula: 1) as usinas solares, ou cloroplastos, que — apenas nas células vegetais — absorvem do ar o dióxido de carbono e a energia do sol, e da terra a água e os minerais, para, com a ajuda de enzimas, transformar tudo em açúcares alimentares, devolvendo ao ar o oxigênio (= fotossíntese); 2) as casas de força, ou mitocôndrias, que, também com a ajuda de enzimas, realizam a respiração celular, usando a energia proveniente do oxigênio para decompor as indispensáveis moléculas de açúcar, transformando-as em transportadores de energia, as famosas moléculas de trifosfato de adenosina (ATP), que fornecem energia a todas as células, e ao corpo, quando e onde for necessário; 3), as bolsas de armazenamento que servem de reserva e acondicionamento dos produtos celulares para serem usados quando necessário; 4) as usinas de reciclagem, onde se faz o reúso de elementos não usados ou danificados. Que bela lição de vida: tudo colabora com tudo e nada é desperdiçado!

Foram esses novos seres com núcleo central e alta complexidade, chamados protistas, que evoluíram, passando de unicelulares a multicelulares, até transformar-se, por caminhos diferentes, nas atuais plantas, fungos e animais. Ao reino destes, devemos humildemente reconhecer, pertencemos todos nós. Se quisermos entender a vida como ela é, não existe melhor retrato do que este, do metabolismo celular. A célula, porém, não é inteiramente autônoma, pois através de sua membrana — resistente, mas permeável — ocorre um vai e vem contínuo de material orgânico. É sempre o “meio ambiente” local que dá sustento à vida, permitindo, inclusive, (raros) momentos de superação. Contudo, não existem comandos externos ou causas únicas. As células se renovam permanentemente, e por própria conta. Sem causa externa, tiram cópias de si mesmas, ou se autorreplicam, como dizem os estudiosos. Qualquer mudança é sempre fruto da ação conjunta da célula toda, e a vida apenas permanece como fruto de relações. Qualquer isolamento significa morte. Uma espécie de fraternidade faz parte, portanto, da essência da vida não consciente. Se na vida consciente frequentemente as coisas são diferentes, não é a conversão ecológica, ressaltada pelos últimos papas, a única solução? A mesma teia de inter-relações colaborativas que caracteriza a célula caracteriza também o órgão no qual a célula está inserida. E assim também o organismo e as relações entre órgãos e organismo. Não importa tratar-se de uma humilde planta, um animal feroz ou qualquer outro ser vivo. Apenas a vida consciente pode interferir no padrão das relações vitais, no sentido de efetivamente contrariá-las.

  1. Biomas: teias de vida partilhada

A mesma teia de relações que caracteriza a vida da célula caracteriza também o bioma. O caráter bioquímico da vida não permite exceção à regra. Através de suas divisas — sua membrana permeável —, ocorre um permanente vai e vem de energias cósmicas que lhe dão sustento. As nuvens carregadas de vapor do mar trazem água. Sobras são passadas adiante. Os ventos expulsam o calor excessivo do ar, restaurando a temperatura ideal. A energia solar está abundantemente disponível para a fotossíntese de todas as plantas verdes. Da mesma forma, o oxigênio, fornecendo energia às mitocôndrias de todos os seres viventes. Como já vimos, é o meio ambiente adequado que permite à vida prosperar.

Porém, cada bioma tem também sua personalidade própria, sua identidade. E esta, também, se renova e se perpetua por conta própria, graças às inúmeras relações colaborativas que são específicas a ela. Um exemplo prático talvez ajude a esclarecer. Recentemente, numa viagem ao sul do Pantanal com alguns familiares, passamos por uma estreita estrada de terra rumo à Pousada & Camping Santa Clara. Num determinado percurso de não mais de trinta quilômetros, passamos por quase quarenta pontes de madeira, todas de difícil manutenção. Ao lado da estrada, uma imensidão de água de sete metros de profundidade, quase cobrindo a mata verde, buscava uma saída apressada por baixo das pontes. Perguntando ao rústico, mas bem informado guia turístico da pousada sobre o porquê de tantas pontes de difícil e cara manutenção, obtive uma resposta muito esclarecedora. “Aqui no Pantanal”, disse-me com simplicidade, “dependemos muito da água. Nas águas altas nem acesso à pousada não tem. Repare naquela árvore. A parte mais escura do casco mostra que a água, ainda há pouco, estava acima da estrada. As muitas pontes estão aí para a água escoar o mais depressa possível. Daqui a dois meses, todos os pastos por aqui estarão secos. Teremos agora as últimas chuvas de verão. Elas são muito importantes para nós. O sedimento das águas deixa uma fina camada de lodo sobre as raízes da grama, não permitindo que a nova grama se desenvolva bem para o gado comer. A grama tem que crescer antes do tempo da seca. Sem essas chuvas a grama não cresce, o gado pode morrer e eu perco o meu emprego.” Tiro na mosca. Da sabedoria humilde de um experiente pantaneiro recebi uma grande lição ecológica: cada bioma é uma autêntica teia de vida partilhada. Todos dependem de tudo e de todos. Assim como na célula, assim no bioma. Uma grande teia partilhada.

