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Publicado em janeiro-fevereiro de 2012 - ano 53 - número 282

A pastoral em novas perspectivas IV: Perspectiva político-ecológica e perspectivas pastorais

Por Pe. Nicolau João Bakker, svd

A reflexão pastoral que segue tem íntima relação com o artigo “A Pastoral em Novas Perspectivas I – Introdução ao Tema”, publicado em Vida Pastoral n. 278, 2011. Sugerimos, portanto, uma atenta leitura desse artigo antes de ler a presente reflexão.

 

INTRODUÇÃO AO TEMA

Nos artigos anteriores a este, que tratavam do mesmo tema, ressaltamos que as três fontes mais significativas para a pastoral, ou para a ação concreta da Igreja, são: a cosmovisão da época, a espiritualidade e a perspectiva política de futuro.2 Das perspectivas pastorais que surgem da cosmovisão da época, com também das que brotam de sua espiritualidade correspondente, já tratamos. Neste último artigo sobre o tema, gostaríamos de abordar a terceira fonte da pastoral, a da perspectiva de futuro, ou perspectiva política. As três fontes não podem ser vistas separadas entre si. São três fontes que abastecem o mesmo riacho, costumamos dizer. É importante ressaltar também que, em conjunto, elas formam não apenas a “alma” do cristianismo, mas, igualmente, das religiões em geral.

Temos dito que, na dinâmica interna da vida, e até da própria matéria, existe uma espécie de “caso de amor” que faz com que, nelas, tudo se relacione com tudo e tudo coopere com tudo. Em nenhum momento a lógica interna é de autodestruição. A “morte” individual tem sempre o sentido de possibilitar a sobrevivência do todo coletivo. Em especial na dinâmica da vida biológica, encontramos sempre uma tendência de autossuperação, uma busca constante por melhor “qualidade” de vida. A tentação é traduzir isso imediatamente em termos religiosos, mas a maioria dos especialistas entende que essa conclusão é apressada. A vida parece poder evoluir em mil direções e nada determina o curso exato. Apenas constata-se que a vida nunca anda para trás. Existe uma certa “direção”, portanto. A vida tem “perspectiva”. É dessa perspectiva que queremos tratar, por causa de sua alta significância para a pastoral. Veremos que a cosmovisão de cada época muda a perspectiva de futuro, a perspectiva política do ser humano, e que as novas perspectivas geradas também mudam o conteúdo da ação pastoral da Igreja.

 

1. Perspectiva política na cosmovisão teológica

1.1       A política teocrática

Aproximadamente há três milhões de anos, dentro da “família” dos hominídeos, o pequeno Australopithecus começa a desenvolver um novo sistema nervoso, com um cérebro que aumenta rapidamente em tamanho e cujo lado esquerdo – o lado mais “técnico” – é levemente maior que o lado direito. Surge assim o Homo habilis, um velho conhecido dos nossos paleontólogos. Com muito maior habilidade nas mãos e um cérebro muito mais capacitado para gerenciar informações, este “pré-humano” inventa a primeira técnica que possibilitou um maior controle sobre seu meio envolvente: a “pedra lascada”. Para muitos antropólogos, todo o “processo civilizatório” da humanidade se deu com base nas sucessivas invenções tecnológicas, com a criação de novos meios de sustento, novas linguagens e novos relacionamentos.3 Cada nova técnica representou também um novo “poder” sobre o meio ambiente e sobre os não possuidores dessa mesma técnica. Muito antes de os cidadãos da Grécia denominarem de “política” a promoção do bem-estar de sua querida cidade de Atenas, os caçadores e coletores já se articulavam coletivamente para garantir sua sobrevivência do melhor modo possível. Pela sua própria natureza, todo ser humano é, portanto, um ser “político”, um ser que busca, coletivamente, manter e aperfeiçoar sua qualidade de vida.

Depois do surgimento de uma “consciência” que podemos chamar de humana, há mais de 100.000 anos, os primeiros agrupamentos humanos, todos caçadores/coletores, desenvolvem relações sociais sempre mais complexas. Diversas cavernas no sul da França mostram que, há 30.000 anos, já existia uma “cultura humana”: comunicação visual, rituais, crenças e a provável existência de “xamãs”, os primeiros até hoje privilegiados detentores dos segredos da natureza. Esses grupos, muito isolados uns dos outros, sobrevivem basicamente ao sabor da natureza… até que, há aproximadamente 10.000 anos, surge uma nova e  decisiva invenção tecnológica que constitui o primeiro grande “marco” da civilização ocidental: a agricultura e a domesticação de animais. Agora os agrupamentos “se estabelecem” e surgem pequenas civilizações em torno do Mar Mediterrâneo. As relações humanas se tornam muito mais complexas. Depois da comunicação por meio de gravações em ossos de peixe, objetos de argila ou pedra, desenvolve-se a linguagem escrita. Grande avanço é possibilitado pela técnica da irrigação. Aos poucos, as pequenas cidades se organizam em torno de uma típica divisão de responsabilidades: de um lado governantes e funcionários, engenheiros, sacerdotes, curandeiros, metalúrgicos, sábios etc., e, de outro, um grande número de guerreiros e trabalhadores comuns, frequentemente controlados pelo mecanismo da escravidão.

