A oferta da vida como ação sagrada
Introdução geral
Os textos bíblicos da liturgia deste domingo apresentam o “servo de Deus” que entrega livremente a sua vida como sacrifício expiatório. A etimologia da palavra “sacrifício” indica uma “ação sagrada”, relacionada, portanto, com a realização da vontade divina. O “servo de Deus”, para o profeta Isaías Segundo, é o povo de Israel exilado na Babilônia. No meio do sofrimento, esse “servo” descobre a missão divina de levar sobre si as dores e transgressões de muitos e não somente de suas próprias faltas. Por meio do seu povo sofredor, Deus realiza seu desígnio de salvação para muitos outros povos (I leitura). As comunidades cristãs veem nesses textos a prefiguração de Jesus, o “servo sofredor” que veio ao mundo “não para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”, como exprime o Evangelho de Marcos. Os discípulos devem tomar consciência de que seguem um Messias antitriunfalista e, por isso, devem renunciar a toda ambição de poder e tornar-se servos uns dos outros (evangelho). Pela entrega de sua vida como sacrifício expiatório, Jesus tornou-se o único e eterno sacerdote, capaz de compadecer-se de nossas fraquezas, pois se fez solidário conosco em tudo, menos no pecado (II leitura). Podemos nos aproximar dele com toda a confiança, pois é fonte de eterna misericórdia e de abundantes graças.
Comentário dos textos bíblicos
- I leitura (Is 53,10-11): O sofrimento solidário
Esse pequeno texto de Isaías Segundo faz parte do quarto cântico do servo de Deus (52,13-53,12). Os autores elaboram nova teologia à luz da realidade dos exilados na Babilônia. Revelam o significado do sofrimento pelo qual passam os oprimidos. Deus os assumiu como o seu servo amado e deu-lhes uma missão muito especial. Todos vão testemunhar a incrível transformação pela qual Deus faz passar o seu “servo sofredor”. Até os opressores são obrigados a reconhecer. Eles diziam a respeito do servo: “Não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, nem formosura capaz de nos deleitar. Era desprezado e abandonado [...], familiarizado com o sofrimento, como pessoa de quem todos escondem o rosto [...]; não fazíamos caso nenhum dele. Nós o tínhamos como vítima do castigo, ferido por Deus e humilhado [...]”. Porém, esses mesmos vão exclamar admirados: “No entanto, eram nossos sofrimentos que ele levava sobre si, eram nossas dores que ele carregava” (53,2-4).
A palavra profética ilumina o sentido que está por trás dos acontecimentos. Deus se revela de modo surpreendente em cada contexto histórico. Quem poderia imaginar que um punhado de gente desprezada e abandonada se transformaria em sujeitos de redenção para muitos, até mesmo para seus opressores que se convertem? É da vontade divina que os pequeninos se tornem veículos de sua graça para o mundo. Essa consciência que vai crescendo no meio dos exilados, com a animação da profecia, enche-os de coragem e esperança. O sofrimento passa a ser concebido já não como castigo divino, mas como desdobramento da atitude de fidelidade à vontade divina. A pessoa justa sofre porque segue os desígnios de Deus e, assim, se contrapõe aos planos dos dominantes. Em vez de fazer o jogo dos vingativos e violentos, assume sobre si as transgressões e dores do povo. Livre e conscientemente, oferece sua vida em resgate da justiça para todos.
A atitude de fidelidade a Deus com todas as consequências faz do “servo sofredor” um vitorioso sobre a maldade do mundo. Não só isso. Porque ele oferece a sua vida como sacrifício expiatório, garantirá o triunfo do plano de Deus, que é a vida em plenitude para todos.
