Publicado em março-abril de 2016 - ano 57 - número 308
Os eixos do perdão: lembrar, esquecer e perdoar e a catequese para a misericórdia
Por João da Silva Mendonça Filho, sdb
À luz do Jubileu da Misericórdia, o artigo faz uma reflexão que ajuda a repensar a compreensão do perdão. Este significa que Deus deixou o pecado para trás. Quando me lembro dos pecados, não é para carregar a culpa ou listas de pecado, mas para experimentar a grandeza do perdão que tudo cura e transforma.
Introdução
O Papa Francisco nos convocou ao Jubileu Extraordinário da Misericórdia, chamando-nos a atenção para o rosto de Jesus que revela a misericórdia do Pai (Misericordiae Vultus, n. 1-2). São João Paulo II ensinou também numa bela encíclica essa realidade intrínseca e trinitária:
Em Cristo e por Cristo, Deus, com a sua misericórdia, torna-se também particularmente visível; isto é, põe-se em evidência o atributo da divindade, que já o Antigo Testamento, servindo-se de diversos conceitos e termos, tinha chamado “misericórdia”. Cristo confere a toda a tradição do Antigo Testamento, quanto à misericórdia divina, sentido definitivo. Não somente fala dela e a explica com o uso de comparações e parábolas, mas sobretudo Ele próprio encarna-a e personifica-a. Ele próprio é, em certo sentido, a misericórdia. Para quem a vê nele – e nele a encontra –, Deus torna-se particularmente “visível” como Pai “rico em misericórdia” (Dives in Misericordia , n. 2).
A misericórdia é, assim, sentimento e gesto, pois “o Senhor revelou a sua misericórdia tanto nas obras como nas palavras” (Ibid., n. 4). É, portanto, sentimento porque revela de forma concreta o amor de Deus por nós na encarnação do Verbo. E é também gesto, porque o Senhor veio ao encontro das pessoas e tocou nelas, manifestando sua bondade e ternura, sobretudo para com os pobres (Ibid., n. 3). Francisco deixa claro que, diante da “gravidade do pecado, Deus responde com a plenitude do perdão” (Misericordiae Vultus, n. 3). A misericórdia é, assim, a arte de reconhecer, de se perdoar e saber perdoar. A política do perdão vem de dentro para fora. Exatamente como Jesus disse: “O que torna alguém impuro não é o que entra pela boca, mas o que sai da boca, isso é que o torna impuro” (Mt 15,11).
A ação catequética é um processo formativo para esta política do saber perdoar. Precisamos urgentemente resgatar o sentido do pecado, para libertar as pessoas do peso de consciência, do complexo de culpa e do medo de se perdoar. Há mais remorso que alegria, mais culpa que aceitação de si mesmo, mais escravidão que liberdade. Como bem disse o Papa Francisco: “Não tenhamos medo de rever as normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já não têm a mesma força educativa como canais de vida” (Evangelii Gaudium, n. 43). Desejo assim contribuir neste Jubileu com a reflexão da leveza do perdão que orienta a pessoa a se libertar do peso do pecado e que ajude a passar da Quaresma à Páscoa (Ibid., n. 6).
- Saber lembrar.
Quando eu era menino, pelos nove anos, frequentava a catequese paroquial. O catequista era um padre. Certo dia ele iniciou a catequese com uma orientação que me chocou. Ele disse: “Olha, meninos, cuidado com o pecado. Deus tem um livro lá no céu. Quando vocês morrerem e chegarem no juízo, Deus vai abrir o livro e procurar as anotações sobre vocês. Todos os pecados cometidos estarão registrados. Assim todos nós seremos julgados”. Eu pensei: bom, se é assim, então por que razão a catequese, a comunhão, o esforço para melhorar? Se Deus não esquece e ainda escreve tudo, então é melhor seguir a vida sem ele! Saí da catequese e da paróquia e só retornei anos depois.
É obvio que a lembrança dos atos passados não é ruim, porque o primeiro lugar de reconciliação é com minha história pessoal (GRÜN, 2005, p. 36). É também a tarefa mais difícil. Há “pessoas que passam toda a vida queixando-se e rebelando-se contra seu destino. Sentem-se a vida inteira como vítimas” (Ibid., p. 35). Mas não deveria ser assim. À medida que lembrarmos nossos atos, teremos a capacidade de rever nossas ações para atualizar, ressignificar e potencializar o que fazemos hoje e projetar o futuro sem culpa. O grave problema é a culpa. Ela não forma para a revisão de vida, mas para a anulação da pessoa.