Volto a perguntar: trata-se de um exagero falar em fraternidade biológica? Entendo que não, porque a mais perfeita fraternidade cristã nada mais é do que pôr em prática, conscientemente, o que a própria vida é de forma inconsciente. A vida é sempre uma teia de relações colaborativas. Como tudo está inter-relacionado, qualquer meio ambiente, grande ou pequeno, estará sujeito, historicamente, a momentos de crise ou até, esporadicamente, a grandes cataclismos, mas sempre cada sistema — e os diferentes sistemas entre si —, por suas forças vitais internas, retorna, adaptando-se ao antigo ou a um novo equilíbrio. Não é o tema de reflexão deste artigo, mas é preciso fazer menção a algo misterioso que as ciências da vida têm muita dificuldade de captar. Isso é natural, pois a ciência, por si só, não pode captá-lo. Apenas pela fé é possível captar o sentido mais profundo daquilo que chamamos de vida. O renomado filósofo alemão Hans Jonas usa uma expressão muito adequada. Em toda a criação, ele diz, existe um horizonte de transcendência. Por mais de 1 bilhão de anos, a Terra desconhecia a vida; havia apenas o interminável intercâmbio entre os elementos físico-químicos, em resposta ao meio ambiente cósmico. Contudo, existe uma espécie de fraternidade inicial entre os elementos da natureza. Suas diferentes polaridades elétricas os levam a transcender a individualidade e formar conjuntos marcados pela estabilidade. Em especial o carbono — a mãe de todos os produtos orgânicos — se presta a incontáveis combinações. Logo que o meio ambiente da Terra o permitiu, a fraternidade inicial evoluiu para a fraternidade bioquímica ou biológica que acima retratamos.

Dissemos acima que “o caráter bioquímico da vida não permite exceção à regra”. O fato é que a própria tendência à transcendência faz parte da regra! Após 620 milhões de anos de evolução, o cérebro humano possibilitou ao ser humano criar consciência de si mesmo e captar a noção de sentido da Vida. Aí surge a fraternidade consciente, a marca registrada de todas as religiões, entre as quais a cristã. Ninguém sabe qual é o ponto final do processo. O inexistente não se sujeita à comprovação científica. Apenas a fé pode intuir a continuidade do horizonte. Nós, cristãos, acreditamos num Reino a construir, a Nova Jerusalém, que, mais do que uma conquista, será um dom, pois “descerá do céu” (Ap 21,10). Ainda há um longo caminho à nossa frente. Quem sabe uma globalização mais positiva possa um dia levar a humanidade a ter relações colaborativas muito mais amplas e profundas. As fraternidades conscientes construirão então a “vida em plenitude” sonhada por Jesus (Jo 10,10). Felicidade humana nada mais é do que isso.

  1. Por uma pastoral em defesa da vida

Querer atuar em defesa da vida sem ter uma clareza maior do que a vida é facilmente leva a equívocos. Ter somente teorias, é verdade, de nada adianta, pois a pastoral é feita de ações concretas, mas construir muros sem adequar o prumo é ilusório. É desperdício do nosso precioso tempo. Já dizia santo Agostinho (†430) que não adiantam os grandes passos quando feitos nos caminhos errados. Por outro lado, lembrando meus tempos de professor de Teologia Pastoral, aprendi que receitas prontas não são nada educativas. Como vimos, a vida apenas prospera com colaborações autônomas. Vamos tentar chegar mais perto do dia a dia sem cair na armadilha de aprisionar a criatividade.

3.1. Romper a couraça institucional

Esta é, no meu entender, a primeira pre-condição para um bom trabalho em defesa da vida. Se o papa insiste numa Igreja em saí­da, é porque estamos demasiadamente presos aos nossos incontáveis e incontornáveis compromissos paroquiais (ou institucionais). Estou em paróquia e sinto o desafio diariamente. Existe uma ciência, a da cognição ou do conhecimento, que afirma: nosso modo de atuar define o nosso modo de pensar! É humanamente quase impossível romper com as tradições que nos prendem, com as convenções sociais que nos ditam as regras e com o contexto sociocultural que nos impede de ver o que está para além do nosso horizonte. Via de regra, o que se sedimentou no inconsciente fala mais alto do que o consciente.

