DEUS PAI-MÃE CUIDA DE SUAS CRIATURAS
I. INTRODUÇÃO GERAL
As leituras deste domingo nos apontam para o amor de Deus que se manifesta em seu cuidado para com todas as criaturas. De maneira especial, o coração materno de Deus se volta para os seus filhos e filhas que se encontram em situação de sofrimento. A primeira leitura, tirada do livro do profeta Isaías Segundo, é dirigida aos israelitas que sofrem no exílio da Babilônia e se sentem abandonados até pelo próprio Deus. A segunda leitura, da primeira carta aos Coríntios, revela o sofrimento de Paulo originado por falsos acusadores. E o Evangelho de Mateus recolhe o sofrimento da comunidade cristã preocupada com sua sobrevivência. A Palavra de Deus vem iluminar o sentido dessas diversas situações com base na certeza do amor atento e fiel de Deus para com seus filhos e filhas. A Palavra nos é dada para que possamos entrar na dinâmica do Espírito de Deus que promove e defende a vida sem exclusão.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Is 49,14-15): A ternura de Deus
O grupo profético de Isaías Segundo (Is 40-55) atuou no meio dos israelitas exilados na Babilônia, ao redor do ano 550 a.C. O pequeno texto deste domingo nos informa do sentimento que tomava conta do espírito dos exilados. A situação parece caracterizar-se como “sem saída”. De fato, passaram-se já vários anos desde que foram arrancados de Judá, terra da qual sentem imensa saudade. O início do exílio aconteceu em 587 a.C., com a invasão do exército babilônico em Jerusalém e a consequente destruição da cidade e do Templo. O tempo vai passando e não há perspectivas para a volta. A tendência é deixar-se abater pelo desânimo. Sentem-se abandonados e esquecidos pelo próprio Deus.
Nestes momentos difíceis é que se percebe a importância do movimento profético. A profecia é dom de Deus. É palavra eficaz que não apenas denuncia as injustiças causadas pelos poderosos, mas, sobretudo, revela a solidariedade e o socorro de Deus aos sofredores. O movimento de Isaías Segundo (ou Dêutero-Isaías) faz ecoar o projeto de um “novo êxodo”. Assim como no passado Deus suscitou a organização dos escravos no Egito e os conduziu à terra da liberdade, também suscita agora a possibilidade da libertação dos exilados. O antigo êxodo originou o povo de Israel, com o qual Deus fez aliança, comprometendo-se a defendê-lo e amá-lo. Apesar de frequentemente o povo eleito romper o pacto sagrado, Deus jamais quebra a aliança. Ele é fiel, apesar de ser rejeitado. Ele ama, apesar de ser abandonado. Ele vê o sofrimento de seu povo, ouve o seu clamor, conhece as suas dores e desce para libertá-lo (Ex 3,7-10).
Os exilados, conforme anuncia o profeta, estão enganados ao dizerem que Deus os abandonou. Devem refazer a sua teologia. Com imagens tiradas do cotidiano de uma família, Deus se revela como a mãe que não consegue esquecer-se dos filhinhos que ela amamentou ou deixar de ter ternura pelo fruto de suas entranhas. E, se tal mulher existisse, Deus Pai-Mãe [f1] jamais esqueceria nem abandonaria os seus filhos.
2. II leitura (1Cor 4,1-5): A luz que vem do Senhor
Os quatro primeiros capítulos da primeira carta aos Coríntios retratam as divisões existentes na comunidade cristã. Havia grupos diversos, formados por meio da adesão a líderes como Apolo, Paulo e Pedro; até Jesus Cristo era considerado como um líder entre os outros. As discussões provavelmente giravam em torno de qual desses líderes, em suas pregações, manifestavam maior sabedoria e eloquência. Paulo era amado por muitos e criticado por outros. Causava-lhe sofrimento o fato de cristãos se sentirem atraídos pelos anunciadores e não pelo anunciado: Jesus Cristo e seu evangelho. Por isso, advertiu-os de que “ninguém pode colocar outro fundamento diferente daquele que foi posto: Jesus Cristo”. E, falando a respeito da obra de cada um dos evangelizadores, ressaltou que “será descoberta pelo fogo; o fogo provará o que vale o trabalho de cada um” (1Cor 3,11.13).
No texto deste domingo, Paulo ensina que a comunidade cristã deve acolher os evangelizadores como “simples operários de Cristo e administradores dos mistérios de Deus”. Sendo julgado em comparação com outros pregadores, Paulo comporta-se com coerência e autenticidade. Sua consciência de nada o acusa, mas nem por isso se sente justificado. O verdadeiro julgamento vem do Senhor. Ele, a luz na qual transparece toda a verdade, põe às claras o que se encontra nas trevas. Toda intenção que se encontra no íntimo de cada pessoa será revelada um dia.