Precisamos aceitar que em nós não existe apenas amor, mas também ódio; que apesar de todas as aspirações religiosas e morais, também possuímos tendências assassinas, traços sadistas e masoquistas, agressividade, ira, ciúme, sentimentos depressivos, medo e covardia. Em nosso interior não existem apenas anseios espirituais, mas também áreas onde Deus não habita. Aquele que não enfrenta a própria sombra acaba por projetá-la inconscientemente no outro. Isso requer humildade, coragem de descer do pedestal da imagem idealizada, de curvar-se à sujeira da própria realidade (Ibid., p. 35).
Tudo isso somente será possível na humildade, e não com a marca da culpa. Reconciliar-se com o próprio corpo, lugar do encontro, senão fugiremos dele com medo de ser nele pessoa e perdão. O complexo de culpa é traumatizante e dolorido. É moralmente danoso ao agir humano. Chega até a influenciar a ética – valores –, porque cria uma consciência cínica que obscurece as normas. A pessoa que não se aceita plenamente sabe o que não pode fazer e faz, sabe que pode fazer o bem e não faz, sabe o que quer e não busca realizar. Por isso o ser humano “precisa do perdão de Deus, para libertar-se da culpa que o paralisa e bloqueia. O perdão significa que Deus deixou o pecado para trás (Is 38, 17)” (GRÜN, 2005, p. 11). Então, quando lembro dos pecados não é para carregar a culpa, mas para experimentar a grandeza do perdão que tudo cura e transforma.
Lembrar dos pecados é uma política do saber perdoar porque educa na fé e reforça a ética, ou seja, o núcleo espiritual do agir humano que norteia a vida.[1] Portanto, educar na fé para lembrar do pecado é comprometer a pessoa com o outro. Somente com a capacidade de lembrar o que se faz de mal com o objetivo de se superar é que a pessoa compreenderá a misericórdia de Deus e saberá perdoar as ofensas, como pedimos tantas vezes no Pai-Nosso: “Perdoa nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos ofendeu”.
- Saber esquecer.
Depois que comecei a frequentar novamente a comunidade cristã e a catequese, aos 15 anos de idade, numa experiência rica de formação na fé com uma religiosa, comecei, então a esquecer de forma sadia meu rancor contra Deus e a me perdoar. É preciso saber se perdoar para entender a misericórdia divina que esquece os males. Se não, jamais faremos a experiência do perdão.
Nesse sentido, a parábola dos “dois irmãos”[2] (Lc 15,11-32) pode nos ajudar a entender com melhor precisão a atitude do filho mais novo, que, depois de gastar tudo o que tinha e passar fome, lembra-se da figura paterna e retorna; a atitude do filho mais velho, que acusa o irmão mais novo e não perdoa; a atitude do pai, que escuta a confissão do filho que retorna e perdoa e faz festa. Jesus responde assim aos publicanos e pecadores, aos fariseus e escribas, homens que o rejeitavam, mas buscavam um sentido para crer.
O filho mais novo da parábola busca na liberdade saborear a vida até o extremo. Deixa tudo e sai de casa. Essa liberdade extrema acaba por escravizá-lo e ele acaba cuidando de porcos e comendo com eles. Bento XVI diz que “o homem que entende a liberdade como radical arbitrariedade da própria vontade e do próprio caminho vive na mentira, pois o homem, por essência, faz parte de um convívio, a sua liberdade é uma liberdade compartilhada; por isso, uma falsa autonomia conduz à escravidão” (BENTO XVI, 2007, p. 181).
Quando o filho pródigo entra em si – lembrança – e reconhece o pecado, que na casa do pai está a verdadeira liberdade, então ele faz o processo de conversão e regressa. O pai, ao ver o filho que retorna, corre ao encontro e ouve atento sua confissão, cobre-o de beijos e entende seu caminho de conversão. Manda trazer a melhor roupa, porque ele havia perdido a graça da casa paterna – pecado. Devolve-lhe a dignidade com a sandália nova aos pés e o anel da aliança que se restaura de novo. Organiza a festa, banquete, onde a oferta e o oferente se apresentam como reconhecimento do amor misericordioso. O pai é aquele que não esquece o filho amado e sente compaixão, quer dizer, sente com ele a dor do pecado. O pai “prefere o remédio da misericórdia ao da severidade” (Misericordiae Vultus, n. 4).
