Roteiros homiléticos
ORAÇÃO, FÉ E ESCRITURAS
I. INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia de hoje sugere dois temas importantes: a força da oração (1ª leitura e evangelho) e a importância da S. Escritura (2ª leitura), mas ambos têm o mesmo pano de fundo: a esperança da salvação em Jesus. Para a reflexão (e a homilia) vamos insistir mais no segundo tema, por ele ter uma atualidade especial no momento atual da América Latina. Nosso continente, de fato, está conhecendo desde alguns anos um verdadeiro movimento de redescoberta (católica e ecumênica) da Bíblia e, neste particular, se sabe incentivado pelo Concílio Vaticano II, retomado na Exortação Verbum Domini do Papa Bento XVI.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Ex 17,8-13)
Na batalha contra os amalecitas, quem decide da vitória não é Josué, o general, mas Moisés, o homem de Deus, que reza de braços estendidos desde a manhã até a noite. Como toda boa catequese, também a de Israel gostava de histórias que falassem à imaginação. Assim é esta história, que conta como Moisés conseguiu a vitória de seu general Josué sobre os amalecitas, os eternos inimigos de Israel. Enquanto Moisés, segurando o bastão de força divina, ergue as mãos por cima dos combatentes, Israel ganha. Quando ele baixa os braços, Israel perde. Então, escoram a Moisés com uma pedra e sustentam-lhe os braços erguidos, até o pôr do sol, quando a batalha é decidida em favor de Israel. A história não diz se o gesto de Moisés significava oração, bênção sobre Israel ou esconjuro do inimigo, mas, sendo Moisés o enviado de Deus, é evidente que se tratava de uma maneira de tornar a força do Senhor presente no combate. O gesto pode bem significar que Deus mesmo é o general do combate. O próprio gesto de levantar as mãos indica o relacionamento com o Altíssimo. Levantar as mãos a Deus sem cansar, eis a lição da 1ª leitura. O salmo responsorial comenta, nesse sentido, o levantar os olhos (Sl 121[120]).
2. Evangelho (Lc 18,1-8)
No mesmo sentido, o evangelho narra uma dessas parábolas provocantes bem ao gosto de Lucas. É a história da oração insistente da viúva. Uma viúva pleiteia seu direito junto a um juiz pouco interessado, provavelmente comprometido com o outro partido. Porém, no fim lhe faz justiça, não por virtude e amor à justiça, mas por estar cansado da insistência da viúva. Quanto a nós, embora saibamos que Deus gosta de nos atender (não é como o juiz!), Jesus nos encoraja a cansar Deus com nossas orações! Mas, para isso, precisa fé. Ora, acrescenta Lc: será que o Filho do Homem encontrará ainda fé, na terra, quando ele vier...?
Jesus ensinou a rezar pela vinda do Reino; mas quando esta vinda se completar, na parusia do Filho do Homem, encontrar-se-á ainda fé na terra? (Lc 18,9; cf. 2Tm 4,1). Por isso, até lá, é tempo de oração. Devemos reconhecer a carência em que vivemos e assumi-la na oração insistente. Se não clamarmos a Deus para fazer justiça, sua vinda nos encontrará sem fé.
Lucas escreve no último quartel do século I. A fé está enfraquecendo. A demora da Parusia, as perseguições, as tentações da “civilização” do império romano eram tantos fatores que colaboravam para enfraquecer a fé. Os cristãos, vivendo num mundo inimigo, esperavam a Parusia como o momento em que Deus faria justiça em favor dos pequenos e oprimidos. Seria o Dia do Senhor. Mas estava demorando! Rezavam: “Venha teu Reino!” (Lc 11,2). Por outro lado, sabiam também que é difícil aguentar a pressão: “Não nos deixes cair em tentação” (11,4). Por isso, Lucas pergunta: se continuar assim, não terão todos caído quando o Filho do Homem vier? (Lc 18,8). Talvez isso seja uma advertência pedagógica, para insistir na necessidade de guardar a fé até que venha o Filho do Homem. 1Pd 3,9 está às voltas com o mesmo problema, mas oferece outra interpretação: Deus demora porque está dando chances para a gente se converter.
3. II leitura (2Tm 3,14-4,2)
A mensagem da 2ª leitura completa a das duas outras. Não apenas nossa oração deve ser insistente, não apenas devemos guardar a fé; devemos insistir também na pregação da palavra do Evangelho, oportuna ou inoportunamente!
A fé é uma graça de Deus, mas também algo que a gente aprende, tanto o conteúdo quanto a atitude. Isso vale, sobretudo, para quem tem responsabilidade na comunidade. Sua fé deve crescer pela leitura da S. Escritura (2Tm 3,14-16), pela experiência vital e pela desinteresseira transmissão da Palavra, traduzida novamente para cada geração. A palavra de Deus atinge as pessoas através dos seus semelhantes. Só o convicto consegue convencer. Daí a solene admoestação dirigida a Timóteo (2Tm 4,1-2): “Eu te peço com insistência: proclama a palavra, insiste oportuna ou inoportunamente...”.
