Publicado em maio-junho de 2014 - ano 55 - número 296
O mistério e o cotidiano na poesia de Adélia Prado
Por Mônica Baptista Campos
A poesia de Adélia Prado é um convite para adentrarmos na dimensão do mistério tremendum e fascinans (algo que vai além das realidades deste mundo e contém em si algo de maravilhoso e inefável, que causa estupor) e, ao mesmo tempo, insere-nos no universo do cotidiano, dando sentido e significado às coisas simples da vida…
Introdução
O tema da mística e da espiritualidade tem retornado à pesquisa acadêmica e também à vida cotidiana – nas conversas entre amigos, nos livros de autoajuda, no intercâmbio e diálogo entre as religiões – e vem interpelando a teologia. No atual momento/estágio da sociedade secularizada, o discurso da dogmática parece cada vez mais inadequado para responder às demandas de sentido que o ser humano necessita e busca. As mudanças realizadas nos últimos tempos são significativas e não são comparáveis a nenhum outro período histórico. A comunicação em tempo real, a cibernética, a biotecnologia, a revolução feminista, a robótica, a física quântica, a inteligência artificial, entre outros, são fenômenos que comportam mudanças profundas nas estruturas do pensamento ocidental. Vários autores de diversas áreas do saber consideram que o dinamismo da vida nos põe diante de um novo paradigma de mundo.
Em resposta a essas mudanças, alguns teólogos e teólogas vêm desenvolvendo pesquisas que trabalham com uma perspectiva interdisciplinar: teologia e psicologia, teologia e bioética, teologia e literatura, entre outras. Nesse sentido, este artigo se propõe ser um ensaio místico e poético da obra de Adélia Prado, com perspectiva teológica.
1. Apresentando Adélia Prado
Adélia Luzia Prado Freitas nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, no dia 13 de dezembro de 1935. O mistério, o erotismo e o cotidiano estão constantemente presentes em sua obra. A morte também costuma frequentar a sua poética, e foi após o falecimento de sua mãe, em 1950, que ela escreveu seus primeiros versos, aos 15 anos de idade. A morte da mãe – a ausência e o sentimento de orfandade – parece ter aberto a veia pulsante da expressão poética na vida da autora. O sentimento de perda fez-se sentir em poesia, o afeto experimentado perpetua-se nas palavras, por meio do verbo.
Sua estreia poética no cenário brasileiro ocorre quando ela completa 40 anos de idade: “Quarenta anos: não quero faca nem queijo. Quero a fome”. A fome de um Deus que lhe diz em poesia: “eu só como palavras”. Fome de palavras e de poesia; fome de Deus. O primeiro livro Bagagem foi lançado em 1976 no Rio de Janeiro e teve como padrinho Carlos Drummond de Andrade, que lhe dedicou uma crônica no Jornal do Brasil: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis” (CDL n. 9, 2000, p. 5). A autora diz que a poesia que seria a base de seu primeiro livro também “veio” depois da morte de seu pai.
Seu segundo livro, publicado em 1978, O coração disparado, recebe o Prêmio Jabuti de poesia. A autora consagra-se no universo literário brasileiro. Um ano depois de receber o prêmio de melhor livro de poesia, Adélia lança-se em prosa com seu primeiro romance: Soltem os cachorros. A partir daí, a autora segue publicando tanto prosa quanto poesia: Cacos para um vitral, Terra de Santa Cruz, Os componentes da banda, O pelicano, A faca no peito. Passa por um tempo de silêncio poético, de aridez; tempo para O homem da mão seca, livro que marca sua volta ao cenário literário. “Desdobrável”, Adélia retoma a palavra de formas diversas: publica Manuscritos de Felipa – prosa –, os poemas de Oráculo de maio, lança dois CDs de poesia, O tom de Adélia e O sempre amor, publica também Filandras – volume com 43 textos –, a novela Quero minha mãe e o livro Quando eu era pequena, dedicado à literatura infantil. Seu livro mais recente é A duração do dia, lançado em 2010.
2. Epifania, revelação do real e inspiração
Adélia Prado experimenta a poesia como epifania, revelação do real e também um estado de graça: “a definição mais perfeita de poesia é: a revelação do real. Ela é uma abertura para o real […]. Ela me tira da cegueira” (CDL n. 9, 2000, p. 23).
