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Publicado em julho-agosto de 2011 - ano 52 - número 279

A pastoral em novas perspectivas (II): cosmovisão ecológica e perspectivas pastorais

Por Pe. Nicolau João Bakker, svd

A reflexão pastoral que segue tem íntima ligação com o artigo “A pastoral em novas perspectivas (I): introdução ao tema”, publicado em Vida Pastoral, n. 278, maio/jun. de 2011. Sugerimos, portanto, atenta leitura daquele artigo antes de ler a presente reflexão.

 

INTRODUÇÃO

Afirmamos, no referido artigo, que “não há nada que mais diretamente afeta a ação pastoral da Igreja do que a cosmovisão da época”. É uma ilusão pensar que o comportamento religioso das pessoas é consequência apenas das orientações que recebem da instituição religiosa à qual pertencem. Todas as tradições religiosas – incluindo sua direção e seus teólogos ou teólogas – são fortemente influenciadas pelo modo de pensar e pelo modo de agir próprios da época, e estes são fruto de incontáveis influências que escapam ao controle das instituições religiosas. Evidentemente, existe uma inter-relação: se, por um lado, a cosmovisão da época influencia a teologia, a espiritualidade e a ação concreta de qualquer tradição religiosa, por outro, todas as tradições religiosas exercem influência sobre a configuração da cosmovisão. Algo muito parecido com o que vemos no mais íntimo da vida e da matéria: as partes não estão isoladas e é o todo que dá sentido às partes.

Não convém basear a ação pastoral sobre o último grito teológico. A teologia é sempre uma busca, uma busca de águas mais profundas e mais ricas, uma nova maneira de ver e de falar mais adaptada à época. Para escapar de uma pastoral “novidadeira”, o que tentamos fazer é fundamentar a pastoral sobre uma espécie de sistematização daquilo que já se tornou comum ou consenso na teologia e nas ciências naturais em seu constante processo de atualização. Mesmo assim, os desafios pastorais são suficientemente assustadores. Os avanços das últimas décadas foram enormes. Hoje, sem perder o medo, não há como colocar “vinho novo em odres novos” (Mc 2,22).

 

1. POR UMA PASTORAL SEM DOGMATISMOS

1.1. Vulnerabilidade das cosmovisões teológica e antropológica

Uma nova cosmovisão significa “um novo modo de pensar sobre Deus, o mundo e a própria existência individual e coletiva”, como definimos. Trata-se de nova “lógica” que olha para os mesmos problemas de ângulos inteiramente diversos dos anteriores. Como consequência, surge também a necessidade de nova linguagem. Vimos que as Igrejas cristãs são fruto de uma cosmovisão, a teológica, que perdurou por milênios. Em meio a muitas outras tradições religiosas, a fé judaico-cristã tem como base o alicerce da “Revelação”. “Deus falou aos nossos pais” é a frase que encontramos com muita frequência nos escritos do Antigo Testamento. A grande questão que surge é: “como” Deus se revela? Na cosmovisão teológica, crer num Deus que se comunica diretamente com seu povo não causa nenhuma surpresa. Nessa cosmovisão, Deus é a causa explicativa de todas as coisas e está na origem de todos os eventos. Deus está tão presente quanto o próprio ar que se respira. Para Jesus, os sinais da ação divina e da chegada do reino messiânico eram por demais evidentes. Escandalizou-se com a cegueira dos fariseus, incapazes de discernir os “sinais dos tempos” (Mt 16,1-4).

Para muitas pessoas de boa-fé, essa cosmovisão teológica é inquestionável e extremamente atraente. O esplendor da cristandade medieval é a expressão mais visível desse modo de pensar. No entanto, trata-se de uma cosmovisão que carrega dentro de si grande vulnerabilidade: ela, facilmente, gera dogmatismos das mais variadas cores. Uma verdade diretamente revelada por Deus é inquestionável. Um mandamento gravado por Deus, pessoalmente, numa tábua de pedra não permite questionamentos. Autores bíblicos, inspirados por Deus de forma direta, sem nenhuma mediação histórica, merecem uma fé literal e incondicional. Em conjunto, as verdades assim reveladas formam um “depósito de fé” que não pode ser arranhado nem com um dedo sequer. Foi dentro dessa consciência teológica que a Igreja-instituição, desde muito cedo, desenvolveu sua doutrina ou teologia oficial. Fortemente influenciada pela filosofia grega da época, a Igreja dos primeiros séculos do cristianismo polemiza com as diversas correntes consideradas “heréticas”. Concílios sucessivos descartam o pensar teológico divergente e definem a doutrina oficial em dogmas cuja formulação “grega” é considerada definitiva e perene. Juntamente com as demais religiões monoteístas, a Igreja se considera como depositária de uma “Verdade Única”. Revelada diretamente por Deus, ela, fatalmente, será imutável para sempre. Assumindo que Deus a revelou de uma vez para sempre e que cabe à Igreja velar por esse depósito da fé, as verdades são tidas como absolutas e a doutrina, uma vez formulada, imutável.