Limitando nosso enfoque, como dissemos no primeiro artigo, ao mundo ocidental, podemos dizer que, em todo este tempo de evolução humana, a política é exercida de uma forma “teocrática”. Na lógica da cosmovisão teológica dessa época, forças divinas ou espirituais determinam a sorte e o destino de todas as pessoas. Ninguém tem autonomia pessoal para decidir seu próprio futuro. Nem mesmo os xamãs têm poder político para isso. Quando em muitas destas sociedades antigas, em especial as mais avançadas, surge a figura do rei, este exerce o seu poder em nome dos deuses e, frequentemente, o próprio rei é divinizado. O monoteísmo parece ter suas raízes mais longínquas no Egito. Em 1350 a.C., aproximadamente, o faraó Amenófis IV introduz um rigoroso culto monoteístico – ao deus-sol Aton –, como religião do Estado, um culto extinto logo após sua morte. É nesse clima de um Deus Supremo que, de acordo com os relatos bíblicos, Abraão “sai de sua terra” (Gn 12,1) em busca de um novo futuro. Com isso a perspectiva de futuro e a perspectiva política mudam radicalmente. A fé num Deus único, que comunica pessoalmente a sua Lei – 4.000 anos antes de Cristo o rei Ur-Engur da Mesopotâmia já declara querer governar “em conformidade com as leis dos deuses” –, não permite a existência de nenhum outro ídolo, e a obediência à sua Lei deve ser irrestrita. Com uma novidade de importância fundamental: pela primeira vez na história, Deus se compromete com o futuro dos mais fracos. A derrota do faraó é também a derrota dos seus deuses. O único Deus, Javé, fará Aliança apenas com os hebreus, filhos da escravidão. Não muda a cosmovisão teológica, mas muda a perspectiva política. Ao menos para um pequeno povo, o hebreu, um Deus muito poderoso, mas também muito familiar, garante a “seu” povo um futuro promissor, uma “terra onde corre leite e mel” (Êx 3,17).

O último milênio antes de Cristo é caracterizado por grande efervescência filosófica e religiosa, com destaque para a Grécia. Do multicolorido caldo de cultura da sociedade grega, algumas convicções sagradas vão percorrer o mundo: 1. o mundo espiritual, divino, é essencialmente diferente do mundo material, humano; 2. a razão humana é espiritual e, como tal, deve guiar a conduta humana; 3. uma boa política é aquela que preserva o bem comum. Na prática, a condução política grega oscila entre duas tendências, uma mais democrática, que expressa o legado aristotélico, e outra, mais aristocrática, que expressa o legado platônico.

 

1.2       A política hierocrática

Muitos historiadores fazem distinção, no longo período da cosmovisão teológica, entre governos teocráticos e governos hierocráticos. Quando Deus governa diretamente sobre o pensar e o agir humano, falam em governos teocráticos. Quando líderes humanos se veem a si mesmos como governando em nome de Deus – ou dos deuses –, falam em governos hierocráticos. A distinção ajuda a compreender melhor como, até hoje, o mundo judaico-cristão lida com as questões políticas. Moisés e os profetas concebem um governo mais teocrático, em que o Deus da Aliança é sempre o elemento decisivo. Já, posteriormente, os reis judeus e os sacerdotes do Templo costumam ter uma concepção mais hierocrática, acompanhando o que já se tornou comum na cosmovisão da época. Jesus, ao proclamar a vinda iminente do Reino de Deus, entrará de cheio na proposta teocrática, porém, com uma ressalva: as autoridades deste mundo podem até governar, pois Deus lhes permite isso, mas seus governos somente serão legítimos se tiverem a marca de Javé e “servirem” antes de tudo para a superação de todas as formas de escravidão (cf. Mt 20,24-28). Para Jesus, o ser humano é criatura, e toda a sua existência está sob o domínio do Criador. Nesse sentido, toda autoridade vem “do alto”, até a autoridade de Pilatos (cf. Jo 19,11). Para seus discípulos, porém, valerá a seguinte regra: qualquer governo que seja, se não serve para servir, não serve! O critério de validação para qualquer proposta política será sempre este: o amor samaritano.

Nos primeiros séculos do cristianismo, os cristãos “dão a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21). Para justificar uma espiritualidade sem conotação política, é comum ouvir dizer que a fé neotestamentária não demonstra preocupação com as estruturas injustas do império. Não existiria nas primeiras comunidades cristãs uma perspectiva política de mudança. Para a vivência da fé, bastaria o coração.

Em seu livro Gerechtigheid en Liefde, o grande teólogo belga Edward Schillebeeckx (†2009) faz um apelo apaixonado contra esse modo de pensar. O pensar e o agir do cristão têm sempre o limite de sua mediação histórica. Sendo inteiramente impensável qualquer superação das estruturas do império, é a partir de dentro, nas próprias comunidades, que os cristãos iniciam um novo modo de viver, uma sociedade nova onde não haverá “nem escravos nem livres” (Gl 3,28).

 

1.3 A política cesaropapista

O bispo Eusébio (†337), de Cesareia, o primeiro a escrever uma história da Igreja, já esboça uma espécie de teologia imperial na sua obra Elogio de Constantino (335). Deus governa o mundo através de um soberano na terra, chamado por Eusébio de “o bispo de fora”. É Santo Agostinho (†430), porém, que, por primeiro, apresenta uma mais elaborada “teologia política” que vai ter poderosa influência até os nossos dias. Seu “agostinismo político” é elaborado num contexto em que a religião cristã já é a religião que tem o apoio oficial do Estado desde o imperador Constantino (†337). Partindo da situação “decaída” do ser humano, Agostinho vê a necessidade de um poder civil forte em que todos “dão a César o que é de César”, mas esse poder civil, imperfeito, deve, o quanto antes, ceder lugar a uma espécie de política religiosa em que, superadas as fraquezas humanas, todos “dão a Deus o que é de Deus”. Para os romanos, numa visão mais hierocrática, o poder de César já era o poder de Deus. Na sua interpretação da proposta jesuânica, Agostinho quer a Cidade de Deus, sua maior obra literária, governando sobre a Cidade dos Homens. Já a vê, de forma parcial, presente na Igreja, ficando sua concretização máxima reservada para o fim dos tempos. Baseando-se em Santo Agostinho, o papa Gelásio I (†496), numa estranha exegese, fará uso, pela primeira vez, de uma tal “teologia das duas espadas”, lembrando a passagem de Lucas em que Jesus diz aos discípulos que “duas espadas bastam” (22,38). A política “cesaropapista” do império, em especial do lado Bizantino, onde o poder civil predomina largamente sobre a Igreja, é criticada. Porém, segundo afirmação do papa, trata-se de domínios separados: o rei está sujeito ao bispo no domínio espiritual, mas o bispo está sujeito ao rei no domínio temporal. No Ocidente, durante o Império Carolíngio – em 800 Carlos Magno (†814) é coroado imperador – e especialmente no decorrer do Sacro Império Romano Germânico, a política cesaropapista está muito presente.

