Publicado em julho-agosto de 2012 - ano 53 - número 285
Reforma Litúrgica pós-conciliar: renovação e fidelida
Por Pe. Antônio S. Bogaz; João H. Hansen
Os cristãos creem em Jesus Cristo vivo e ressuscitado, vivido como mística que transforma a vida. Por isso, na liturgia, o mistério se realiza pela celebração do rito. Toda a sua estrutura está no encontro entre a ação divina (graça) e a ação humana (vida). Ação divina e ação humana se integram no ritual litúrgico numa harmoniosa conjunção de orações, saudações, silêncios, cantos e reflexões (DUARTE, 2002, p. 35). Para celebrar a sua fé, as comunidades cristãs foram, ao longo dos séculos, elaborando rituais. O repertório litúrgico vem da cultura, do ambiente cultural e linguístico em que o cristianismo se implantou como opção religiosa do povo que acolheu a mensagem do evangelho e aceitou Jesus Cristo como seu Senhor. Todo esse repertório litúrgico – símbolos, gestos, movimentos e expressões linguísticas – foram incorporando-se nas comunidades cristãs em todo o mundo, compondo os rituais, que se organizaram dentro de famílias litúrgicas.
Quando os cristãos são indagados sobre a formação dos rituais, como se tivessem sido inventados pela Igreja, nota-se grande falta de visão teológico-bíblica, uma vez que, nas páginas da Sagrada Escritura, não se encontram os rituais para celebrar a graça de Deus em nossa vida (um dos objetivos da vida litúrgica), mas apenas sua inspiração. A função da ação litúrgica é celebrar o mistério pascal de Jesus Cristo. Como afirma a constituição Sacrosanctum Concilium, “Cristo está sempre presente em sua Igreja, e especialmente nas ações litúrgicas” (SC 7).
As comunidades vão aos poucos compondo seus rituais, assumindo o gênio cultural de cada etnia (CHUPUNGCO, 1992, p. 45). Desse modo, cada grupo que se convertia ao cristianismo produzia seus novos rituais, vinculados à tradição, que se construía paulatinamente. Alguns elementos, considerados essenciais, por terem por base as próprias ações de Cristo, são exigidos para todos os ritos. O Concílio Vaticano II define esses elementos como imutáveis, pois foram usados nos ritos pelo próprio Cristo. A sensibilidade pastoral promove e exige a adaptação litúrgica. Seus fundamentos teológico-litúrgicos sustentam que “a Igreja não pretende impor uma forma rígida para os ritos, mas deseja cultivar elementos e valores dos diversos povos e valorizar seus costumes, conforme normas do espírito litúrgico (SC 37-40).
Nos primeiros séculos da Igreja, houve grande criatividade na vida litúrgica, gerando orações, símbolos, dinâmicas e textos maravilhosos que compreendem o impressionante tesouro da tradição. Houve, por certo, exigência de fixação em alguns momentos, para evitar heresias nos ritos, e também constante busca de harmonizá-los, para garantir a unidade, na grande pluralidade expressa nos vários povos cristianizados.
Em sua essência, finalidade e estrutura, a vida litúrgica eclesial implica elementos significativos de comunicabilidade. Já na origem da palavra, da língua grega, temos que a essência da leitourgia é fazer comunhão e estabelecer relação entre as pessoas (MARTIN, 1977, p. 52).
1. Inculturação secular da liturgia
Com o passar dos séculos, a Igreja cristã, que se espalhou entre vários povos, foi criando novos rituais, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Essas famílias litúrgicas constituem uma grande riqueza para os seus protagonistas e garantem a sobrevivência de sua religiosidade cultural até nossos dias. No segundo milênio, logo depois do cisma entre Oriente e Ocidente (1054), a Igreja cristã romana proibiu o uso de todas as famílias litúrgicas, exigindo que fosse usado para todo o Ocidente o ritual romano, nas suas diversificações de sacramentos e sacramentais. Foi quando se impuseram os modelos romanos, com a língua latina, os movimentos parcimoniosos e os símbolos herdados da tradição imperial romana dos primeiros séculos da era cristã. Com o Concílio de Trento (1545-1563) criou-se a Sagrada Congregação dos Ritos (1570), que custodiou os ritos da Igreja nos últimos séculos. Assim foi que toda vida cristã ocidental celebrou com base nos mesmos ritos, com a mesma expressão musical, a mesma língua, as mesmas devoções, santos e vestimentas da Igreja de Roma, impossibilitando toda e qualquer adaptação aos novos povos cristianizados.