O filho mais velho regressa do trabalho e encontra o ambiente de festa. Fica zangado e não entende como o pai foi capaz de perdoar os pecados daquele irmão que se fora, levando e gastando tudo numa vida desregrada. O pai lembra ao filho que tudo o que é seu é também dele (Lc 15,31). A relação entre Jesus e o Pai também é assim (Jo 17,10). O pai fala ao coração do filho, que estava irritado com a sua bondade. E joga na cara dele que nunca transgrediu nenhuma de suas leis. O pai recorda ao filho que viver na casa paterna é fundar uma relação de afeto, e não jurídica, e que seu irmão havia entendido isso, por isso havia retornado:
A misericórdia apresentada por Cristo na parábola do “filho pródigo” tem a característica interior do amor, que no Novo Testamento é chamado “ágape”. Esse amor é capaz de debruçar-se sobre todos os filhos pródigos, sobre qualquer miséria humana e, especialmente, sobre toda miséria moral, sobre o pecado. Quando isso acontece, aquele que é objeto da misericórdia não se sente humilhado, mas como que reencontrado e “revalorizado”. O pai manifesta-lhe alegria, antes de mais nada por ele ter sido “reencontrado” e por ter “voltado à vida”. Essa alegria indica um bem que não foi destruído: o filho, embora pródigo, não deixa de ser realmente filho de seu pai. Indica ainda um bem reencontrado: no caso do filho pródigo, o regresso à verdade sobre si próprio (Dives in Misericordia , n. 6).
Esta consideração a partir da parábola nos ajuda a entender que o ato de esquecer é também aliviar o peso de nossas lembranças e nossos juízos. É desarrumar nossa mala de viagem, para dar um exemplo, retirar tudo aquilo que está demais e que pesa, para reorganizar o conteúdo de nossa historia. Neste caso, o filho mais novo foi capaz de fazer este caminho e o mais velho não. Preferiu não esquecer nem reconhecer o caminho de conversão do irmão e deixou esmagadas no fundo da mala as coisas boas que ele trazia: amor, gratidão, flexibilidade, experiências, doação, alegria, humildade.
Jesus sabia esquecer o peso do pecado dos outros. Quando os fariseus e os escribas trouxeram a mulher pega em adultério, ele não se fixou no ato em si, não reforçou a acusação dos agressores, não condenou, mas buscou nas lembranças deles as próprias faltas que eles cometeram: “Quem não tiver pecado atire a primeira pedra” (Jo 8,1-11). Na sequência, ele se volta para a mulher e pergunta se alguém a havia condenado, e ela responde que não. Jesus a levanta e diz: “Vai e não peques mais” (Jo 8,11). É a mesma atitude do pai bondoso. Ele escuta a confissão, reconhece o caminho de conversão e perdoa.
Com Zaqueu (Lc 19,1-10) é a mesma atitude. O pequeno Zaqueu se esconde em meio às folhas da árvore. Não quer ser visto. O pecado, desde o relato do Gênesis, nos leva ao esconderijo, porém Deus vai ao encontro e pergunta: “Onde estás?” (Gn 5,9). Jesus também vai ao encontro de Zaqueu, para embaixo da árvore e diz: “Desce depressa! Hoje eu devo ficar na tua casa” (Lc 19,5b). Entrar na casa é entrar na intimidade da pessoa. Assim, recupera aquele homem e o engrandece, porque o perdão é grandeza.
Muitas vezes não sabemos nos perdoar e reconhecer a grandeza de ser perdoados, porque não conseguimos esquecer. Mesmo com repetidas confissões continuamos presos à culpa, porque nossa relação com Deus é demasiado jurídica. Por isso, a formação catequética precisa favorecer experiências do perdão, pois somente quem sente a misericórdia de Deus é capaz de uma verdadeira conversão.
É por isso mesmo que a Igreja professa e proclama a conversão. A conversão a Deus consiste sempre na descoberta da sua misericórdia, isto é, do amor que é “paciente e benigno” (1Cor 13,4), como o é o Criador e Pai; amor ao qual “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Cor 1,3) é fiel até as últimas consequências na história da Aliança com o homem, até a cruz, a morte e a ressurreição do seu Filho. A conversão a Deus é sempre fruto do retorno para junto desse Pai, “rico em misericórdia”.