 

1.4 A hierocracia papal

O tom do discurso muda muito com os papas Gregório VII (†1085), Inocêncio III (†1216) e Bonifácio VIII (†1303). O monge cisterciense de Cluny, Gregório VII, defenderá claramente a superioridade do poder espiritual sobre o poder temporal. O grande movimento reformista, encabeçado pelo mosteiro de Cluny – muito centrado na famosa “querela da investidura leiga” –, resulta, em 1122, na “Concordata de Worms”: cabe ao papa a investidura espiritual, cujos símbolos são o anel e a cruz, e ao imperador a investidura temporal, cujo símbolo é o báculo. Inocêncio III dirá que o poder espiritual é como o sol e o poder temporal como a lua; quando um brilha, o outro desaparece! E a Bula Unam Sanctam de Bonifácio VIII usa explicitamente a teologia das duas espadas: uma é exercida pela Igreja, a outra deve ser exercida a favor da Igreja. Numa espécie de “hierocracia papal”, o papa “delega” poder ao soberano civil. Para muitos, o uso desse poder constitui o “totalitarismo dogmático e espiritual” da Igreja na época da cristandade. O líder religioso mais influente dessa época, São Bernardo de Claraval (†1153), com base nessa teologia das duas espadas, não titubeará em convocar “os soldados de Cristo” para a guerra das cruzadas contra os “infiéis muçulmanos”. Matar e morrer por Cristo é considerado uma honra. É a cosmovisão teológica imperando na política. Como dissemos no artigo introdutório ao nosso tema: “a Idade Média termina com os papas dando as cartas no mundo ocidental”. É com essa mesma perspectiva política que a Igreja ainda dará apoio, logo depois, às monarquias europeias quando estas se lançam à conquista das colônias.

 

2. Perspectiva política na cosmovisão antropológica

2.1 A política monarquista

Um conceito que predominou ao longo de toda a cosmovisão teológica foi o da origem divina do poder. Santo Tomás de Aquino (†1274) também pensou dessa forma, mas insistiu na natureza racional do ser humano e no imperativo da busca do bem comum. Na prática, a hierarquia eclesiástica demonstrou sempre uma preferência clara pelas concepções mais aristocráticas de Platão (†347 a.C.). A passagem da hierocracia papal para a política monarquista não foi nada tranquila. Quando surgem os Estados soberanos, a partir da “Paz de Vestfália” (1648), o papa Inocêncio X (†1655) ainda condenará duramente estes novos arranjos do poder chamando-os de “nulos, írritos, inválidos, iníquos, injustos, perniciosos, malvados, inanes, e vazios de sentido e efeito por todo o tempo” (WILFRED, 2007, p. 118). A irrupção da modernidade – para o teólogo Paul Tillich (†1965) esta “abalou os alicerces da religião e da cultura” – foi por muitos comparada ao rompimento de uma barragem. Aparentemente nada ficou de pé. Novos movimentos religiosos – das ordens mendicantes, do pietismo popular, do protestantismo etc. –, além de ondas sucessivas de laicismo por parte das novas ciências, dão origem a uma nova concepção de poder. Por longo tempo, a Igreja convive aos tapas e beijos com o poder monárquico, mas, aos poucos, por baixo das sagradas alianças entre clero e nobreza, vai surgindo uma nova perspectiva política: a da democracia.

Ocorreu um processo histórico que visava basicamente a três autonomias: a “autonomia do sujeito”, dando primazia à razão e à liberdade; a “autonomia da natureza”, sujeita a uma lei e ordem internas, e não à intervenção divina; e a “autonomia política” do poder civil frente ao poder espiritual das Igrejas. As três autonomias envolviam liberdades que a Igreja católica estava pouco habituada a permitir. A austeridade de vida pregada pelo protestantismo, especialmente por Calvino (†1564), de acordo com a conhecida análise de Max Weber (†1920), será uma preciosa alavanca para o crescimento da nova classe social da burguesia. É ela que, nos Estados soberanos, clama por crescentes liberdades econômicas, em permanente conflito com as monarquias absolutistas e o poder do clero. A barragem rompeu em 1789 com a Revolução Francesa.

 

2.2 A política das “democracias liberais”

A “queda da Bastilha”, em Paris, entrou na história como marco simbólico. O grito longamente sufocado por mais “liberdade, fraternidade e igualdade” será ouvido por toda parte, e surgem os Estados Democráticos de Direito com a clássica “independência harmônica” entre três poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Os debates, evidentemente, são apaixonados: “direitos humanos” e “lei natural” estão na ordem do dia. Quando a Revolução Francesa fez publicar sua “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” (1789), de teor marcadamente democrático, o episcopado francês a saudou como “um conjunto de posições estúpidas”. De fato, para o Magistério Eclesiástico, cabia a ele a interpretação da lei natural, uma vez que esta, de acordo com a Teologia Escolástica, é o reflexo da Lei divina no coração do ser humano, e Deus instituiu o Magistério da Igreja como única interpretação autêntica tanto da lei natural quanto da sobrenatural. Essa postura claramente hierocrática bateu de frente com a nova postura antropológica de confiar apenas na razão, e não na simples autoridade. À medida que o “liberalismo” avança – na economia, na política e na cultura em geral –, dando clara demonstração de querer criar um novo mundo independente de critérios religiosos, a Igreja se posiciona fortemente contra o novo clima. O longo processo histórico de conquista dos direitos humanos – civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais –, como também a longa batalha por democracias realmente eficazes, se fará, de fato, com a oposição das Igrejas, tanto católicas quanto protestantes.