Na perspectiva do crítico e poeta Octavio Paz, a poesia “é uma revelação da nossa condição original, qualquer que seja o sentido imediato e concreto das palavras do poema” (PAZ, 1982, p. 180). Paz marca diferença entre a revelação religiosa e a poética, quando diz que a primeira não constitui um ato original e sim sua interpretação, enquanto que a segunda é o abrir das fontes do ser, ato “pelo qual o homem se funda e se revela a si mesmo” (PAZ, 1982, p. 189). Abre-se então a possibilidade de assumir sua condição original e se recriar. Contudo, também afirma que a experiência poética e a religiosa têm uma origem em comum, muitas vezes são indistinguíveis e nos remetem à nossa alteridade constitutiva (ibid., p. 189).
Em entrevista, Adélia diz: “Para mim, experiência religiosa e experiência poética são uma coisa só” (CDL n. 9, 2000, p. 23). Na obra poética de Adélia é impossível distinguir as duas experiências. Sua poesia não é religiosa pelo tema, mas é de natureza religiosa porque expressa um fenômeno de unidade, de desvelamento do Real – a poesia tira-lhe da cegueira. A autora “sofre”[1] o poema como epifania, revelação, manifestação. A poesia é motivo de alegria e prazer; é puro júbilo.
Propomos entender “estado de graça” com dois significados. Primeiro, como gratuidade. Sem esforço, nem penas, nem merecimento – é grátis, é de graça. E como dom salvífico de Deus – que também é gratuito, mas tem um sentido relativo à doutrina cristã. A poeta é católica e está inserida em um contexto próprio e particular de religiosidade, sendo possível identificá-la a partir de sua poesia:
No entanto, repito, a poesia me salvará. / Por ela entendo a paixão / que Ele teve por nós, morrendo na cruz. / Ela me salvará, porque o roxo / das flores debruçado na cerca / perdoa a moça do seu feio corpo / Nela, a Virgem Maria e os santos consentem / no meu caminho apócrifo de entender a palavra / pelo seu reverso, captar a mensagem / pelo arauto, conforme sejam suas mãos e olhos. / Ela me salvará (PRADO, 1991, p. 61).
A graça, na doutrina cristã, é a salvação oferecida por Jesus Cristo. A poeta experimenta a salvação por meio da poesia – “por ela entendo a paixão que ele teve por nós” –, interpretando-a à luz de sua religiosidade – “Nela [poesia], a Virgem Maria e os santos consentem no meu caminho apócrifo de entender a palavra pelo seu reverso”. A poesia é o caminho apócrifo porque a palavra é entendida pelo reverso. O caminho teológico é então o caminho canônico, da linguagem lógica.
É Deus quem inspira a poesia de Adélia. “Quero enfear o poema / para te lançar em desespero, / em vão. / Escreve-o Quem me dita as palavras, / escreve-o por minha mão”. Ou ainda: “de vez em quando Deus me tira a poesia. / Olho pedra, vejo pedra mesmo”.
A poesia salva e a mística salva. Talvez por isso Adélia possa dizer no poema Cicatriz: “estão errados os teólogos / quando descrevem Deus em seus tratados”. E a poeta leva a fundo a salvação pela poesia: “Frigoríficos são horríveis, / mas devo poetizá-los / para que nada escape à redenção: / Frigoríficos do Jiboia / Carne fresca / preço joia”. Nenhum teólogo ou teóloga arriscaria dizer que a teologia salva.
3. A experiência do Mistério em poética
Adélia Prado, falando para uma plateia de psicanalistas (MAHFOUD, 1999, p. 17) diz que o Mistério “surge” quando se pergunta: “Para quê?” Esta pergunta comporta um sentido, e achar um sentido é achar uma finalidade. Perguntar é da índole do humano: “o que sou?”, “de onde vim?”, “para onde vou?”, “qual o sentido da vida?” São perguntas que a levam ao repouso, porque se verifica total impossibilidade de resposta; e este repouso “só pode ser feito no Mistério que está envolvendo pergunta e resposta” (MAHFOUD, 1999, p. 18). Para o teólogo Leonardo Boff, mistério não representa um enigma que pode ser decifrado, “mistério designa a dimensão de profundidade que se inscreve em cada pessoa, em cada ser e na totalidade da realidade, e que possui um caráter definitivamente indecifrável” (BETTO; BOFF, 2008, p. 35).