Não se trata nem de endeusar nem de desdenhar os rituais, pois uma saudável utilização deles dá segurança aos ministros da ação litúrgica. Seu correto uso evita extravagâncias e excessos. Ao mesmo tempo, a obsessão pelo emprego das estruturas rituais resulta no “rubricismo” – sua observância escrupulosa, automática e mecânica. Assim, nosso repertório litúrgico secular não acolheu as formas culturais dos povos, sejam asiáticos, afros ou ameríndios, entre outros. Com a animação da vida eclesial proporcionada pelo Concílio Vaticano II, desperta a necessidade de renovar e reformar a vida celebrativa da Igreja. Pela Sacrosanctum Concilium fomos agraciados com uma porta de abertura para inculturar os rituais, adaptando-os aos novos povos e aos novos tempos. Iniciou-se a reforma litúrgica, que iluminou a vida eclesial nas últimas décadas pós-conciliares.
2. Primeiros passos da reforma litúrgica
Com o Concílio Vaticano II, a Igreja sente grande motivação para se renovar e adentrar no mundo contemporâneo, a fim de que não se configure a uma estrutura limitante de sua ação e presença na sociedade moderna. A nova concepção de cristianismo católico que se inaugura propicia um diálogo constante e permanente com o mundo, para que as pastorais e os ritos sejam valorizados e reconhecidos pelas novas formas linguísticas e pelas novas ciências que se desenvolvem rapidamente na sociedade.
Entre tantos países, sobretudo na América Latina, a Igreja no Brasil é a mais fecunda no processamento da reforma litúrgica. Como nos explica A. Chupungco, no tratado sobre adaptação litúrgica, a preocupação com a tradição, que está no coração dos fiéis, e com a renovação, para que possa abrir-se ao povo de Deus, torna-se a grande motivação para renovar o repertório litúrgico das comunidades celebrantes (CHUPUNGCO, 1992, p. 10).
A concretização dessa transformação litúrgica é percebida nas grandes conferências do episcopado latino-americano, sobretudo nas de Medellín (1968) e Puebla (1979), que trouxeram para o continente o espírito conciliar e concretizaram sua revolução eclesial e litúrgica.
Considerando a importância da encarnação do ritual em nosso continente, recordamos que todo ritual celebra o “memorial do Senhor”, em conformidade com o espírito e a estrutura da liturgia romana, porém inculturado na realidade latino-americana para que seja mais eficaz. Destacamos vários acontecimentos que marcaram esse processo eficiente e eficaz, uma vez que envolveu profundamente os fiéis e teve grande papel na busca e no crescimento da renovação.
Em geral, quando vemos a vida litúrgica em nossas comunidades atuais, facilmente nos esquecemos de como era sua prática pré-conciliar. Da mesma forma, quando entramos numa casa reformada, esquecemos como era o ambiente antes da sua renovação. Basta lembrar que os primeiros passos da reforma litúrgica restauraram o uso do vernáculo nas celebrações, o sacerdote voltou-se para o povo, destacou-se o altar mais central, com maior espaço para a palavra de Deus. Não podemos olvidar um longo processo iniciado com o Movimento Litúrgico no Brasil, desde os tempos de dom Michel Techler, que já havia introduzido novidades pioneiras, como folhetos litúrgicos e missas em linguagem mista (latim e vernáculo) (SILVA, 1983, p. 97). Toda essa reforma foi possível por dois motivos. Antes de tudo, um grande entusiasmo e a necessidade de renovação e atualização da vida eclesial e litúrgica e, em segundo lugar, os cursos de liturgia, a formação para o canto, os encontros nacionais e regionais temáticos. Não podemos negar os exageros ou desvios, muitas vezes provocados pela lentidão dos organismos eclesiásticos oficiais.
3. Reforma litúrgica pós-conciliar
Anos mais tarde, no auge da reforma litúrgica, entre as décadas de 1970 e 1980, têm lugar eventos mais concretos, como os novos livros litúrgicos, traduzidos e adaptados, e a abertura da espiritualidade cristã para os fenômenos sociológicos. Esse processo provocou grandes transformações na vida litúrgica. Em meio a intensas críticas, o espírito profético desse período eclesial possibilitou a prática litúrgica profundamente crítica e evangelizadora. Um dos exemplos mais evidentes dessa transformação se encontra nas Campanhas da Fraternidade, fomentadas sobretudo no período quaresmal. Vale ainda recordar o papel fundamental das comunidades eclesiais de base (CEBs), que deram novo rosto à vida da Igreja e a suas celebrações, tanto dos sacramentos como de outras ações litúrgicas. Essa caminhada foi intensamente analisada, especialmente nas três primeiras décadas pós-conciliares. Trata-se de processo contínuo e inacabado.