O autêntico conhecimento do Deus da misericórdia, Deus do amor benigno, é a fonte constante e inexaurível de conversão, não somente como momentâneo ato interior, mas também como disposição permanente, como estado de espírito. Aqueles que assim chegam ao conhecimento de Deus, aqueles que assim o “vêem”, não podem viver de outro modo que não seja convertendo-se a ele continuamente. Passam a viver in statu conversionis, em estado de conversão; e é esse estado que constitui a característica mais profunda da peregrinação de todo homem sobre a terra in statu viatoris, em estado de peregrino. É evidente que a Igreja professa a misericórdia de Deus, revelada em Cristo crucificado e ressuscitado, não somente com as palavras do seu ensino, mas sobretudo com a pulsação mais profunda da vida de todo o Povo de Deus. Mediante esse testemunho de vida, a Igreja cumpre a sua missão própria como Povo de Deus, missão que participa da própria missão messiânica de Cristo e que, em certo sentido, a continua (Dives in Misericordia, n. 13).
Isso significa educar no sentido ético – valores –, e não ao formal jurídico, que facilmente se transgride. Assim, a pessoa saberá viver muito melhor o sentido do pecado não como uma carga que sufoca, mas como a possibilidade de lembrar e esquecer, sempre na medida do amor misericordioso de Deus.
- A força do perdão.
Quando entendi que Deus não é uma memória perversa que tudo guarda para me acusar, então comecei a entender o valor do perdão. Em Jesus nós aprendemos a contemplar o rosto misericordioso de Deus Pai. E na Igreja, com o sacramento da reconciliação, entendi o significado da harmonia pessoal e social.
A palavra perdão vem do grego aphesis, do verbo aphiemi, que significa jogar fora, mandar embora, soltar, libertar. Quem perdoa liberta o outro da culpa e quem se perdoa se desfaz do pecado. Na experiência da reconciliação a pessoa restabelece a paz interior e exterior (GRÜN, 2005, p. 9-10).
O sacramento da Penitência ou Reconciliação aplana o caminho a cada um dos homens, mesmo quando sobrecarregados com graves culpas. Neste Sacramento todos os homens podem experimentar de modo singular a misericórdia, isto é, aquele amor que é mais forte do que o pecado. Convém que este tema fundamental, apesar de já tratado na Encíclica Redemptor Hominis, seja abordado mais uma vez (Dives in Misericordia, n. 13).
O perdão gera a alegria, a consciência de si, educa a descer do orgulho e cura as feridas mais profundas do núcleo espiritual. O perdão, então, transcende a culpa do pecado. O próprio Jesus não pede sacrifícios, nem jejuns, nem anulações, mas simplesmente que a pessoa seja capaz de se superar. O pecado sufoca, o perdão liberta, faz a pessoa levantar voo. O pecado deixa o ser humano rodopiando ao redor de si sem poder voar. O perdão ajuda a equilibrar o sentido de liberdade e responsabilidade dos sentimentos e ações que nos fazem voar. Como diz o Papa Francisco, quando “a misericórdia de Deus não é uma ideia abstrata, mas uma realidade concreta que revela o amor de um pai e de uma mãe que se comovem pelo próprio filho até o mais intimo das suas vísceras” (Misericordiae Vultus, n. 6).
Saber perdoar é ainda a superação para que não vivamos a psicologia do urubu,[3] ou seja, a busca da carniça para dela alimentar-se. O pecado nos faz comer sempre o que já está podre, o que pode sufocar e matar. Por outro lado, a psicologia do beija-flor nos coloca na dimensão do perdão e do saber saborear a graça da misericórdia. O beija-flor não procura a carniça, mas o mel das flores. Assim também as políticas do perdão na ação catequética não podem se fixar na decomposição da vida, mas na capacidade de desenvolver a beleza interior do ser humano, ser sal, para não deixar apodrecer; ser luz para aquecer e iluminar o caminho de conversão.
A catequese como processo iniciático para a política do perdão não pode ensinar a fazer listas de pecados à luz dos dez mandamentos, mas a entender o núcleo da espiritualidade cristã, ou seja, saber seguir Jesus nos interditos da vida cotidiana. O catequista deve ser o exemplo desse seguimento.