- Evangelho (Mc 10,35-45): Jesus, o servo sofredor
As comunidades cristãs primitivas enfrentaram, como acontece nas comunidades de hoje, diversos conflitos internos. Um deles referia-se à disputa de poder entre as lideranças. Competições, ciúme e inveja se manifestam também entre os cristãos. São manifestações que contradizem o ensinamento e a prática de Jesus. Por isso, um dos objetivos do Evangelho de Marcos é “voltar às fontes” originais da fé em Jesus Cristo. Seus autores procuram recuperar a memória de Jesus de Nazaré a fim de que os cristãos permaneçam fiéis ao seu projeto e não se deixem contaminar pela ideologia de poder. Já se passaram aproximadamente 40 anos após a morte e ressurreição de Jesus. A maioria das testemunhas oculares de Jesus histórico já morreu. A segunda geração de cristãos, diante dos novos desafios, necessita de orientações sólidas. Para isso, nada melhor do que ver e ouvir de novo o que Jesus fez e disse.
O Evangelho de Marcos concebe a viagem de Jesus com seus discípulos – da Galileia até Jerusalém (8,22-10,52) – como um caminho pedagógico. Nessa viagem, Jesus se preocupa, de maneira especial, em abrir os olhos dos discípulos para que compreendam que tipo de Messias ele é. Não basta confessar publicamente que Jesus é o Cristo, como fez Pedro em nome de todos (8,29). É necessário superar a ideia de que o Messias seria um líder poderoso prestes a manifestar domínio e glória. De fato, o episódio imediatamente anterior ao texto deste domingo revela que os discípulos carregam a pretensão de tirar proveito do poder que Jesus conquistaria ao entrar na capital. Tiago e João lhe pedem encarecidamente que sejam distinguidos dos demais e possam sentar um à direita e outro à esquerda de Jesus em sua glória. Os demais discípulos ficam indignados com os dois, numa demonstração de divisão interna pela disputa de poder. Jesus os chama e, com paciência e misericórdia, mostra as atitudes que devem ser renunciadas e as que devem ser praticadas pelos seus verdadeiros seguidores.
Há um jeito de ser que caracteriza os cristãos, totalmente diferente do adotado pelos grandes e importantes deste mundo: enquanto estes dominam as nações, os discípulos devem fazer o contrário: “Aquele que quiser ser grande seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós seja o servo de todos”. Os critérios de Jesus subvertem os valores apregoados pela ideologia oficial. Seus critérios são os do reino de Deus. Somente pelo serviço abnegado de uns aos outros é que se estabelecem as relações sociais de justiça, paz e fraternidade.
Os discípulos ainda não conseguem captar o sentido das palavras de Jesus. Não conseguem imaginar um Messias sem honra e sem privilégios. Como poderiam seguir um sujeito que escolhe ser servo quando poderia ser rei? Jesus não desiste: nessa caminhada pedagógica, anuncia por três vezes que o Messias deverá sofrer e ser morto; adverte-os de que, para segui-lo, é necessário carregar a cruz. Seus ensinamentos são autenticados pelo testemunho concreto de sua vida: “O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”. Constata-se aqui íntima relação com o “servo sofredor” do profeta Isaías Segundo, conforme a primeira leitura da liturgia deste domingo. Jesus assume sua missão de fidelidade ao plano de salvação de Deus, entregando livremente sua vida. Abandonado e desprezado até pelos seus discípulos, doa-se por inteiro como vítima expiatória. Ele nos resgatou da morte para a vida.
As comunidades de Marcos e as comunidades de hoje são convidadas a analisar suas relações internas à luz do ensinamento e do testemunho de Jesus. Não há argumentos que possam justificar atitudes de superioridade de uns sobre os outros. As funções ou cargos necessários para dinamizar a evangelização não podem ser usados para benefícios e privilégios pessoais. No seguimento de Jesus não há lugar para “grandes”, e sim para “servidores”; não há lugar para “primeiros”, e sim para “servos de todos”.