Para Adélia Prado, o discurso da poesia é o discurso da mística, na medida em que representam uma experiência profunda, de ordem interna, espiritual, que a toma pelos sentidos, mas transcende a experiência sensorial. Tanto na mística quanto na poética, a linguagem é própria e paradoxal: “[…] é quase impossível de ser dito. O paradoxo é para falar algo inefável” (MAHFOUD, 1999, p.19).
Inefável e indizível são palavras que bem expressam o sagrado, na perspectiva do fenomenólogo Rudolf Otto. Pela poesia de Adélia, escorrem expressões do mysterium tremendum e fascinans. Revelar é velar duas vezes, portanto não se trata do óbvio – a poesia não é óbvia –, mas “sim de um não sei quê / que se acha por ventura” (CRUZ, 2002, p. 57).
O poema Antes do nome expressa uma experiência singular com a palavra e com o mistério de Deus.
Não me importa a palavra, esta corriqueira. / Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, / os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”, / o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível / muleta que me apoia. / Quem entender a linguagem entende Deus / cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. / A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, / foi inventada para ser calada. / Em momentos de graça, infrequentíssimos, / se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. / Puro susto e terror (PRADO, 1991, p. 22).
A metalinguagem de Adélia expressa a relação entre sintaxe e classe de palavras (preposição, artigo, advérbio etc.) e também relaciona o mistério da linguagem a Deus – quem entender a linguagem entende Deus. Por isso a palavra é disfarce de uma coisa mais grave, de um mistério surdo-mudo que fascinou Adélia Prado e alguns outros como Manoel de Barros, Fernando Augusto Magno, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes.
Adélia quer a palavra que emerge do caos e de sítios escuros, a palavra que foi inventada para ser calada: “Se um dia puder, / nem escrevo um livro”. Essa, em momentos de graça, é possível apanhá-la com susto e terror. A experiência de “susto e terror” da autora com a palavra/linguagem/sintaxe parece semelhante à experiência do mysterium tremendum e fascinans ou o “mistério que faz tremer e seduz”, a que Rudolf Otto se refere no livro O sagrado. Otto estuda o elemento não racional que compõe a experiência do numinoso,[2] núcleo indizível e elemento básico da experiência religiosa. Convém lembrar que, para Adélia, experiência poética e religiosa são idênticas: “Poesia sois Vós, ó Deus. / Eu busco Vos servir”. É possível então captar por meio dos versos da poeta alguns aspectos do numinoso, do sagrado, que se desvelam em rimas, ritmos e tempos. Poéticos.
A experiência do tremendum (arrepiante), do temor e tremor se encontra num estágio elevado da religião – profundidade e interioridade do sentimento religioso. A experiência do sagrado antecede todo e qualquer conceito de Deus. Em O homem humano, Adélia expressa: “Ó Deus, ainda assim não é sem temor que Te amo, / nem sem medo”. O título da poesia faz conexão com a brutal diferença entre o humano e o numinoso que desperta o sentimento do tremendum. Em outro poema, Apelação, a autora faz referência à poesia O homem humano, marcando a diferença e distância entre humano e divino: “Mas Deus nos perdoará, / Ele sabe o que fez: ‘homem humano’. / A boca que come e mentiu come Seu Corpo Santo”. O ser humano é criatura de Deus.
O numinoso desperta o sentimento de criatura. Para Otto, o saber-se criatura é qualitativamente diferente de qualquer sentimento de dependência: “o sentimento subjetivo de ‘dependência absoluta’ pressupõe uma sensação de ‘superioridade’ (e inacessibilidade) absoluta” do numinoso. Para Adélia, saber-se criatura é uma experiência de paz e descanso: “as coisas que ficam se digladiando dentro de mim, encontram a paz. A coisa que mais descansa é a gente ser criatura, por isso a gente tem tanta saudade de pai e mãe”.
Embora identifique o sentimento de criatura com o de filiação/orfandade (saudade de pai e mãe), Adélia sintoniza com a diferença proposta por Otto quando expressa outro tipo de medo, o “medo remediável” que pede a Deus na poesia Orfandade.
Meu Deus, / me dá cinco anos. / Me dá um pé de fedegoso com formiga preta, / me dá um Natal e sua véspera, / e o ressoar das pessoas no quartinho. / Me dá a neguinha Fia pra eu brincar, / me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe. / Me dá minha mãe, a alegria sã e o medo remediável, / me dá a mão, me cura de ser grande, / Ó meu Deus, meu pai, / meu pai (PRADO, 1991, p. 14).