Alguns nomes serão recordados como mestres dessa renovação: dom Clemente Isnard, dom Helder Câmara, dom Pedro Casaldáliga, entre tantos nomes brasileiros e latino-americanos no campo teológico-bíblico. A teologia da libertação fundamentou essa caminhada, dando-lhe a base da reflexão e da sua elaboração. A reforma litúrgica configura-se com novos rostos, preconizados por Puebla, que se tornam os sujeitos emergentes e protagonistas do culto: pobres, negros, indígenas, mulheres, camponeses, migrantes e tantos mais. Vale a pena destacar na reforma litúrgica a força imperiosa dos leigos, que animam a vida litúrgica da comunidade e integram um processo de mutirão celebrativo, introduzindo os rituais nos vários espaços da vida cotidiana.
A reforma litúrgica vai sendo apreciada e um elemento novo se insere, que precisa ser assumido e examinado com seriedade. Estamos falando dos novos movimentos espirituais católicos, com forte espiritualidade pentecostal ou carismática, engrandecendo a dimensão pneumatológica do culto, assim como o neocatolicismo, que gesta grupos religiosos laicos ou clericais, abrindo novas perspectivas para a reforma litúrgica. Esse direcionamento da reforma litúrgica, provocado pelo crescimento dos grupos pentecostais não católicos e pelo avanço dos meios de comunicação social, configura novos aspectos das celebrações, particularmente no canto, no conteúdo das pregações, na tendência emocional da espiritualidade e na revalorização dos ritos solenes, com suas alfaias e vasos sagrados.
4. Itens preponderantes da reforma litúrgica
A pesquisa sobre a reforma tem se intensificado muito nos últimos anos, pois toda a comunidade eclesial está preocupada com os rumos da prática litúrgica dos fiéis. Depois de tantas conquistas e forte conscientização da importância da adaptação litúrgica, tem-se notado certo retrocesso em vários setores da Igreja. Vamos considerar como reforma litúrgica, em sentido amplo, as tentativas de dinamizar, adaptar, inculturar os ritos cristãos a partir da abertura eclesial do Concílio Vaticano II.
Alguns elementos fundamentais da reforma litúrgica, que representaram evolução no processo de adaptação litúrgica, podem ser considerados. Com a renovação do repertório litúrgico, que dinamiza os ritos, inserindo-os na cultura e na religiosidade das comunidades, recuperou-se o longo período de ausência da inserção da vida litúrgica na realidade social e religiosa dos povos. Esse processo de reforma cultural abrange a vida litúrgica na sua integridade, embora se situe particularmente nos sacramentos e, mais precisamente, na celebração eucarística. Vejamos:
4.1. Celebrações étnicas. Neste período pós-conciliar, desenvolveu-se grande variedade de ritos litúrgicos com configuração cultural dos vários grupos humanos constitutivos do povo brasileiro. A partir da reforma litúrgica conciliar, a comunidade cristã toma consciência de que a liturgia deve se adaptar à realidade do povo e assumir o “gênio cultural” dele. Todo esse projeto foi incorporado pelas conferências episcopais e pelas posteriores reformas litúrgicas. O Documento de Puebla (n. 940) insiste na promoção de adaptações particularmente adequadas aos grupos étnicos, existindo o cuidado de que a vida litúrgica não seja instrumentalizada para fins alheios à sua natureza. Nesse impressionante processo de inculturação, citamos a missa afro, a missa sertaneja, a missa nordestina, a missa crioula, a missa da terra sem males, a missa dos ciganos e a missa caipira. Esses títulos foram dados às celebrações eucarísticas que se propunham assumir em seu repertório litúrgico as formas e o gênio cultural desses grupos socioétnicos. As músicas, os símbolos, os comentários, os movimentos e a ornamentação do espaço sagrado expressam as características de tais tradições. Na verdade, os elementos culturais valorizados já não pertencem ao cotidiano desses grupos, mas são resgatados como caminho para recuperar a identidade dos seus membros e engrandecer a sua etnia, protegendo-a do achatamento cultural hodierno. Nem sempre são grupos bem definidos, mas os seus fiéis buscam, num momento de sua história, a demarcação da própria identidade. Apesar de sua impressionante riqueza ritual, o limite nesse processo de inculturação foi certo folclorismo que predominou em tais cultos, relegando-os a representações culturais. Destacamos algumas limitações, como a imitação das conquistas da inculturação e a ausência de aprovação canônico-litúrgica desses rituais (BOGAZ; SIGNORINI, 2010, p. 76).
