Preparar-se para a vinda do Senhor
Introdução geral
Preparar o caminho do Senhor é o centro do anúncio de João Batista. A conversão exige empenho pessoal, mas ela é impulsionada por Deus, que é capaz de realizar em nós a mais profunda transformação. Essa transformação tem como ponto central a vivência sempre crescente do amor.
Comentário dos textos bíblicos
- Evangelho (Lc 3,1-6)
O texto do evangelho tematiza a missão do Batista. A referência à história profana, com a qual a narrativa se inicia (v. 1-2a), não é sem significado. A história não é estranha ao agir de Deus. Deus age nela e através dela. Considerando-a atentamente, portanto, pode-se destrinchar, de modo mais ou menos evidente, a providência e o domínio absoluto de Deus. A história humana, porém, por si mesma é ambígua e só pode ser avaliada na profundidade à luz de Deus. Por isso, Deus envia sua Palavra (v. 2b). João Batista é apresentado como um profeta, a quem foi dirigida a Palavra de Deus (cf. Os 1,1). É essa, e só essa Palavra que ele transmitirá.
O conteúdo dessa Palavra é o “batismo de conversão para a remissão dos pecados” (v. 3). Trata-se de uma imersão ritual para significar a prontidão para a conversão (cf. v. 8.10-14), para a reestruturação da vida conforme as exigências de Deus. Converter-se não é somente mudar de rumo, mas andar em sentido contrário ao escolhido até então, retornando ao Senhor do qual se estava afastado. Como fruto da conversão, está a remissão dos pecados. A “conversão para a remissão dos pecados” é uma frase muito utilizada por Lucas para falar da obra salvífica de Jesus; é um modo sintético de apresentá-la (cf. Lc 24,47; At 2,38; 10,43; 26,17-18). O ministério de João Batista prepara a obra de Jesus, predispondo seus ouvintes a acolhê-la.
A missão de preparar o caminho do Senhor (v. 4; cf. 1,16-17.76-77) é apresentada pela citação de Isaías. Em Is 40,3-5, o Senhor virá para fazer retornar os judeus de Babilônia à sua terra. Ele mesmo os conduzirá e sua vinda coincide com a salvação esperada. Para isso, é necessário abrir os acessos, retirar os obstáculos (v. 4b-5). O caminho a ser preparado é o próprio coração, a própria consciência, a própria vida. Isso anuncia João Batista, à luz do que Deus lhe falou. Onde alguém ouve a Palavra de Deus e se deixa interpelar por ela, ali começa uma missão salvífica para este mundo. Por meio dessa pessoa, Deus opera.
A Palavra de Deus é proclamada no deserto (v. 4a). O deserto é lugar de solidão, de instabilidade, de falta de segurança. É onde, vazia de tudo, a pessoa só pode contar com o auxílio de Deus. Ao mesmo tempo (e por esse fato), é lugar do encontro “face a face” com Deus, sem subterfúgios. É o lugar onde Deus fala e, no silêncio, pode-se fazer ouvir. A partir desse encontro pessoal, é lugar do início de nova relação de comunhão (cf. Os 2,16).
A mensagem de João Batista é, na perspectiva de Lucas, endereçada não somente aos judeus, mas também aos pagãos (v. 6). “Ver a salvação” é experimentá-la realmente; isso ocorre se o caminho foi preparado. A conversão e a consequente salvação são, assim, respectivamente, chamado e oferta de Deus a todo ser humano. Já não há nenhum privilégio religioso: judeus e pagãos estão na mesma condição de destinatários da salvação.
Advento é ir ao encontro do Senhor que vem como salvador, que pede e deseja nosso retorno a ele, para o encontrarmos no deserto da vida e, face a face, sempre de novo, entrarmos em comunhão com ele. É tempo de preparação do caminho de nossas consciências para o Senhor que veio, vem a cada momento e virá.
- I leitura (Br 5,1-9)
O texto de Br 5,1-9 pertence à quarta parte do livro de Baruc (4,5-5,9), que contém súplicas de Jerusalém a Deus pelo perdão e pela libertação dos exilados na Babilônia (4,5-29), às quais se seguem duas palavras proféticas que prometem a restauração da cidade santa (4,30-37; 5,1-9). O texto da liturgia de hoje corresponde à segunda palavra profética. São palavras de consolo, que descrevem a glória da Jerusalém restaurada e a volta jubilosa dos exilados.
A primeira parte do texto (v. 1-4) apresenta a mudança da sorte de Jerusalém (do exílio babilônico para a volta à terra). A transformação aparece primeiramente em duas imagens: tirar os sinais de luto e vestir os sinais da glória. Glória é uma realidade própria de Deus que transparece no mundo criado e na história: é a santidade de Deus tornada visível (cf. Sl 18/19,2: “os céus narram a glória de Deus”). Que Jerusalém se revestirá de glória significa, assim, que a santidade de Deus se manifestará tão plenamente na cidade eleita, que, por meio dela, será contemplado algo da santidade de Deus. Deus faz Jerusalém participar de sua própria santidade. Essa realidade é retomada na imagem do “manto de justiça”. Justiça, no Antigo Testamento, é, em última instância, a correspondência entre uma realidade e sua medida. Vestir o manto de justiça indica então que Israel corresponderá totalmente à medida que Deus tem para ele em seu desígnio, seu plano de salvação. Isso se concretizará na vivência dos mandamentos. Glória e justiça não serão fruto do empenho dos fiéis, mas exclusivamente dons de Deus (v. 1.2.4: “vem de Deus”).