Em defesa, contra o modernismo, a Igreja irá implantar, a partir da segunda metade do século XIX, o modelo ultramontano, centralizando o poder na pessoa do papa. Ela o fará com mais convicção ainda quando, em 1870, com a perda dos Estados pontifícios, o papa se torna “prisioneiro do Vaticano” graças às ideias liberais! O combate à proposta socialista da democracia proletária, por excluir qualquer tutela religiosa, será ainda mais feroz do que o combate à democracia liberal. Diante daquela, esta acaba sendo até tolerada. Pio X (†1914) declara o modernismo – que então inclui a ameaça do “ateísmo materialista” – a “síntese de todas as heresias”. No entanto, com o implacável avanço da onda democrática, a estratégia mais comum de Roma será ceder o anel para não perder os dedos. A partir de 1920, a Santa Sé faz acordos ou alianças com as mais diversas nações para não perder os últimos nacos do seu poder medieval.

 

2.3 A política das “democracias cristãs”

Nas últimas décadas antes do Concílio Vaticano II a maré vira. A “Nova Teologia” substitui a Neoescolástica e inicia um clima de maior abertura, ressaltando inclusive o papel humanizador das “Democracias Cristãs” fundadas, democraticamente, por partidos fiéis à Igreja. A cosmovisão antropológica vai, aos poucos, conquistando seu espaço também dentro da Igreja. O Concílio Vaticano II, buscando um diálogo positivo, e não impositivo, com a sociedade, dará acolhida a quase todas as conquistas da modernidade. Assumindo em Gaudium et Spes, n. 36, a “perfeita legitimidade” da autonomia das realidades terrestres, dará seu aval também às democracias liberais ocidentais, desde que voltadas ao bem comum. A Igreja dispensa privilégios, mas mantém a antiga “potestas directiva”, isto é, o poder de emitir um juízo moral sobre qualquer política (GS, n.76). Em diversas oportunidades, porém, não teve medo de privilegiar a política partidária das democracias cristãs, especialmente quando confrontadas com o crescente poder dos partidos comunistas. Com relação à política democrática de forma geral, ainda recentemente o papa João Paulo II manifestou a postura dúbia da Igreja ao afirmar: “Não sou o evangelizador da democracia; sou o evangelizador do Evangelho. À mensagem do Evangelho pertencem, evidentemente, todos os problemas dos direitos humanos; e se democracia significa direitos humanos, ela pertence também à mensagem da Igreja” (WILFRED, 2007, p. 114). Como dissemos, a cosmovisão antropológica, ainda que hegemônica, convive com a teológica. Hoje, porém, ambas perdem em credibilidade.

 

3. Perspectiva política na cosmovisão ecológica

3.1 A democracia representativa em crise

Dissemos mais acima que a história da Igreja católica se caracterizou, durante um longo período, por uma espécie de “totalitarismo dogmático e espiritual”. No âmago da matéria e na bioquímica da vida, porém, não existem totalitarismos. Ali as unidades estão sempre harmonicamente inter-relacionadas e as isoladas estão fadadas a morrer. Também na convivência humana, historicamente, todos os grandes impérios e todas as políticas totalitárias tiveram um fim inglório. Na interminável busca do ser humano por qualidade de vida, os desequilíbrios são constantes, mas a tendência permanente é para um equilíbrio entre os diversos elementos em jogo. Quanto maior o desequilíbrio, tanto maior a reação a ele.

Dentro da cosmovisão ecológica, a proposta democrática recebe um novo vigor, mas não sem uma mudança profunda na sua conceituação. Podemos dizer que, nas últimas décadas, a democracia representativa tradicional passa por profunda crise no mundo inteiro. Como filha legítima da cosmovisão antropológica ela, desde o início, rejeitou o diálogo, não apenas com as Igrejas, mas também com qualquer corrente de espiritualidade. Hoje, em muitos lugares, ela se sente órfã e está em busca de alguma forma de fundamentação. O teólogo canadense Gregory Baum (2007) lembra importantes documentos nos quais a Igreja toma posição contrária não apenas à democracia, mas também ao estado liberal, à soberania popular, às liberdades civis, à separação entre Igreja e Estado e à liberdade de religião: a Breve Quod Aliquantum (1791) de Pio VI, as Encíclicas Mirari Vos (1832) de Gregório XVI e Quanta Cura (1864) de Pio IX. Outro teólogo, Erik Borgman (2006), enfocando mais a postura antimodernista, lembra a Lamentabili et Pascendi Dominici Gregis (1907) de Pio X e a Humani Generis (1950) de Pio XII, desembocando na Fides et Ratio (1998) de J. Paulo II.

Em meio a tudo isso, outros autores de grande influência se mostraram mais favoráveis à democracia, ressaltando valores a serem preservados. Emmanuel Mounier (†1950) propõe seu “personalismo comunitário” e Jacques Maritain (†1973), em Du regime temporelle et de la liberté (1933) e Humanisme Intégral (1936), elabora uma teoria católica a favor da democracia, afirmando que “o impulso democrático irrompe como uma manifestação temporal da inspiração do Evangelho”. Quando o papa João XXIII (†1963), na Encíclica Pacem in Terris (1963), acolhe favoravelmente a democracia, não deixa de insistir na necessidade de fundamentá-la com valores “sobrenaturais”. O critério fundamental da democracia não está na simples decisão da maioria, mas antes de tudo na defesa do bem comum. A crise da democracia formal sempre teve como um dos seus eixos o “liberalismo econômico”. O mundo socialista o questionou, desde o início, em profundidade. O mundo cristão, de fato, o tolerou, mas não sem ressalvas. A mais forte encontramos na Exortação Apostólica Ecclesia in America (1999) de João Paulo II quando este condena “a globalização do capitalismo neoliberal” pelo fato de submeter-se apenas às leis do mercado.