Ressaltamos o “medo remediável” no poema Orfandade, diferente do sentimento experimentado no Antes do nome (mysterium tremendum) – “puro susto e terror”. Para Otto, a reação de “temer” o numinoso é algo bem diferente do sentimento de temor que estamos acostumados a sentir naturalmente. Ele expressa em hebraico hid’dish, que significa “santificar”: “santificar algo em seu coração” quer dizer distingui-lo por sentimentos de receio peculiar, que não deve ser confundido com outros receios, significa valorizá-lo pela categoria do numinoso. Em Duas maneiras, mais indicação da experiência do aspecto tremendum: “Deus me olha e me causa terror”. Inacessibilidade absoluta do sagrado, que não se esgota só neste aspecto; desdobra-se em outro, o majestas: “o aspecto majestas pode ficar vivamente preservado quando o primeiro aspecto, da inacessibilidade, passa para o segundo plano” (OTTO, 2007, p. 53).
Ainda caracterizando o aspecto tremendum, Otto também descreve a reação ao numinoso como um sentimento de “ira de Deus”, que ele identifica como presente nos textos bíblicos do Antigo Testamento. No poema Disritmia, Adélia expressa: “o que entendo de Deus é sua ira. / Não tenho outra maneira de dizer”.
Introduzindo o aspecto majestas, Otto o denomina avassalador. É aqui que se evidencia o sentimento de criatura. É encontrado em “certas formas de mística” (OTTO, 2007, p. 52) em que há uma depreciação de si mesmo, uma sensação de ser pó e cinza diante de uma realidade totalmente outra e transcendente. É o aspecto majestas, da majestade do numinoso que imprime no ser humano a sensação do nada. Eu, nada; Tu, tudo! A pessoa fica pobre e humilde. No poema Noite feliz, Adélia escreve “sou miserável, / um monte de palha seca”. Em A sagrada face, ela assim se expressa: “Então é este o esplendor, […] / Esta doçura nova me empobrece […] / Pobre e desvalida entrego-me ao que seja / esta força de perdão e descanso”. A entrega da “pobre e desvalida” a esta experiência avassaladora. O sentimento de ser criatura como citado pela poeta – que se manifesta no aspecto majestas – é motivo de repouso, de conforto. “O nosso descanso é esse, é ter alguém maior que nós. Dá muito descanso quando você encontra aquilo que você pode adorar”. E a majestade se torna adorável, fascinante e sedutora.
O majestas é a qualidade do numinoso em que se revela o aspecto distanciador; contudo, a experiência do numinoso também desperta outro sentimento: o fascinans. Fascinante, sedutor, encantador, inebriante. O que apavora, atrai. É tipicamente uma experiência de paradoxo. Paralelos em conceitos racionais que esquematizam o fascinans são o amor, a misericórdia, a compaixão, a caridade e também formas de ações religiosas como reconciliações, súplicas, sacrifício e ação de graças. A necessidade de reconciliação, de “aplacar a ira” também é encontrada em Penitente: “E só Vos dei palavras, ó Deus santo. / Quando achei que exigíeis / cabeças sanguinolentas, / um punhado de versos aplacou-nos”. Para Adélia, “[…] Deus existe / e com um poder de sedução indizível”. O fascinans expressa a beleza do mistério que embriaga: “deve ser assim que se vive, / na embriaguez deste voo”. E no poema Em mãos explicitamente sente: “da cabeça aos pés de mim, / eu só quero saber do fascinoso mistério”. A força de atração também pode ser percebida pela pergunta em Duas horas da tarde no Brasil: “Quem me chama é Deus? / É. Seu olho centrífugo o que me puxa?”
4. O mistério e o cotidiano
A poesia de Adélia revela vestígios do mistério, do indizível, do transcendente. Entretanto, o cotidiano é o seu tema preferido.
Minha insistência no cotidiano é porque a gente só tem ele: é muito difícil a pessoa se dar conta de que todos nós só temos o cotidiano, que é absolutamente ordinário (ele não é extraordinário). E eu tenho absoluta convicção de que é atrás, através do cotidiano, que se revelam a metafísica e a beleza; já está na Criação, na nossa vida (PRADO, 2010).
Essa citação da autora revela sua percepção do mistério como algo constantemente presente na vida humana. O cotidiano é um grande tesouro – acessível a todo ser humano – e a arte permite revelar o transcendente na vida cotidiana. Adélia expressa a capacidade de o cotidiano gerar experiências de “admiração” e de encantamento, de se ver a poesia do real.