- II leitura (Hb 4,14-16): Jesus solidário com nossas fraquezas
O texto de Hebreus aprofunda o tema do sacerdócio de Jesus Cristo. Os interlocutores certamente conhecem o sistema sacerdotal do judaísmo, em que o sumo sacerdote exercia a função de mediador entre Deus e a comunidade, entrando uma vez por ano no Santo dos Santos (o lugar mais sagrado do templo de Jerusalém) para realizar o rito de purificação dos pecados em nome de todo o povo. Agora é Jesus o único mediador entre Deus e a humanidade. Já não há necessidade de ofertas e sacrifícios nem no Templo nem em qualquer outro lugar. Jesus mesmo se ofereceu em sacrifício, de uma vez por todas, como expiação por todos os nossos pecados. Ele veio inaugurar a nova e definitiva aliança.
Com sua ascensão, Jesus atravessou os céus e encontra-se junto de Deus Pai, onde exerce o seu sacerdócio eterno em favor de toda a humanidade. Tendo assumido a condição humana, experimentou no próprio corpo os limites e fraquezas inerentes a cada pessoa. Em tudo se fez igual a nós, menos no pecado. Fez-se solidário com os nossos sofrimentos até a morte. Foi incompreendido, perseguido, maltratado, abandonado e condenado como um marginal desprezível. Como “servo sofredor”, carregou sobre si as dores da humanidade, garantindo a redenção a todos, também aos que o crucificaram. Ora, se Jesus foi tão radicalmente solidário com os seres humanos, cada um de nós pode aproximar-se dele sem nenhum receio, com total confiança. Ele nos compreende perfeitamente e sabe compadecer-se de nossas fraquezas. É a fonte de graças e pleno de misericórdia. Seu sacerdócio é permanente e eficaz.
Os autores da carta aos Hebreus transmitem às comunidades cristãs, formadas principalmente por judeus convertidos, a convicção de que estão vivendo novo tempo. Por isso, mesmo em situação de sofrimento, devem permanecer firmes na profissão de fé e aproximar-se de Jesus com toda a confiança para receber a ajuda oportuna. Os cristãos podem caminhar na certeza do amor sem limites de Deus, revelado no sacrifício (= ação sagrada) expiatório de Jesus.
III. Pistas para reflexão
– Somos servos e servas de Deus. O povo de Israel, no exílio da Babilônia, animado pela ação profética, descobre sua vocação de ser “servo de Deus”. O sofrimento em que se encontra já não é motivo de desânimo ou tristeza. Assumido livremente numa nova dimensão de fé, torna-se o meio pelo qual o povo percebe a presença amorosa de Deus, que lhe oferece uma missão especial: carregar as dores e as transgressões do mundo. Por meio do seu “servo sofredor”, Deus irradia sua misericórdia e manifesta sua salvação a toda a humanidade. Com base nessa “teologia do servo sofredor”, podemos refletir sobre como Deus se revela hoje por meio das pessoas excluídas.
– Seguir Jesus com sinceridade. O evangelho de hoje chama a atenção para as influências que as ideologias de poder podem exercer sobre nós. Seguir Jesus é renunciar à busca de fama e de prestígio e tornar-se servidor. Rompendo com toda forma de poder e assumindo a condição de servo, Jesus nos resgatou para a vida e abriu o caminho para a sociedade justa e fraterna. Nossa prática cotidiana corresponde ao testemunho de Jesus?
– Jesus fez-se solidário conosco. Ele conhece nossas fraquezas. Podemos contar sempre com sua misericórdia. Ele é o único e eterno sacerdote que se oferece para que tenhamos vida em plenitude. A carta aos Hebreus nos alerta: “Permaneçamos firmes na profissão de fé”. Podemos caminhar com segurança nos passos de Jesus, oferecendo a nossa vida, com liberdade e consciência, na prática do amor e da justiça.
Celso Loraschi
Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo, professor de Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos na Faculdade Católica de Santa Catarina (Facasc) e assessor do Cebi, SC. E-mail: [email protected]