Tanto o capitalismo quanto o marxismo surgiram na esteira da cosmovisão antropológica. Ambos revelam uma “visão otimista” da natureza humana: um aposta na capacidade da razão humana para construir um paraíso terrestre desde que respeitadas – mediante a democracia liberal – as leis do mercado livre; o outro, com a mesma fé na razão humana, promete o paraíso terrestre desde que respeitadas – mediante a democracia proletária – as leis do partido da classe trabalhadora. Entre democracia liberal e democracia proletária, a Igreja – embora mais à vontade no campo liberal – sempre optou pelo meio do campo, propondo alguma forma de política hierocrática, em busca do Reino de Deus “que não é deste mundo” (Jo 18,36). Ela revela – em seguimento a S. Agostinho – uma “visão pessimista” da natureza humana: nenhum governo, por mais democrático que seja, é capaz de governar-se a si mesmo sem ajuda “dos céus”. Nascidos de uma inabalável fé monoteísta, na Verdade única, todos esses modos de pensar e de agir partem de concepções dogmáticas, de índole totalitária, inerentes às cosmovisões teológica e antropológica.

 

3.2 Perspectiva política da democracia participativa

A cosmovisão ecológica vê a natureza humana de outra forma, nem pessimista nem otimista. Não existe uma verdade definitiva, nem um futuro certo a alcançar. Não existe uma vitória final da democracia representativa, nem o fracasso definitivo da democracia proletária. Todas as construções humanas deixam pegadas na areia e ajudam a construir o futuro. Não existem povos eleitos ou religiões privilegiadas. Povos e religiões nascem sobre a terra como as flores do campo, cada uma com seu perfume e sua cor. Não existe um Deus que intervém a favor de um e contra o outro, nem um Criador que ora está presente, ora se ausenta. Simplesmente está aí, em todo lugar, para quem quiser ver e acreditar. Não existem doutrinas ultrapassadas nem filosofias definitivas. O saber humano se constrói sobre uma memória coletiva onde tudo se transforma e nada se perde. A cosmovisão ecológica vê o ser humano, com seu crer e seu agir, como um desdobramento daquilo que pode ser observado dentro de cada átomo e dentro de cada célula viva: um universo de transitoriedade e diversidade interdependente, sempre voltando, auto-organizativamente, a um novo equilíbrio, recriando-se permanentemente. A cosmovisão ecológica pede humildade. As grandes utopias e os grandes relatos do mundo ocidental foram todos construídos sobre a areia movediça da arrogância dogmática e da competição. A argamassa da vida, porém, não é feita de competição, mas de cooperação. Quem sabe chegou a hora do homo globalis,4 não uma Nova Era, mas um novo tempo de um pensar e agir diferentes, mais ecológicos.

Isso significa o abandono de qualquer perspectiva política? Uma democracia sem identidade? Um sincretismo barato? Um cristianismo sem Revelação e sem Tradição cristã? De forma alguma. Nos diferentes artigos sobre o tema em foco, ressaltamos que todos nós temos, no nosso substrato físico e biológico, a busca permanente por melhor qualidade de vida. Sua força-motriz mística é a busca por “vida em abundância” (Jo 10,10). Nesta dinâmica interna não existe nenhuma forma de “liberalismo independente”, mas apenas unidades que adquirem sentido a partir da coerência e harmonia com “o todo”. A democracia do futuro, necessariamente, será fruto de cooperação mútua: Norte e Sul, mundo desenvolvido e mundo em desenvolvimento, capitalismo e socialismo. Nossa contribuição cristã específica, para não nos afastarmos da “marca” de Javé e da “pegada” de Jesus, neste momento histórico, é construir a democracia “de baixo para cima”, centrada numa “ética humanitária e ecoplanetária”, sem nenhuma forma de dominação. Muitos a chamam de “democracia participativa”.

 

4. Perspectiva política ecológica e perspectivas pastorais

Nenhum ser humano vive sem alguma perspectiva de futuro ou, como costumamos dizer, sem perspectiva política. Sabemos do papel importante da teologia escatológica na Tradição da Igreja. A Bíblia inicia falando de um paraíso perdido e termina falando de um paraíso a alcançar. Em muitos sentidos, o futuro é um livro em branco. O percurso, porém, não é inteiramente aleatório, como vimos na introdução ao nosso tema. O futuro é sempre fruto dos passos feitos no passado. Para Jesus, tudo se resume na construção do “Reino de Deus”, a semente com vocação de árvore (Lc 13,18-19). Como se dá isso, politicamente, nos dias atuais?

 

4.1 Manter uma proposta pluripartidária na ação pastoral

Existe um certo consenso entre os analistas políticos, confirmado mais uma vez no 7o Encontro Ecumênico Nacional de Fé e Política (2009), de que o atual governo petista, de cunho democrático-popular, foi o resultado de três movimentos de vital importância: o movimento operário-sindical, o movimento popular, com inclusão do acadêmico, e o movimento pastoral das Igrejas comprometidas. Detalhes à parte, talvez seja. Nos três movimentos reina hoje uma enorme “saudade” de um tempo em que ideia, mística e ação de diversas origens se aglutinaram para, em conjunto, dar um salto qualitativo na perspectiva política da população. O “clima”, agora, arrefeceu. Mesmo assim, os avanços em vivência democrática são evidentes, principalmente quando analisados pela perspectiva histórica. Na cosmovisão teológica, são os deuses, ou seus representantes, que governam, o que exclui a perspectiva político-democrática, enquanto, na cosmovisão antropológica, a proposta democrática é colocada com firmeza, embora, na prática, nunca tenha convencido plenamente.

O que não pode passar despercebido é que, na cosmovisão teológica, surpreendentemente, surge uma proposta da maior importância. De acordo com o teólogo metodista Néstor O. Míguez, Jesus propõe (cf. Mc 6,14-44) uma teocracia em que impera o “banquete da vida” do pão partilhado – uma espécie de simbiose entre teocracia e democracia – em oposição ao “banquete da morte” oferecido por Herodes. Na opinião desse autor, Jesus, na verdade, propõe uma “laocracia” (do grego “laos” = povo comum) a partir da organização popular, dando um claro sentido político à palavra “symposion” (Mc 6,39), usada uma única vez em todo o Novo Testamento (cf. MÍGUEZ, 2007, p. 71). O banquete da vida surge aí em clara oposição ao governo hierocrático de Jerusalém, onde a figueira não produz (Mt 21,19) e onde as ovelhas estão sem pastor (Mt 10,36).