A experiência poética no cotidiano é exemplificada quando passamos por algo que nos é habitual e isso nos causa algum espanto e admiração, “nunca tinha visto isso dessa forma”. Adélia diz que esse é um momento de dar graças, estamos tendo uma experiência poética e também religiosa, pois nos liga a um centro de significação e sentido. A poeta pode ser considerada autêntica hermeneuta do cotidiano.
Adélia se sente afetada pela cena do dia a dia, reconhece no tema do cotidiano o lugar especial da sua expressão poética. Assim, um simples ato conjugal – preparar refeição – se situa como um sinal de amor. Adélia expressa o sentimento “oculto”, o “não falado”, de uma simples ação doméstica: “a coisa mais fina do mundo é o sentimento. / Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, / ela [mãe] falou comigo: / ‘Coitado, até essa hora no serviço pesado’. / Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente. / Não me falou em amor. / Essa palavra de luxo”. Sua poesia está, sobretudo, focalizada no âmbito da casa, no dia a dia de uma cidade do interior – “na minha cidade, nos domingos de tarde, / as pessoas se põe na sombra com faca e laranjas” –, e por meio dessa realidade é que surge a consciência de estar-no-mundo. Expressa relações familiares como no poema Os tiranos: “Joaquim, meu tio, foi imperturbável ditador. / Só uma de minhas primas se atreveu a casar-se”. Sua poesia constantemente faz referência a pai e mãe, expressa saudade, desejos, angústias em meio ao trem que passa por Divinópolis – “foi quando o trem passou / em grande composição”.
Poetizar sobre o cotidiano é versar sobre a rotina, sobre o prosaico, o “pequeno”, o repetitivo. Ações simples adquirem “outros” significados como em O corpo humano: “embora ainda não seja santa de levitar / achei no escuro a bolsa de água quente”. O cotidiano é rico de simbolismo, como se dissesse “quem tem olhos para ver que veja!” A beleza do cotidiano é captada e reproduzida por meio da sua poesia.
A poesia de Adélia Prado consegue expressar a experiência grandiosa de Deus (mysterium tremendum e fascinans) sentida e percebida em cenas da vida cotidiana e prosaica. A sua atitude teologal é bem captada pelos constantes vocativos de seus poemas: “Os vocativos / são o princípio de toda poesia […] convoca-me a voz do amor, / até que eu responda / ó Deus, ó Pai”. Os vocativos também aludem à vocação, ao chamado e à resposta. A missão de Adélia é fazer poesia.
Poeta do mistério e hermeneuta do cotidiano, Adélia nos leva a experimentar os pequenos detalhes da vida como significativos, afinal “qualquer coisa é casa da poesia”. E em meio à rotina diária, aos afazeres domésticos, ainda pode dizer “tudo que eu sinto esbarra em Deus”. Pura mística. Pura poesia.
Bibliografia
BETTO, Frei; BOFF, L. Mística e espiritualidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
CRUZ, S. J. da. Obras completas. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
MAHFOUD, M.; MASSIMI, M. (Org.). Diante do mistério: psicologia e senso religioso. São Paulo: Loyola, 1999.
OTTO, R. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Tradução de Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007.
PAZ, O. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
PRADO, Adélia, Poesia Reunida. São Paulo: Siciliano, 1991
PRADO, A. A linguagem mística do cotidiano. Disponível em: <http://revistalingua-.uol.com.br/textos.asp?codigo=11654>. Acesso em: 5 jun. 2010.
[1] “Sofre” no sentido de um momento de passividade e não de sofrimento.
[2] A palavra numinoso é um neologismo utilizado pelo autor para falar do aspecto não racional na religião. Não pode ser explicado, tem um caráter inefável. O numinoso é uma característica essencial da religião, pois sem ele a religião perderia suas características. A palavra numem vem significar “divino, deidade”. Fenômeno originário. O fenômeno do numinoso pertence ao plano da vida e se expressa a partir de uma reação que desperta o sentimento de criatura.
Mônica Baptista Campos
Mônica Baptista Campos é professora da PUC-Rio, mestre em Teologia, bacharel em Comunicação Social (PUC-Rio), organizadora, junto com Lúcia Pedrosa-Pádua, do livro Santa Teresa: mística para nosso tempo. Ed. PUC-Rio; Ed. Reflexão. E-mail: [email protected]