Para facilitar ainda mais a compreensão do perdão, é preciso ir novamente à Bíblia. Ali encontramos o texto do cego Bartimeu para compreender que “o que movia Jesus era a misericórdia” (Mc 10,46-52) (Misericordiae Vultus, n. 8). Jesus sai da cidade de Jericó. Uma grande multidão o seguia. À beira da estrada um homem, ao saber que Jesus passava, começou a gritar: “Filho de Davi, tem piedade de mim” (Mc 10,45b). Era um cego. Ao escutar os gritos, Jesus para e pede que ele venha ao seu encontro. Bartimeu, num ato impulsivo, arrancou o manto, deu um pulo e foi ao encontro de Jesus. São gestos sincrônicos, que definem muito bem a politica do perdão. É preciso deixar o manto que cobre nossos pecados, nossa segurança e nos condiciona a estar à margem. O colocar-se de pé é a atitude da pessoa ressuscitada. O sair ao encontro é o caminho da conversão e da verdadeira liberdade.
O Sacramento da Reconciliação, confissão, é exatamente a experiência de Bartimeu: “saber levantar e caminhar, viver neste mundo como novas pessoas” (GRÜN, 2005, p. 96). Contudo, faz-se urgente repensar a prática da confissão. Ninguém deveria se confessar por obrigação. Nem toda fragilidade humana é pecado mortal. Mais do que confissão, muitas pessoas precisam de um esclarecimento ou direção espiritual. Quando assumimos a culpa e a transportamos para o confessionário, estamos no campo meramente jurídico da relação com Deus; falta o caminho da conversão. O sentimento de culpa, como já disse, é danoso e sufocante. A culpa “consiste na negação de me ver e me aceitar do jeito que sou” (Ibid., p. 105). O não querer ver não ajuda a reconhecer o perdão, mas a negá-lo. No entanto, quando sou capaz de aceitar minha culpa, então começo, como o filho pródigo, o caminho de conversão e retorno à casa do pai. A confusão está na culpa e na desculpa, quer dizer, “quando culpamos a nós mesmos, nos dilaceramos com sentimentos de culpa e nos autopunimos com eles (Ibid., p. 109). Isso impede o senso de autocritica. Por outro lado, “quando nos desculpamos e procuro mil razões para não ser culpado e tento me justificar” (Ibid., p. 110), então fujo do meu núcleo interior e não faço o caminho de conversão.
Quando assumo que pequei, não transfiro para ninguém meus pecados, não escondo nada, e na confissão me reconcilio com meus sentimentos de culpa e aceito o perdão de Deus. Por isso é tão importante o rito da confissão: 1. Exame de consciência, sentir o que não está em harmonia; 2. Confessar, falar da culpa, do que me sufoca; 3. Absolvição, receber o toque das mãos do confessor como o gesto do pai bondoso que veste, coloca o anel no dedo, as sandálias nos pés e faz festa; 4. Agradecimento, participar da alegria do aconchego e saborear do banquete que o Pai prepara para o filho que retorna (Ibid., p. 119-122).
Esse ritual é fundamental para vivenciar o verdadeiro sentimento da misericórdia, pois “o perdão é a força que ressuscita para nova vida e infunde a coragem para olhar o futuro com esperança” (Misericordiae Vultus, n. 10). Por isso, caro catequista, não ensine os catequizandos a fazer lista de pecados, mas a saber diferenciar o sentido da liberdade fora da casa paterna e no interior dela. Saber que a culpa deve ajudar a reconhecer as fragilidades e o pecado para assumi-los no caminho da conversão. Há que ajudar o catequizando a compreender a grandeza do perdão de si e dos outros na experiência da misericórdia. Saber fazer memória afetiva dos pecados para esquecê-los na medida do amor. É isso que liberta a alma humana.
À guisa de conclusão
Não sei se este artigo ajudou a repensar a política do perdão como tínhamos proposto. Contudo, tive a intenção de proporcionar uma nova atitude diante do pecado. Não se trata de perder a noção do pecado, do rompimento com Deus e sua misericórdia, de esconder-se dele, mas de entender que pecar é algo que rompe o núcleo interior da espiritualidade, e não uma lista de acusações que se fazem ao confessor na tentativa de encontrar alívio para atos que ainda não foram perdoados no interior de si mesmo.