A cosmovisão ecológica se opõe frontalmente a qualquer democracia baseada em políticas excludentes. Da mesma forma rejeita as “verdades” únicas, assim como “partidos” únicos ou “classes” únicas. Atualmente, as “modernas” democracias ocidentais passam pela “crise de valores”, uma consequência direta da exclusão histórica das vertentes espirituais. O ex-presidente da Comissão Europeia, Jacques Delors, tem dito com frequência que havia necessidade de “dar uma alma à Europa, dar-lhe espiritualidade e sentido” (BORGMAN, 2004, p. 35-44). Para o teólogo holandês Erik Borgman, a única alternativa é uma democracia “de baixo para cima”, uma vez que, do contrário, sempre ocorre alguma forma de violência (Ibid.). Também o teólogo dominicano Ulrich Engel afirma que a democracia deve desfazer-se de gestos violentos e definitivos e descobrir o valor religioso da vulnerabilidade (ENGEL, p. 82). Para Peter Berger, o Ocidente europeu, por força da secularização, tornou-se “o beco sem saída do cristianismo”. Giuseppe Ruggieri critica a forte tendência europeia de apelar para uma espécie de “religião civil” a fim de garantir, funcionalmente, a coesão social e a coexistência pacífica das sociedades complexas. Essas sociedades, observa, “ignoram a pretensão das Igrejas de entrar com os objetivos próprios de sua missão irredutível”, em especial a defesa das “vítimas” (RUGGIERI, p. 95-104). Também a teóloga irlandesa, Maureen Junker Kelly, atual diretora da revista Concilium, observa, citando as palavras do jurista e antigo membro do Tribunal Constitucional da República Federal da Alemanha, Ernst-Wolfgang Böckenförde, que “o Estado liberal secularizado vive de pressupostos que ele próprio não pode garantir” (2006, p. 115-127). Para ela, cortado o cordão umbilical entre Igreja e Estado, a Igreja deve encontrar, internamente, as bases pré-políticas, morais, éticas e religiosas, para motivar a democracia.

Também no mundo em desenvolvimento, o frágil barquinho da democracia representativa está fazendo água. Jon Sobrino cita seu colega Ignácio Ellacuría (†1989): “o que precisamos não é de democracia, mas de direitos humanos”, e “o que o manejo ideologizado do modelo democrático busca não é a autodeterminação popular quanto ao modelo político e econômico, mas o encobrimento da imposição capitalista”. Existe, segundo ele, um problema epistemológico: as democracias não se autoanalisam a partir dos pobres e, ideologicamente, se analisam apenas a partir da experiência da modernidade do Ocidente. Consequentemente “o bem-viver do 1o mundo é o mal-viver do 3o”. Para Sobrino são exatamente as tradições religiosas e a tradição jesuânica que oferecem os melhores critérios para a superação das atuais democracias. No centro não deve estar a liberdade, mas a compaixão; não a igualdade, mas a parcialidade, no sentido da opção pelos pobres; não o desenvolvimento – pois “o amor à riqueza é a raiz de todos os males” (1Tim 6,10) –, mas a justiça (SOBRINO, 2007, p. 75-90). José Comblin, igualmente, opina que, diante resultados concretos das democracias formais, estas resultaram num “fracasso universal”. A razão está em que o “princípio” democrático foi substituído pelo princípio de mercado. Também o teólogo de Sri Lanka, Felix Wilfred, vê a democracia em profunda crise. Observa que a democracia, como sistema de governo, está fadada a fracassar se não estiver imbuída de “espírito de democracia”.O cristianismo, corretamente, combate a “tirania da maioria”, pois é sua tarefa proteger os pequenos. Apenas uma “espiritualidade da democracia” pode superar a democracia liberal que consagra e legitima a desigualdade social. Na opinião dele “é tarefa de cada cristão/ã ampliar o processo democrático”, e a separação entre esfera pública e esfera religiosa apenas ajuda o papel pró-ativo e crítico da Igreja em face do Estado (WILFRED, 2007, p. 114-133).

Este amplo panorama da “crise da democracia” revela um dado importante: não será fácil “transformar a democracia que temos na democracia que queremos”. Sem dúvida, no âmbito do Brasil, não se esgota na primeira experiência – após 500 anos de uma política mais excludente por parte das classes dominantes – de governo democrático-popular. Por parte das lideranças políticas, a maior tentação é a manutenção da crença na verdade única, no caso, a “nossa” proposta partidária, o “nosso” conceito de revolução social, a “nossa” política de alianças etc. Dentro da cosmovisão ecológica, mais valem coligações partidárias unidas em torno de propostas comuns do que a imposição de uma hegemonia partidária. Um pluripartidarismo sadio não dificulta, mas facilita a qualidade de vida “do todo”. Por parte das lideranças religiosas, a maior tentação – muito forte na atual conjuntura eclesial – é o “refúgio da sacristia”. Uma postura não de vida, mas de morte.

Na ação pastoral da Igreja é preciso manter, a todo custo, a proposta jesuânica do pão partilhado. Na atual estrutura política do país, isso requer a defesa da democracia participativa, “de baixo para cima”, aproveitando, inclusive, os nacos de boa vontade que podem surgir “de cima para baixo”. Do ponto de vista da espiritualidade, como refletimos no artigo anterior sobre o tema em foco, não podemos esquecer que a busca por qualidade de vida, a religiosidade da ética humanitária e ecoplanetária são inerentes a todo ser humano. Garantir uma “mística transformadora” – o Reino de Deus, dizia Jesus – é o papel pastoral primordial da Igreja. O que arrasta as multidões, dissemos, não são as ideias, mas as emoções, a mística. Não foi um programa partidário que levou as massas populares para a rua e colocou o presidente Lula no governo. Não foi também o carisma de uma única pessoa ou de um único partido. Foi uma estranha “mística” que, num determinado momento, aglutinou forças antes isoladas, permitindo um salto na qualidade de vida de grande parte da população. É exatamente essa a perspectiva política da cosmovisão ecológica. Uma pastoral aberta à proposta pluripartidária permite manter as portas abertas para místicas aglutinadoras e renovadoras. É a semente do Reino virando árvore.