Ora, não esqueçamos — especialmente nós, agentes pastorais — que a Igreja, durante séculos, se manteve avessa ao mundo. A Igreja enquanto instituição se voltou com exclusividade para as preocupações intraeclesiais. Depois do Concílio Vaticano II, marcadamente na América Latina, houve uma curta reação. As CEBs e as pastorais sociais deram um novo rosto à Igreja, mas, globalmente, as forças renovadoras não prevaleceram. Sem uma sacudida forte no ministério ordenado, especialmente por parte do Vaticano, o clericalismo irá prevalecer e os padres — em geral os animadores gerais do processo — se verão, na prática, presos aos limites impostos pela instituição. No momento do agir, a CF seja no social, seja no ecológico, irá propor, sugerir etc., mas ficará apenas no papel. Romper couraças institucionais é muito mais difícil do que imaginamos. Requer uma espécie de conversão. Quem quer partir em defesa da vida deve largar (em parte!) a agenda paroquial, mobilizar tempo e ir para onde a vida corre perigo.

3.2. Saber articular-se

Esta é outra precondição. Hoje, em quase todos os cantos do Brasil, há gente se preocupando com o meio ambiente. O grande bioma, pela sua enorme extensão, costuma ficar fora do alcance dos binóculos, mas lembrem: a vida é feita de relações colaborativas. São tão importantes os níveis locais quanto os maiores. O bioma costuma ser dividido em grandes bacias hidrográficas. Estas são compostas por muitas sub-bacias menores. E cada bacia menor se constitui de inúmeras microbacias. A vida surgiu da água e dela depende. Você que é padre, irmã ou leigo, não vale a pena dar uma olhada ao redor, ver quem já está atuando, ou querendo atuar, e articular-se com essas pessoas em defesa da vida? Em certa fase de minha vida, tive a oportunidade de atuar junto a uma ONG de meio ambiente de um pequeno município no interior do estado de São Paulo, na grande bacia hidrográfica do rio Piracicaba (Vida BAKKER, 281/2011). Fiz uma pequena cartilha popular sobre as dezesseis microbacias do município (Holambra). Cito uma parte do texto: “Microbacia é uma pequena área geográfica; toda água nela existente, ou toda chuva que nela cair, acaba fluindo para o mesmo córrego que lhe dá o nome”. E em destaque: “Todo ser humano vive numa microbacia. Não permita que se jogue qualquer sujeira nela. A microbacia é a sua casa!”.

Você, leitor, já sabe o nome da sua microbacia? Procure saber, e mãos à obra! O importante é articular-se. Mas “ah, eles são de outra religião”. Não importa. “São de outro partido.” Também não importa. “Não são da nossa paróquia.” Importa menos ainda. A única coisa que importa é defender a vida. Com essa mania da nossa Igreja (ou será dos nossos bispos?) de apenas incentivar as pastorais internas, a vida lá fora está numa agonia danada. Para muitos, já é tarde demais para reverter a situação. Aliás, essa imperiosa necessidade de melhorarmos as nossas articulações não tem a ver apenas com o meio ambiente. É igualmente importante para todas as nossas pastorais sociais. Se em décadas passadas estas foram, quem sabe, até supervalorizadas, hoje elas — quando ainda existem — estão numa situação de dar dó. Frequentemente, não existe mais nada, nem na paróquia, nem na região pastoral. Não custa, porém, dar início a algo novo. Ultimamente, o que tem dado certo é a criação de pequenos fóruns. São mais maleáveis, pois podem priorizar ora a questão social, ora a questão ecológica. Por aqui criamos, de forma suprapartidária e suprarreligiosa, o nosso fórum de entidades. Estamos, neste momento, na preparação de um ato ecumênico contra a violência e, também, na preparação da nossa Sexta Caminhada Ecológica. Para esta ainda falta definir o foco.

3.3. Focar os inimigos do bioma

Seria muito saudável que todos fizéssemos uma boa análise da surpreendente encíclica Laudato Si’, do papa Francisco. Não fala de biomas, mas está perfeitamente dentro daquilo que a vida é. Mais de trinta vezes aborda o tema “tudo está interligado” (BAKKER, 490/2016). Contudo, como o atual sucessor de Pedro não é de dar ponto sem nó, quase quarenta vezes cita como causa principal de uma eventual catástrofe ecológica (LS 4) o atual paradigma tecnocientífico, visto por todos os governos como o único caminho de enfrentamento e superação. Uma verdadeira ilusão global. Todos os biomas são fruto de uma delicada inter-relação entre o clima predominante na área e uma grande variedade de condições locais, tais como: o tipo de solo, fauna e flora, a distribuição geográfica das águas, a densidade populacional, as condições de mercado e até a tradição cultural das populações originárias. O que faz o tal paradigma tecnocientífico? Desconsidera e atravessa todas as condições específicas do bioma e impõe um sistema exógeno (extrabiômico) e único de produção e consumo, sem qualquer preocupação com as consequências sociais e ecológicas. Rasga-se simplesmente toda a teia (tradicional) de vida partilhada. E, como vimos acima, rasgando a teia da vida, a morte é certa.