Para muitos, sobretudo crianças, a confissão é um sofrimento traumático, porque o confessor é mais juiz que presença do Senhor que acolhe e perdoa. Precisamos mudar essa realidade. Há pecados mortais que precisam do sacramento e há fragilidades que necessitam de uma ajuda espiritual e profissional mais profunda. Confundir ambas as realidades é perpetuar a culpa ou desculpar-se delas sem procurar as mediações de cura. Lembrando que a confissão é sacramento de cura, cuja “matéria remota do sacramento da Penitência não são propriamente os pecados, mas sua manifestação externa pelo penitente” (HORTAL, 2000, p. 143).
Então, fazer a experiência de ser perdoado significa que estamos num caminho de conversão, purificação, do fogo do amor de Deus que purifica, como dizia muito bem Santa Catarina de Gênova.
É importante observar que, na sua experiência mística, Catarina jamais tem revelações específicas sobre o purgatório ou sobre as almas que ali estão a purificar-se. Todavia, nos escritos inspirados pela nossa santa, é um elemento central, e o modo de o descrever tem características originais em relação à sua época. O primeiro traço original diz respeito ao “lugar” da purificação das almas. No seu tempo, ele era representado principalmente com o recurso a imagens ligadas ao espaço: pensava-se num certo espaço, onde se encontraria o purgatório. Em Catarina, ao contrário, o purgatório não é apresentado como um elemento da paisagem das vísceras da terra: é um fogo não exterior, mas interior. Este é o purgatório, um fogo interior. A santa fala do caminho de purificação da alma, rumo à plena comunhão com Deus, a partir da própria experiência de profunda dor pelos pecados cometidos, em relação ao amor infinito de Deus (BENTO XVI, 12 jan. 2011).
É nesse ato de purificação, purgatório, o cuidar e comer com os porcos, como na parábola dos “dois irmãos”, que vamos rever nossas ações e fazer o caminho da conversão à casa do pai. É a experiência de ser cada dia mais puro, mais humano e mais santo.
Bibliografia
BENTO XVI. Jesus de Nazaré, do batismo no Jordão à transfiguração. 1ª. Parte. São Paulo: Planeta do Brasil, 2007.
BENTO XVI. Catequese sobre as santas mulheres do cristianismo. Disponível em: <www.vatican.va>. Consulta em: 12 jan. 2011.
FRANCISCO. Misericordiae Vultus, bula de proclamação do Jubileu da Misericórdia. São Paulo: Paulus/Loyola, 2015.
FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Loyola/Paulus, 2013.
GRÜN, Anselm. Perdoa a ti mesmo. Tradução de Márcia Neumann. Petrópolis: Vozes, 2005.
HORTAL, Jesús. Os sacramentos da Igreja na sua dimensão canônico-pastoral. São Paulo: Loyola, 2000.
JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Dives in Misericordia, sobre a Misericórdia Divina. Disponível em: <www.vatican.va>.
SBERGA, Adair Aparecida. A formação da pessoa em Edith Stein: um processo de conhecimento do núcleo interior. São Paulo: Paulus, 2014.
[1] O conceito de Núcleo, “alma da alma” é próprio de Edith Stein. Para ela, filósofa, o núcleo é o “centro da alma que distingue o ser humano. O que determina a dimensão mais profunda das potências, atos e hábitos” (SBERGA, 2014, p. 30, 92).
[2] Esta parábola é mais conhecida como a “parábola do filho pródigo” como também a do “do Pai bondoso”. Contudo, pode ser compreendida na linha dos textos bíblicos com dois irmãos, desde o Antigo Testamento com Caim e Abel, passando por Isaú e Jacó. Em Mateus 21,28-32, aparece outra parábola que envolve dois irmãos, o obediente e o desobediente. No caso de Lucas, Jesus narra a parábola para dois grupos: os publicanos e pecadores, os fariseus e os escribas. São grupos contrários a eles. A parábola dos “dois irmãos” surge como resposta a estes grupos (Cf. BENTO XVI, 2007, p. 179-180).
[3] Aproprio-me deste conceito desenvolvido no Instituto Persona sob a orientação da Dra. Maria do Carmo Valente para explicar o núcleo humano onde acontece as opções de espiritualidade mais profunda.
João da Silva Mendonça Filho, sdb
Padre salesiano, licenciado em Filosofia, mestre em Educação, com especialização em formação religiosa e presbiteral pela Pontifícia Universidade Salesiana de Roma. É também pós-graduado em Comunicação pelo SEPAC-PUC-SP e pós-graduado em Educação Sexual pela UNISAL-SP. Autor de diversos livros e artigos para revistas especializadas. Atualmente é pároco e diretor de colégio. E-mail: [email protected].