 

4.2 Apoiar um pluripartidarismo de linha profética

Para Jesus, a partilha do pão é a marca registrada dos seus discípulos. Se fosse possível, teologicamente, manter a antiga separação entre corpo e alma, espírito e matéria, vida natural e sobrenatural, poderíamos, quem sabe, ainda alimentar a esperança de apenas salvar a alma das pessoas, sem nenhuma preocupação material. Mas, filosófica e teologicamente, essa postura foi abandonada definitivamente. Não dá para salvar a alma sem salvar o corpo. Por isso, só podemos salvar pessoas concretas, pessoas que estão sempre inseridas em determinados contextos políticos e culturais. Aumentar a “qualidade de vida” dessas pessoas requer muito mais do que apenas oferecer “desenvolvimento”. Pouco antes do Concílio Vaticano II, uma certa “teologia do desenvolvimento” criou grande euforia. Ao assumir, em Gaudium et Spes, a “autonomia das realidades terrestres”, o Concílio, de certo modo, assumiu também o modelo de desenvolvimento das “democracias de bem-estar social” da Europa tidas como exemplares. Quem desmistificou esse mito foram os cientistas sociais da América Latina ao adotarem, na década de 1960, a “teoria da dependência”.5 Sem romper com as estruturas de dependência, mantidas pelo domínio dos países desenvolvidos, é pura ilusão, diziam, pensar em desenvolvimento para todos. A partir dessa mesma leitura da realidade, os teólogos latino-americanos, pouco depois, embarcaram na teologia da libertação. São estes que vão dizer ao mundo com toda a clareza: sem rompimento das estruturas de dominação não acontece nem desenvolvimento, nem democracia e, em sentido religioso, – nem o Reino de Deus.

Aqui chegamos a um ponto central: se salvação implica mudança do contexto histórico de pessoas concretas e se essa mudança envolve a superação de estruturas de dominação, então torna-se evidente que uma ação pastoral sem profetismo não “salva”. O documento de Aparecida insiste na superação de uma mera “pastoral de conservação” (n. 370). Vimos no primeiro artigo do nosso tema que a cosmovisão teológica – ainda muito presente – é a cosmovisão da estabilidade, mas esta não chega a impedir o profetismo. Apenas o profetismo “salva”. Onde ninguém “sai de sua terra”, nada acontece. Abraão enfrentou, profeticamente, um novo desafio. Moisés rompeu com a barreira da escravidão. Em toda a história do povo de Israel, os profetas apontaram para caminhos novos. Jesus pagou com a vida pelo anúncio de um Reino onde a “laocracia” da partilha substituiria as “sagradas” leis do Templo e do Império. A história da Igreja está repleta de profetismo. Não estamos acostumados a ver as coisas dessa forma, mas existe profetismo em todas as religiões, e até no ateísmo. O profeta, ou a profeta, é quem muda o contexto histórico e faz a “Vida” acontecer.

Se a Igreja tem uma missão claramente suprapartidária, isso não significa que ela possa adotar uma espécie de “neutralidade política”. Em qualquer democracia existem partidos políticos que dão sustentação – não no seu programa partidário, mas na sua prática histórica! – às forças economicamente dominantes, politicamente excludentes e ideologicamente elitizantes. O caráter insubstituível do profetismo cristão não nos permite apoiá-los. Da mesma forma existem partidos que, na prática, dão sustentação às forças economicamente solidárias, politicamente participativas e ideologicamente igualitárias. O profetismo cristão nos obriga a apoiá-los. Do ponto de vista de compromisso pastoral, parece-nos da maior importância que apoiemos um “pluripartidarismo de linha profética”, e isto pelo motivo já indicado: sem ele não ocorre salvação.

Evidentemente podemos rebater dizendo que a imensa maioria das pessoas não se dá conta desse raciocínio teológico, seguem com liberdade e consciência suas próprias convicções políticas, e não é possível excluí-las do projeto divino de salvação. Quanto a isso não temos a menor dúvida. Do ponto de vista exclusivamente pessoal, o critério cristão decisivo é “vestir o nu e dar pão a quem tem fome” (Mt 25,31-46). Isso, no entanto, não é perspectiva política, mas espiritualidade. Nosso foco, neste momento, é a perspectiva política da ação pastoral. Esta nos diz que existe um Reino a construir, um “novo céu e uma nova terra” a alcançar (Ap 21,1). Os “sinais” do Espírito nos indicam a clara necessidade de um caminho novo. A perspectiva política da cosmovisão ecológica é a da cooperação. Sem uma mística profética e sem um pluripartidarismo voltado para o “novo”, este objetivo não se concretiza.

 

4.3 O uso da linguagem “trans-imanente”

Nos artigos anteriores sobre “A Pastoral em novas perspectivas”, como também neste, temos dito, com reiterada frequência, que a Revelação de Deus sempre passa por alguma “mediação histórica”, que Deus não age “sobre” a natureza, mas dentro dela, de forma imanente, e que não existe “um caminho direto entre Deus e o ser humano”. Porém, nove em cada dez cristãos continuam vendo a ação direta de Deus em suas vidas, a cada momento e em cada evento, embora a “graça” de um implique muitas vezes na “desgraça” do outro. Há algo até engraçado com a religiosidade humana. Para uns, Deus existe, mas não interfere. Neste sentido, Einstein se considerava “um ateu profundamente religioso”. Para outros, Deus interfere sempre. É só pedir e “a porta se abre” (Lc 11,9-13). Quem tem razão? Basicamente ambos.