Quando, a partir do século XVI, essa cosmovisão teológica vai sendo substituída pela cosmovisão antropológica e, em vez de Deus, é a própria razão humana que se torna o critério último do pensar e do agir, a tradição dogmática da Igreja não é superada; antes, ela se aprofunda ainda mais. Ameaçada, internamente, pela rebeldia das Igrejas protestantes e, externamente, pela ousadia crescente das ciências laicas, que rejeitam subordinar-se à autoridade religiosa, a Igreja entra num processo de reforço ainda maior das suas defesas dogmáticas e institucionais. Nos nossos dias, tornou-se difícil imaginar o clima eclesial daquela época. A Inquisição, hoje considerada deplorável chaga histórica, na época foi reputada “santa”. O Concílio de Trento (1545-1563) pode ser visto como o concílio que depositou todas as suas esperanças na proposta da “endoutrinação”. Conhecendo a “Verdade Única” pelo ensino obrigatório de um catecismo universal, os cristãos do mundo inteiro estariam protegidos contra tudo que fosse contrário aos dogmas da fé. A solene proclamação do dogma da infalibilidade papal, por ocasião do Concílio Vaticano I (1870), é considerada pela teologia atual o auge dessa tradição dogmática no interior da Igreja.

O atrito histórico entre a modernidade e a Igreja-instituição se deve, em grande parte, à profunda convicção da Igreja de que nenhuma ciência pode contrariar uma verdade revelada por Deus. Contra a verdade única da Igreja, os cientistas costumam alegar a verdade única da ciência. Tanto na cosmovisão teológica quanto na cosmovisão antropológica, uma solução pacífica parece impossível. O dogmatismo de ambos os lados o impede.

 

1.2. A “overdose dogmática” na Igreja e na pastoral

Não é de admirar que a Igreja, ainda hoje, continue profundamente marcada por essa tradição. O dogmatismo é particularmente evidente na defesa ferrenha que a Cúria romana faz das formulações dogmáticas do passado, embora o valor do dogma esteja no seu sentido e não na sua formulação. É visível também no pânico doentio diante de qualquer tentativa de relativizar algum conceito teológico e na condenação pública de seus autores. É igualmente visível na clara tentativa de Roma de retomar convicções e tradições pré-conciliares e nos combates incessantes às novas teologias, especialmente à latino-americana da libertação. Vemos o dogmatismo presente também na imposição de uma doutrina social única – por cima da imponente diversidade mundial em realidades sociais e culturais –, uma doutrina que consagra todos os pronunciamentos papais do passado, mas passa ao largo do que hoje mais profundamente ameaça a vida do planeta: o neocapitalismo financeiro do mundo ocidental.

Porém – já o dissemos – não adianta transformar Roma no nosso grande “muro de lamentações”. O dogmatismo está presente também na pastoral do nosso próprio dia a dia. Podemos constatar isso na dificuldade que sentimos diante dos desafios da evangelização. Por toda parte, a catequese continua presa aos tradicionais modelos de “endoutrinação” de crianças e adolescentes. Na hora de nos pormos diante da pergunta do que fazer para atingir, evangelicamente, nossos jovens e adultos não praticantes, ficamos sem resposta. Oferecemos “preparação” – doutrina – para isto ou aquilo, mas não conseguimos, efetivamente, motivar as pessoas. Nas últimas décadas, as Igrejas evangélicas têm tido maior sucesso. Demonstraremos no próximo artigo, “Pastoral em novas perspectivas (III)”, quanto isso tem a ver com “espiritualidade”, uma das três grandes fontes que alimentam a ação pastoral da Igreja. A Igreja Católica, durante séculos, priorizou uma “espiritualidade de fidelidade à doutrina”, em detrimento de uma “espiritualidade de fidelidade ao Espírito”. Esta, evidentemente, esteve sempre presente na Igreja, mas foram as Igrejas protestantes e evangélicas, exatamente pela sua oposição ao dogmatismo da Igreja Católica, que mais a alimentaram.

O dogmatismo está muito presente ainda no que nossa pastoral tem de mais visível e sensível: a liturgia, com destaque para a eucaristia. A “overdose dogmática” fica patente no rigor e na intocabilidade das prescrições litúrgicas, na quantidade de textos bíblicos a serem oferecidos e, especialmente, nas orações eucarísticas, que mais se parecem com cansativos tratados teológicos para auditórios especializados do que com efetivas celebrações alegres do mistério pascal para o povo comum.

 