Paulo, como operário de Cristo e bom administrador dos mistérios de Deus, não busca projetar a si próprio. Convicto da missão que recebeu do Senhor, está disposto a ser fiel até o fim, fundamentado não na sabedoria humana, e sim na luz do Senhor. É admirável constatar em Paulo sua capacidade de transformar todas as situações de conflito e sofrimento em oportunidades de renovar a confiança na graça e na bondade de Deus.
3. Evangelho (Mt 6,24-34): A providência divina
Este texto faz parte do “Sermão da Montanha” (Mt 5-7). A comunidade de Mateus faz a memória dos ensinamentos de Jesus, refletindo sobre a própria realidade ao redor do ano 85. Constata-se que a ideologia dominante exerce influência também sobre os cristãos. O fetiche da riqueza exerce forte atração, mesmo no coração de pessoas pobres. É justo e necessário o trabalho em prol da vida digna de cada pessoa, da família e da comunidade. O evangelho, porém, alerta para a preocupação inquietante que tolhe a confiança na providência divina. Deus é bom e generoso. É o criador de todas as coisas e também é quem cuida de suas criaturas e as sustenta. Esta verdade está comprovada ao longo de toda a história da humanidade, conforme testemunham os relatos bíblicos. Mas também os relatos bíblicos testemunham que os seres humanos tendem a deixar-se arrastar pela cobiça, pela autossuficiência e pela ganância. Por causa disso, originaram-se muitos males no mundo, prejudicando a vida das pessoas e a harmonia de toda a criação.
Jesus, o Filho de Deus encarnado, participando da história humana, vem resgatar a proposta do Reino de Deus. Da contemplação das maravilhosas obras divinas espalhadas na natureza e do trabalho cotidiano dos habitantes da região onde ele se criou, Jesus extrai os elementos para explicar a dinâmica desse Reino. Relaciona as aves do céu com o trabalho do homem agricultor que semeia, ceifa e recolhe os frutos no celeiro para alimentar a sua família; relaciona os lírios do campo com o trabalho da mulher que tece a roupa para vestir a todos em sua casa.
O alimento e a veste sintetizam as necessidades básicas para a vida e a proteção de todos os homens e mulheres. Ora, o Pai do céu sabe muito bem do que seus filhos e filhas necessitam. E nada lhes faltará, desde que pratiquem a fraternidade e a justiça: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo” (6,33). É a frase-chave para a compreensão de todo o texto. É a chave que abre o caminho possível para a nova sociedade que respeita os bens da criação, vive o presente com simplicidade e alegria e trabalha de forma criativa e pacífica, sem a preocupação inquietante com o acúmulo. Toda comunidade cristã, como a de Mateus, é chamada a ser sinal deste Reino de Deus.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
- Deus Pai-Mãe [f2] nunca abandona os seus filhos e filhas. Há situações em nossa vida, como a dos israelitas exilados na Babilônia, que parecem “sem saída”. Sentimo-nos abandonados e esquecidos, questionando-nos: onde está Deus? No entanto, a Palavra nos lembra, de forma sempre nova, que Deus nunca nos esquece nem nos abandona. Ele cuida de nós com a ternura de mãe, ama-nos e nos protege como seus filhinhos muito amados. Podemos imaginar os efeitos positivos, no meio do povo exilado, destas palavras do profeta: “Mesmo que uma mulher se esquecesse dos que ela amamentou e não tivesse ternura pelo fruto de suas entranhas, eu não te esqueceria nunca”. O mesmo Deus dos exilados é o nosso Deus.
- Deus julga a cada um com amor e justiça. Considerando a experiência concreta vivida na comunidade cristã de Corinto, Paulo não se deixa abater pelos que o subestimam, comparando-o com outros pregadores. Também nós, a exemplo de Paulo, podemos transformar as situações de sofrimento em oportunidade de graça benfazeja, de renovação da nossa confiança em Deus, cuja luz brilha nas trevas. Paulo nos ensina a viver nossa missão neste mundo “como simples operários de Cristo”. Isso significa renunciar à pretensão de poder e de prestígio social, ser autênticos e coerentes com a fé que professamos e fazer tudo como servidores uns dos outros.
- Deus cuida de nós e de todas as suas criaturas. Talvez mais do que em outros tempos, vivemos ansiosos, com uma infinidade de preocupações. O evangelho deste domingo nos adverte de que não podemos servir a dois senhores. Sempre é tempo de nos perguntarmos seriamente como administramos nossa vida, nossos trabalhos, nosso tempo... Jesus nos oferece a proposta do Reino de Deus, que se fundamenta na fraternidade, na simplicidade, no respeito à natureza, na solidariedade e na confiança em Deus, que sabe muito bem do que necessitamos. É justo o esforço em busca das condições necessárias para uma vida digna. Porém quantas coisas supérfluas nos amarram e nos impedem de ser verdadeiramente livres e solidários! Para onde poderá nos levar o ritmo da vida atual? Que frutos estamos colhendo com essa busca ansiosa de ter sempre mais bens materiais, poderes, prazeres, prestígio social...?
Celso Loraschi
Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos, professor de evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (Itesc).E-mail: [email protected]