Evidentemente, trata-se de uma realidade mais visível nas áreas rurais do que nas áreas urbanas. Vocês que atuam numa área rural, seja na catequese, na liturgia, no dízimo, na pastoral familiar, da juventude, ou em qualquer outra pastoral ou movimento, já pensaram como incluir essa questão da defesa da vida em sua agenda de trabalho? Vejam ao seu redor e reparem onde o paradigma tecnocientífico está fazendo seus maiores estragos. Pode ser uma reserva indígena ameaçada que necessita urgentemente de apoio, uma comunidade quilombola prestes a ser invadida e fatiada pelo “progresso”, a crescente leva dos sem-terra, uma grande área de ribeirinhos que vê minguar sua tradicional fonte de proteínas (peixe, produtos naturais), uma rica reserva natural clamando por defensores, ou então, como ocorre na maioria dos casos, uma rica e produtiva agricultura orgânica e familiar que perde mercado porque todos se deixam seduzir pelos belos produtos apregoados na mídia. Ninguém se mexe, ninguém conscientiza, ninguém se articula contra? Perdida em meio às suas múltiplas e bem-intencionadas preocupações intraeclesiais, a Igreja não pode correr o perigo de, pela omissão, ser como o “fermento” dos fariseus contra o qual Jesus admoestou os seus discípulos (Mt 16,5-12)?

Conclusão

Estabelecer um nexo entre biomas e fraternidade cristã, até muito recentemente, seria impensável. Mesmo hoje é preciso enfocar o tema de forma adequada para não tirar conclusões apressadas e sem nexo. Talvez, mais do que uma questão de doutrina, seja uma questão de espiritualidade. No cristianismo, mais importante do que o conhecer é o viver, o praticar. Perceber que a fé cristã tem algo a ver com o ar que respiramos, com a flora e a fauna, e com as paisagens, as águas e o mar; dar-nos conta, enfim, de que tudo está interligado, que não somos donos, mas parte da natureza, e que “somos todos terra”, como afirma o papa Francisco (LS 2), tudo isso está mais para sentimento, empatia e emoção do que para frias argumentações doutrinais. A Bíblia toda expressa essa reverência. Jesus a manifesta quando fala dos lírios do campo, e Francisco de Assis faz o mesmo quando pede ao irmão Antônio que, mais do que ensinar a doutrina teológica aos frades menores, se preocupe em ensinar o caminho da piedade. Sem uma mística, o ser humano não muda suas atitudes (LS 216).

Ao escrever este artigo, ocorreu-me a ideia de fazer distinção entre fraternidade inicial, fraternidade biológica e fraternidade consciente. Não tenho dúvida de que ocorreu um processo evolutivo nesse sentido. A consciência humana, aliás, continua em evolução. Sem isso, seria incorreto falar em nova concepção de vida fraterna. Não se trata de uma linguagem meramente metafórica. Por mais importante que seja não perder de vista a riqueza das doutrinas acumuladas no passado, as ciências da vida parecem sugerir que o melhor caminho talvez seja o de atentar melhor para a vida como ela é, para assim captar, com maior segurança, o que possa vir a ser a vida em plenitude almejada por Jesus. Nesse sentido, também os biomas têm uma lição a dar. Que a Campanha da Fraternidade de 2017 nos ajude a não perder o foco.

Bibliografia

Vida Pastoral, BAKKER, N.I. n.278

Symbiotic planet: a new vision of evolution. New York: Basic Books, 1988.

MARGULIS, L.; SAGAN, D. Microcosmos. São Paulo: Cultrix, 2002.

A pastoral em novas perspectivas (I) — introdução ao tema. Vida Pastoral,São Paulo: Paulus, 2011.

______. A pastoral em novas perspectivas (III) — espiritualidade ecológica e perspectivas pastorais. São Paulo: Paulus, n. 281, 2011.

______. O papa “que veio de longe”: da Laudato Si’ ao Ano de Misericórdia. Convergência, Brasília: CRB, n.490, 2016.

Nicolau João Bakker, svd

*Missionário do Verbo Divino, formado em Filosofia, Teologia e Ciências Sociais. Atuou sempre na pastoral prática, rural e urbana. Foi educador popular no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo, São Paulo (CDHEP/CL), e professor de Teologia Pastoral no Instituto de Teologia (Itesp/SP). Nos últimos anos, publica regularmente na Vida Pastoral, REB, Convergência e Grande Sinal. Para consulta aos artigos do autor, acessar: . E-mail: [email protected]