Cada cosmovisão tem sua própria linguagem. Já observamos que as três cosmovisões, apesar de seu sequenciamento histórico, estão concomitantemente presentes. Elas interferem no crer e no agir de todos nós, mas não de forma idêntica. Em alguns, o novo já se sedimentou, e o velho morreu. Em outros, é o velho que ainda empolga e o novo não é sequer vislumbrado. Por isso existem religiosidades mais à moda antiga, transcendentais e outras mais modernas, imanentes. Quanto mais instruído ou, melhor dizendo, quanto mais “consciente” a pessoa se torna do mundo em que vive e do Deus que a criou, mais “secular” se torna seu pensamento, isto é, melhor entende a “autonomia das realidades terrestres” propagada por Gaudium et Spes. Ao compreender que as realidades terrestres, com inclusão do próprio ser humano, são governadas por leis e princípios inerentes a elas mesmas, sobram ao ser humano apenas duas opções: crer num Deus que age de forma imanente, dentro dos contextos históricos, ou então esquecê-lo de vez. Em âmbito mundial é este o maior desafio atual da pastoral.

A linguagem que usamos na pastoral ou está adaptada ao nosso público ou estaremos falando ao vento. Se usarmos a linguagem transcendental, uma faixa crescente da população, especialmente a classe média mais formada – a não ser que tenha sido “trabalhada” de forma um tanto quanto fundamentalista –, não nos entenderá. Sua tendência será procurar outro alimento espiritual. O especialista em secularização, Peter Berger, tem observado que o “supermercado religioso” hoje é abundante. Se usarmos a linguagem imanente, ainda que racionalmente mais correta, grande parte da população não se sentirá empolgada e tenderá a procurar cultos espirituais onde a emoção transcendental ainda está à flor da pele. Um dos complicadores nas Igrejas cristãs – não nas Igrejas evangélicas! – é que padres e pastores, por força de sua longa formação teológica, não se sentem mais à vontade com uma linguagem marcadamente transcendental. Não conseguem mais ver “demônios” atrás de cada desgraça humana, nem “milagres” de Deus em cada evento feliz.

Tendo diante de nós um público de consciência geralmente bem diversificada, a solução pastoral mais adequada, no nosso entender, é o uso do que poderíamos chamar de “linguagem trans-imanente”. Isto é, não sair do modelo racional da imanência, mas usá-lo com a maior emoção transcendental possível. Ainda que Deus não “intervenha” diretamente na sua criação, ele a “sustenta” permanentemente. Podemos perceber sua presença e ação amorosas nos incontáveis “sinais” – bons e maus – na estrada da nossa vida. Podemos nos alegrar por eles, como fez Jesus ao passar pelas praças da Galileia, ou chorar sobre eles, como fez Jesus ao contemplar a cidade de Jerusalém. Não precisamos de revelações mágicas, sobrenaturais, para conhecer nossa responsabilidade e nossa missão, ou para sensibilizar-nos com uma “ética humanitária e ecoplanetária”, como vimos no artigo sobre a espiritualidade ecológica. Tudo isso já está no “sacrário pessoal” com o qual nascemos. Mas não pode faltar, vindo do coração, “emoção transcendental” na nossa linguagem. Todo ser humano é carente de espiritualidade. Não ouvindo Deus na nossa linguagem, desliga. Existe um tesouro escondido no campo, e Jesus falava dele em parábolas (Mt 13,44). Belos exemplos de uma linguagem “trans-imanente”.

 

 

* Missionário do Verbo Divino,  sacerdote, formado em Filosofia, Teologia e Ciências Sociais. Atuou sempre na pastoral prática: na pastoral rural; na pastoral urbana em São Paulo; como educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo-SP, coordenando o programa de formação de lideranças eclesiais e o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no ITESP (Instituto de Teologia/SP). De 2000 a 2008, foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra/SP. Representa a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Atualmente, atua na pastoral paroquial de Diadema/SP. Além de cartilhas populares, publicou diversos artigos na REB.

NOTAS:

 

1. O presente artigo dá continuidade aos artigos “A Pastoral em Novas Perspectivas I a III”, publicados em Vida Pastoral, nos 278, 279 e 281.

2. Os artigos referidos foram publicados em Vida Pastoral, nos 279 e 281 de 2011.

3. Para aprofundamento sugerimos ler O processo civilizatório, de D. Ribeiro, São Paulo: Companhia das Letras, 2000, e The Axemaker´s Gift, de R. Ornstein e J. Burk, Nova York: G. Putnam´s Sons, 1995.

4. Expressão tirada de João Edênio dos Reis Valle, em Interpretando os sinais destes tempos agitados, REB, 263 / 2006, 569.

5. Para quem quer conhecer melhor esta importante inflexão no pensamento latino-americano, aconselhamos ler o livro de Octávio Ianni, Imperialismo na América Latina, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA CITADA

BAUM, G. A Igreja pró e contra a Democracia. Concilium, 322 / 2007.

BORGMAN, E. A “nova” Europa: um gesto espiritual. Concilium, 305 / 2004.

______. Verdade como conceito religioso. Concilium, 314 / 2006.

ENGEL, U. Religion and Violence: plea for a weak theology, New Blackfriars.

JUNKER-KELLY, M. As bases pré-políticas do Estado. Concilium, 314 / 2006.

MÍGUEZ, N. O. Jesus, o povo e presença política. Concilium 322 / 2007.

RUGGIERI, G. Uma religião civil europeia? Concilium, 305 / 2004.

SOBRINO, J. Crítica às democracias atuais e caminhos de humanização a partir da tradição bíblico-jesuânica. Concilium, 322 / 2007.

WILFRED, F. Cristianismo e processo democrático global. Concilium, 322 / 2007.

Pe. Nicolau João Bakker, svd