4.2. Celebrações etárias e temáticas. Muitas celebrações tiveram sua linguagem e sua dinâmica adequadas à faixa etária dos fiéis. Embora com muitas lacunas, pois as assembleias são muito heterogêneas, serviram para adaptar a linguagem aos participantes da comunidade, permitindo-lhes maior interação com o rito. As celebrações para os jovens passaram a realçar mais os cantos, os movimentos e expressões simbólicas que os faziam mais sujeitos do rito celebrado. Nessa mesma esfera da reforma litúrgica encontramos as celebrações envolvendo os grupos pastorais, como as famílias, os casais e outros. Naturalmente o mistério pascal é o núcleo fundamental das celebrações cristãs; porém os elementos do rito e sua linguagem procuram responder aos sentimentos dos celebrantes.
4.3. Celebrações proféticas. Não vamos deixar de considerar a difícil aceitação, por parte de muitos fiéis, dessa dimensão sociológica da reforma litúrgica. Esta, na esteira da reflexão teológica e das práticas eclesiais, acolheu os valores proféticos do cristianismo. Nessa renovação, houve grande abertura para a realidade dos povos maltratados, considerando suas dores, lutas e vitórias. A profecia, como a luta pela terra, pelos direitos, pela libertação dos povos oprimidos, tornou-se conteúdo da compreensão do mistério pascal de nossas ações litúrgicas. Tal renovação se revelou nos cantos com poemas profetizantes, nos símbolos apresentados nas dinâmicas do rito, nas pregações e interpretações da palavra de Deus e, sobretudo, na espiritualidade litúrgica. Essa dimensão da reforma litúrgica abriu os horizontes da comunidade cristã para as realidades temporais, sem perder de vista as realidades transcendentais que se integram no mistério pascal de Jesus Cristo.
4.4. Celebrações criativas e dinâmicas. Sem especificar a direção da criatividade, as comunidades se preocuparam em superar a letargia dos ritos, a qual afastava muitos fiéis, sobretudo as massas populares, ávidas por ritos mais dinâmicos e menos racionalizantes. A despeito dos erros cometidos quanto à verdadeira teologia litúrgica, os ritos procuraram ser mais efervescentes e alegres. Mesmo entendendo que este não é o cerne da participação ativa e consciente, as comunidades lançaram mão dessas dinâmicas para envolver melhor a assembleia em celebrações mais emotivas e afetivas. De fato, com o processo da reforma litúrgica desenvolvendo aspectos mais proféticos da mensagem cristã no repertório litúrgico, como nos cantos, símbolos e pregações, sentiu-se a carência do fator emocional nos ritos. Esta provocou uma crítica exacerbada aos ritos sacramentais, levando a uma ênfase talvez excessiva sobre a dimensão emocional. Desde então, a reforma litúrgica, legítima ou ilegitimamente, abordou com vigor as relações emocionais, com cantos mais sentimentais, gestos, toques mais afáveis e discursos mais inflamados. Quando a linguagem simbólica é “mais intuitiva e afetiva”, “mais poética e gratuita”, faz com que a liturgia seja uma “celebração” e não “uma doutrina”, permitindo-nos, assim, entrar em contato com o inacessível e confirmar que “o mundo da liturgia pertence não às realidades que terminam em ‘-logia’ (teologia, por exemplo), mas em ‘-urgia’ (dramaturgia, liturgia)” (ALDAZABAL, 1989, p. 10).
Essa abordagem, criticada veementemente por liturgistas mais ortodoxos, gestou uma ritualidade pentecostal católica, que se tornou o cerne de grupos de oração, de novas comunidades, do neocatolicismo e, sobretudo, das liturgias de massa, em geral animadas com o auxílio dos meios de comunicação social por celebrantes cantores ou animadores. Perdeu-se, certamente, a profundidade e a dimensão comunitária, uma vez que se tornam celebrações capazes de congregar multidões, mas frágeis na edificação de comunidades fraternas e comprometidas com a vida da Igreja e com os empobrecidos.