Alguns anos atrás, na crise da secularização, procurava-se não incomodar o homem “urbano moderno” com a expressão franca da identidade cristã. Se alguém, prudentemente, expressasse uma exigência cristã, o interlocutor respondia, com um sorriso de compaixão: “Eu achava que o senhor fosse esclarecido!”. Por isso tornou-se comum esconder a visão cristã. Contudo, sobretudo agora, diante do sumiço da visão cristã, é melhor não ficar dando voltas, mas insistir, mesmo inoportunamente, naquilo que o evangelho diz ao mundo. O tempo é breve. Se julgamos dever respeitar o homem moderno por ser secularizado, devemos também lembrar que ele é, sobretudo, objetivo e não gosta de rodeios, mas quer logo saber qual é o assunto! Por isso, sejamos claros. Não se trata de fanatismo (que é disfarce da insegurança), mas de clareza e sadia insistência. Paulo aconselha exteriorizarmos nossa convicção (2Tm 4,2), sobretudo porque o evangelho que ele propõe é o da “graça e benignidade de Deus, nosso Salvador” (Tt 3,4; cf. 2,11).
Para isso, é necessário que o evangelizador “curta”, pessoalmente, toda a riqueza da Palavra e a sua expressão nas Sagradas Escrituras – inclusive do Antigo Testamento, que fornece a linguagem em que Jesus moldou seu evangelho. Tudo isso é obra do Espírito de Deus (2Tm 3,16).
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
A Sagrada Escritura: a reflexão pode aprofundar o tema da 2ª leitura, que reforça o que o evangelho diz sobre a oração: a assiduidade na leitura da Escritura (2Tm 3,14-16). Antigamente, os protestantes se distinguiam dos católicos porque, como se dizia, eles “liam a Bíblia”. De uns tempos para cá, isso mudou. Agora, a Bíblia faz parte também do lar católico, e isso não só para ficar exposta sobre um belo suporte de madeira entalhada... O Concílio Vaticano II nos exorta a ler a Sagrada Escritura, usando as mesmas palavras de Paulo na 2ª leitura de hoje: a Escritura “comunica a sabedoria que conduz à salvação”, “é inspirada por Deus e pode servir para denunciar, corrigir, orientar”. E a recente Exortação apostólica Verbum Domini do Papa Bento XVI diz que a leitura das Escrituras deve ser a alma de toda a pastoral.
Ora, essa recomendação de Paulo e do Concílio deve ser interpretada como convém. Não significa que cada palavrinha isolada da Sagrada Escritura seja um dogma. A Escritura é um conjunto de diversos livros e textos que devem ser interpretados à luz daquilo que é mais central e decisivo, a saber: o exemplo de vida e o ensinamento de Jesus – aquilo que faz Cristo crescer em nós e em nossa comunidade.
O centro e o ponto de referência de toda a Sagrada Escritura são os quatro evangelhos. Em segundo lugar vêm os outros escritos do Novo Testamento (as Cartas e os Atos dos Apóstolos), que nos mostram a fé e a vida que os discípulos de Jesus quiseram transmitir. A partir daí podemos compreender como deve ser interpretada a Bíblia toda, com inclusão do Antigo Testamento, para que nos manifeste, mediante a fé em Jesus Cristo, a “sabedoria que conduz à salvação” (2Tm 3,15). A recomendação de Paulo a Timóteo para que leia as Escrituras refere-se ao Antigo Testamento, as Escrituras de Israel (pois o Novo ainda não tinha sido posto por escrito); à luz de Cristo, essa leitura se torna caminho de salvação. Quanto a nós, o Novo Testamento nos fala de Jesus, e o Antigo se torna leitura salvífica em Jesus, que, como verdadeiro “filho de Israel”, mostrou a plenitude do Antigo e o levou à perfeição. Jesus usou as palavras do Antigo Testamento para rezar e para anunciar a Boa-nova do Reino. Sem conhecer o Antigo Testamento, não entendemos a mensagem de Jesus conservada no Novo. “Quem não conhece as Escrituras, não conhece Cristo” (S. Jerônimo).
Jesus é a chave de leitura da Bíblia. Isso é muito importante para não fazermos de qualquer frase do Antigo (e nem do Novo) Testamento um dogma definitivo! A lei do sábado, por exemplo, deve ser interpretada com esse profundo senso de humanidade que tem Jesus: o sábado é para o homem, não o homem para o sábado. As ideias de vingança, no Antigo Testamento, à luz de Jesus aparecem como atitudes provisórias e a serem superadas. Todos os trechos da Bíblia, por exemplo as parábolas de Jesus, devem ser entendidos dentro do seu contexto e conforme seu gênero e intenção. Não devem ser tomados cegamente ao pé da letra. Muitas vezes apresentam imagens que querem exemplificar um só aspecto, mas não devem ser imitados em tudo (cf. o administrador esperto, no 25º domingo do tempo comum).
Por outro lado, importa ler a Sagrada Escritura no horizonte do momento presente, interpretá-la à luz daquilo que estamos vivendo hoje. Sem explicação e interpretação, a Bíblia é como faca em mão de criança, ou como remédio vendido sem a bula: pode até matar! Ora, a interpretação deve se relacionar com a vida do povo. Por isso, o próprio povo deve ser o sujeito dessa interpretação, mediante círculos bíblicos e outros meios adequados.
Pe. Johan Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e licenciado em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Leuven (Lovaina). Atualmente, é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A - B - C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje. E-mail: [email protected].