Completa essa descrição a mudança de nome. O novo nome mostra em que se tornará a Jerusalém renovada: paz da justiça (relembrando o nome Jerusalém, que, em hebraico, contém em si a palavra shalôm, “paz”: yerushalaim) e glória da piedade (demonstrando a profunda veneração diante da majestade de Deus).
A segunda parte do texto descreve o retorno dos exilados (v. 5-7). Jerusalém é chamada a olhar para o oriente e ver sua população retornando. O retorno é marcado pela alegria (v. 5) e pela glória (v. 6). É Deus mesmo que prepara o caminho para que Israel possa voltar “com segurança e na glória de Deus” (v. 7). Deus é guia dos que retornam, como a nuvem luminosa o foi para o povo do êxodo (cf. Is 40,3-4; Ex 13,21-22).
A terceira parte (v. 8-9) indica que o caminho do retorno contará com a proteção de Deus, que aparece na imagem da sombra (cf. Sl 90/91,1) de árvores que, obedecendo ao Senhor, evitarão que os exilados sejam molestados pelo sol (v. 8). Isso se explica (v. 9) porque Deus conduzirá Israel. Quatro qualificativos marcam seu agir: de um lado, a alegria e a luz da glória (que retomam o início do texto) e, de outro, a misericórdia e a justiça que ele outorga.
O texto, anunciando assim a restauração do povo eleito, mostra que o grande protagonista é Deus. É ele quem realiza a salvação, e o faz de modo glorioso. Todo passado foi superado (v. 1.6); haverá somente júbilo. Os próprios atributos divinos (glória e justiça) serão dados a Jerusalém. Deus prepara o caminho, cria as condições e restaura Israel. Tudo se concentra na ação divina.
Sempre a obra de Deus em nossa vida é absoluta iniciativa e gratuidade sua. No evangelho de hoje, contudo, é posto em maior evidência que essa obra gratuita de Deus usa e exige a generosa cooperação da criatura agraciada. Embora tudo tenha iniciativa na ação de Deus, que, enviando sua Palavra a João, cria as condições para que a conversão se realize, o Batista deve, por sua pregação e pelo batismo, preparar os corações. Exige-se o empenho humano. O povo deve se converter e o pode fazer porque Deus está aberto a recebê-lo de novo.
- II leitura (Fl 1,4-6.8-11)
No início da carta aos Filipenses, são Paulo reza pela comunidade. O motivo de sua oração é a alegre constatação de que os filipenses têm colaborado fielmente na difusão do evangelho, desde que o acolheram (v. 5), seja por sua atividade missionária, seja pela ajuda material que deram a Paulo (cf. 4,15-16). Tal fato leva o Apóstolo à convicção de que o Senhor, que é fiel, não deixará cair no vazio o empenho até agora feito. Ele dará ainda a graça de perseverar até o fim, quando o Cristo consumar sua obra (o “dia de Cristo Jesus”), num crescendo que a levará à perfeição (v. 6).
Paulo invoca então o testemunho de Deus para afirmar sua estima pelos filipenses. Para com aqueles que se dedicam ao mesmo ideal da evangelização, Paulo nutre uma religiosa e profunda estima, que tem sua origem, seu modelo e seu motor no próprio coração de Jesus Cristo (v. 8). Sua prece (v. 4) concretiza-se, então, na súplica para que o amor que move a comunidade cresça sempre mais. Conhecimento e sensibilidade (v. 9) são duas características do amor que o impedem de ser simples afeição passageira e superficial. O amor deve ser iluminado pelo conhecimento e por delicado sentimento, que o façam a um só tempo reflexivo e cheio de ternura espiritual. Esse amor conduz ao discernimento, torna mais sutil a capacidade de avaliar e distinguir entre o bem e o mal (v. 10). Crescendo nesse amor cristão, os filipenses chegarão ao dia do Senhor “puros e irrepreensíveis”, ricos de frutos de santidade, de boas obras. Desse modo, chega à perfeição a obra que Deus iniciou (v. 6) e que é realizada por Cristo Jesus (v. 11).
A oração do Apóstolo desemboca, então, numa doxologia: tudo isso é para a glória e o louvor de Deus. A salvação final e a glorificação de Deus, realizadas por meio de Jesus Cristo, são a meta para a qual tendem os fiéis.
Colocado no segundo domingo do Advento, esse trecho da carta aos Filipenses indica como, vivendo em atitude de constante conversão, podemos preparar o caminho para o Senhor que vem (cf. evangelho).
III. Pistas para reflexão
- Como minha comunidade e cada um em particular estão contribuindo para a evangelização? Sei/sabemos considerar os desafios da história e iluminá-la com a Palavra do Senhor?
- Como crescer no amor, preparando assim nossa consciência para o Senhor, que deseja vir sempre mais plenamente em nossa vida? Estou consciente de que tudo é obra de Deus e, ao mesmo tempo, empenho sério de conversão?
- Procuro estar “face a face” com Deus, esvaziando-me de mim mesmo para acolher a ele, que deseja renovar sua glória e sua justiça também na minha vida?
Maria de Lourdes Corrêa Lima
Professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e do Instituto Superior de Teologia da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Doutora em Teologia (Bíblica) pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). É membro da Ordem das Virgens da Arquidiocese do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]