5. Traços da reforma litúrgica
Consideramos, com grande otimismo, que o processo histórico de renovação da vida litúrgica no Brasil teve avanços marcantes, o que é um privilégio de poucos lugares do mundo. Isso é notado quando participamos de encontros intercontinentais e os ritos são animados pelos vários grupos ali presentes: espera-se sempre que as celebrações presididas e animadas pelos grupos do Brasil sejam mais dinâmicas, inculturadas e envolventes. Os tempos dos rituais litúrgicos anêmicos ficaram para trás. Dentro das características e da espiritualidade de cada grupo eclesial, esperam-se sempre celebrações mais dinâmicas e eficazes, capazes de tocar o espírito de toda a assembleia. Todas as comunidades e seus presidentes de celebração têm consciência de que o fator preceitual, que obrigava os fiéis a participar dos sacramentos, praticamente desapareceu. Entendemos então que é preciso criar comunidades que respeitem os próprios valores, cultura, realidade concreta e dinamismo, possibilitando que os fiéis as integrem como membros de uma comunidade caminhante, sintam necessidade de irem ao culto e o façam com alegria e entusiasmo.
Neste meio-tempo, sustentamos assembleias arrebanhadas por líderes religiosos que se assemelham a pop stars, aninhando cristãos que dependem da força emocional do culto e são cativados pela figura do seu presidente. Essa situação pode ser deplorável, quando a ausência daquele presidente exige o cancelamento da celebração. Nesse caso, a comunidade demonstra não se sustentar por si mesma, pois sua referência é a pessoa carismática do celebrante principal. A isso se une ainda a espiritualidade de libertação e cura, muito presente em tais cultos. Essa aproximação com o pentecostalismo evangélico tem sua importância, pois reinsere os fiéis afastados e desanimados, mas não garante continuidade comunitária e perseverança pessoal. A prova está no fato de que grupos se reúnem às centenas e, alguns meses depois, simplesmente desaparecem. Fiquemos atentos, pois o efeito montanha-russa que se tem notado em grupos evangélicos pode afetar nossas comunidades. Concordamos que é preciso haver a integração de três elementos num gesto verdadeiramente litúrgico: o gesto corporal, em primeiro lugar, seu sentido teológico-litúrgico e, em terceiro lugar, a atitude espiritual provocada pelo mesmo gesto. Realizamos o rito, a inteligência o integra em nossa vida e a nossa fé o eleva à dimensão transcendental. A interação desses elementos constitui a inteireza do ritual e sua eficácia em nossa história.
Não se pode ignorar que esse modelo de renovação litúrgica, mesmo que muitos estudiosos da reforma relutem em admitir, arrebanhou grandes multidões de fiéis para a Igreja, afastou muitos de seu catolicismo morno e evitou que a evasão aumentasse. São méritos significativos e frutos importantes da renovação litúrgica, promovidos pelos grupos pentecostais católicos, como a Renovação Carismática, pelas novas comunidades e pelos meios de comunicação católicos. Não vamos desconsiderar, absolutamente, as conquistas no campo da reforma litúrgica obtidas pelas comunidades eclesiais de base, pela teologia da libertação e pelas conferências latino-americanas e o despertar da inculturação, que promoveu e enobreceu culturas e grupos relegados ao esquecimento histórico. As celebrações, com a dinamização de seu repertório litúrgico, engrandeceram e elevaram esses grupos humanos, tantas vezes marginalizados e esquecidos pela comunidade eclesial. Reconhecemos a autenticidade do gesto litúrgico quando a expressão exterior é germinada no mais íntimo do fiel, na plenitude do seu espírito e de sua vida. O gesto é espontâneo e realizado com dignidade. Essa dignidade implica simplicidade e não rigidismo (BOGAZ; VIEIRA, 2001, p. 59).
Indagamos, a propósito, sobre a eficiência e até mesmo sobre a eficácia das celebrações com multidões, pois a conglomeração de fiéis não facilita a espontaneidade dos gestos e movimentos, que são orquestrados e domesticados pelo animador da assembleia. A vitalidade das ações litúrgicas será recordada sempre como importante valor da renovação litúrgica.
As conquistas da reforma litúrgica, que se processaram dentro da evolução eclesial de nosso país e de alguns países latino-americanos, têm como mérito a interação entre liturgia e vida, a integração das culturas marginalizadas e a elevação das devoções e dos direitos dos povos mais simples.
6. Olhando depois da curva
Estamos num caminho promissor, carregado de novidades. Nossas comunidades se alimentam desse entusiasmo proporcionado pelo dinamismo das equipes de serviço e seus ministérios. Esse é um bem que nos anima e nos edifica, pois trouxe para a comunidade católica maior autoestima e desejo de se irmanar como família espiritual que celebra sua fé em ritos comprometidos com sua própria espiritualidade e cultura.
Sabemos, porém, com serenidade e esperança, que os vínculos comunitários mais emocionais são mais frágeis e não garantem constância secular. Naturalmente não vão desaparecer, mas vão permanecer como conquistas para a animação da vida litúrgica no Brasil. De modo semelhante, deixaram marcas para sempre todos os valores que a reforma litúrgica dos anos fervorosos da eclesialidade profética trouxe para nossos ritos. Depois das CEBs e das Campanhas da Fraternidade, jamais a espiritualidade litúrgica será como antes, pois resgatou bens e dons da fé cristã que estavam escondidos.
Para além da curva, teremos esse legado, que são novas notas da partitura da mística cristã. Com o arrefecimento das grandes multidões e seus celebrantes referenciais, devemos constituir comunidades sólidas e fraternas. A reforma litúrgica se processará concretamente nos fiéis que se encontram para a celebração eucarística, que celebram o batismo e as exéquias, como família de fé. São essas assembleias bem constituídas que se congregarão para celebrar, independentemente da sedução da mídia ou da força arrebatadora de presidentes carismáticos.
Para superar o modismo e a frieza, devemos formar a assembleia segundo a espiritualidade litúrgica, de modo que tenham lugar expressões essencialmente simbólico-poéticas e não lógico-sistemáticas. Portanto, sem eliminá-la, devemos minimizar a racionalidade e cultivar a afeição comunitária e o sentimento da fé. Quando falamos de teologia simbólica da liturgia, podemos afirmar que “o racionalismo é um inimigo da celebração e da ciência litúrgica”. Atados à “ideia” ou ao “conceito”, jamais a celebração litúrgica exprimirá a beleza da fé cristã. Somente o símbolo expressa a transcendência do conteúdo. A expressão simbólica que tem animado nossas ações rituais nos faz ir mais longe, pois nos permite comungar com a realidade invisível e mistérica, não perceptível aos sentidos.
É evidente que não podemos definir a medida exata para a gestualidade e os movimentos. Esse repertório litúrgico precisa ser a manifestação da vida pessoal e comunitária. Toda celebração deve ser provida de intensidade e integralidade. Somente assim haverá harmonia entre a manifestação corpórea e seu sentido espiritual. Vivendo em harmonia, os momentos litúrgicos (penitência, louvor, devoção, agradecimento, súplica, entre outros) e os gestos surgem de maneira natural e espontânea.
Alguns desafios ainda se impõem de forma intensa e urgente, como a efetiva, consciente e harmoniosa participação dos fiéis nos ritos, a criatividade e a adaptação às formas contemporâneas da cultura. Esperamos ainda concretizar na vida litúrgica a integração dos valores, dos contextos urbanos, bem como ampliar a eficácia transformadora da palavra divina. Os estudiosos da ciência litúrgica pastoral, as comunidades e as equipes de celebração devem aprofundar o equilíbrio entre a Sagrada Escritura, a Tradição e o Magistério, mas também o entrosamento dos ciclos do ano litúrgico com as festividades religiosas populares e civis, promovendo a adaptação aos diversos contextos, a inculturação, a criatividade e a adequação ritual. Sempre deparamos com visões exclusivistas dos responsáveis pelo estudo e pela atuação teórica e prática desses objetivos da reforma litúrgica, mas o Espírito Santo haverá de suscitar coragem, disposição e humildade para que nossas celebrações atinjam sempre elevado grau de participação ativa, consciente e frutuosa e sejam vivazes e envolventes. Depois das portas abertas pela reforma litúrgica, nunca mais o espírito de renovação deixará de soprar.
* Professor e escritor nas ciências filosóficas e teológicas. Doutor pelo Instituto de Liturgia Santo Anselmo (Roma) e pela Universidade de São Paulo (Filosofia). Pós-doutor em Antropologia pela Unesp. Autor de inúmeros livros, vídeos e filmes nas áreas de liturgia e espiritualidade. Pároco em Rio Claro-SP, na Paróquia Nossa Senhora da Saúde. Apresentador do programa Caminhos, na TV Claret.
** Professor universitário e autor de várias obras. Doutor em Letras e Literatura pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em Antropologia pela Unesp. Docente do Centro Universitário São Camilo e apresentador do programa Caminhos, na TV Claret. Pesquisador das manifestações religiosas e rituais da religiosidade popular.
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Pe. Antônio S. Bogaz; João H. Hansen