1.3. A Igreja num beco sem saída

No decorrer da cosmovisão antropológica, com o avanço extraordinário das ciências e dando seguimento ao princípio básico de “crer com a razão” de santo Tomás de Aquino (†1274), os teólogos e teólogas cristãos perceberam, de forma cada vez mais convincente, que o dogmatismo exacerbado levou a Igreja a um beco sem saída. O Concílio Vaticano II não significou, como Roma esperava, um ponto final à grande efervescência teológica, bíblica, litúrgica e ecumênica do período pré-conciliar. A hermenêutica se tornou um dos mecanismos mais corriqueiros da teologia. Surgiram teologias as mais diversas, algumas marcadamente geográficas, como as latino-americanas, africanas e asiáticas, outras que buscam uma luz para temas específicos de grande atualidade, como a feminista, a negra, a indígena, a política e a ecológica, cada uma subdividindo-se de acordo com os enfoques específicos. Surgiu um pluralismo teológico de fato que, crescentemente, se torna também um pluralismo de princípio ou de direito. O que todas elas puseram em evidência é a “historicidade” do pensar teológico. Todas as teologias, em última instância, falam de Deus, daquele ou daquela que é radicalmente transcendental. Mas, ainda há pouco, um dos mais eminentes teólogos americanos, Roger Haight, observava que há pouca concordância universal quando se trata de falar em realidades transcendentais, mas existe ampla aceitação de uma suposição fundamental: “todo nosso contato com a realidade transcendente é mediado” (HAIGHT, 2008, P. 10).Outro renomado teólogo, Paul Tillich (†1965), há muito tempo já dizia o mesmo, embora não lembremos onde: “Não existe um caminho direto entre Deus e o ser humano”. De fato, existe uma postura consagrada na teologia atual que afirma que todo conhecimento possui um limite temporal e espacial. Toda verdade que nos arriscamos a anunciar é histórica, contextual, marcada até os ossos pela concepção e linguagem da época.

 

1.4. Fidelidade, sim, dogmatismo, não

A cosmovisão ecológica traz não apenas um novo pensar científico, como demonstramos no artigo introdutório ao nosso tema, mas também um novo pensar teológico. Uma das perspectivas pastorais mais promissoras que ela traz é, possivelmente, o fim do dogmatismo. É preciso perceber com maior clareza a íntima ligação entre teologia e cosmovisão da época. A teologia da Igreja não avança apenas com base na sua própria dinâmica e reflexão internas. Exatamente por não haver comunicação direta entre o mundo transcendental e o nosso mundo real, é a própria cosmovisão epocal que “inspira” a nossa teologia, assim como inspirou os autores bíblicos de outrora. Foi a lógica teológica que inspirou os padres conciliares de Éfeso e Calcedônia, como foi a lógica antropológica que fez o Vaticano II. Simplesmente não existe outro caminho.

Uma fidelidade à doutrina sem dúvida é necessária. A fidelidade à Aliança custou a vida aos profetas, também a Jesus. Mas isso não significa que a doutrina deva ser engessada em fórmulas fixas e muito menos que determinada formulação possa ser entendida sempre da mesma forma em outros tempos e em outros contextos culturais. Quando os teólogos afirmam que a revelação de Deus sempre passa por alguma mediação histórica e não existe uma comunicação direta entre o mundo transcendente e o mundo real, na verdade expressam um elemento importante das ciências naturais que embasam a cosmovisão ecológica. Falando da “eco-lógica do cérebro”, vimos que o sistema nervoso, com inclusão do cérebro humano, funciona como um circuito circular fechado. Qualquer comunicação “de fora” passa pelo crivo dos nossos sentidos, tornando qualquer conhecimento subjetivo. Por isso que “a verdade” é sempre a verdade de alguém que a julga de acordo com os critérios de seu tempo e seu lugar. Nenhum dogmatismo faz sentido dessa forma. O que está em jogo não é a Revelação, mas o “como” da Revelação. Podemos captá-la apenas pelos “sinais” do tempo, da história, ou pelos sinais da natureza, da ciência. Não há outro caminho, como não havia para Jesus ou para os autores bíblicos, nem existe alternativa mágica para nossos teólogos ou teólogas ou para o magistério eclesiástico.

Vimos também que, no interior da matéria e na “teia da vida”, não existem unidades independentes e autossuficientes. Tudo está inter-relacionado e é sempre o todo que dá sentido às partes. A lógica em tudo o que se refere à vida é sempre a mesma: interdependência e cooperação. Não soa muito estranho o magistério eclesiástico ou qualquer liderança pastoral colocar-se fora dessa lógica e afirmar ter acesso à verdade sem depender de ninguém? Na história de todas as religiões monoteístas, podemos encontrar fortes sinais de fundamentalismo dogmático, excessiva preocupação com a ortodoxia e centralização do poder por parte das lideranças religiosas. Como observamos, é essa a vulnerabilidade tanto da cosmovisão teológica quanto da antropológica. É surpreendente e maravilhoso encontrar em Jesus uma atitude radicalmente contrária a isso, como bem podemos perceber no relato das tentações do deserto (Lc 4,1-13) e em muitas outras passagens da vida de Jesus. O mais provável é que a cosmovisão ecológica, à medida que tome conta das mentes e corações, traga nova dinâmica. O dedo em riste da pastoral dogmática pode ceder lugar à “pastoral da mão aberta”, da pastoral que dialoga, que sabe ouvir e cooperar.

 

2. POR UMA PASTORAL COM CRIATIVIDADE

2.1. O caráter de estabilidade das cosmovisões teológica e antropológica

É uma pena que nossa tradição eclesial, do ponto de vista da ação pastoral, ainda esteja muito presa aos ditames das tradicionais cosmovisões teológica e antropológica. Sem deixar de lado o que elas trouxeram de bom, já era hora de provar o vinho novo da cosmovisão ecológica. Quando o crer e o agir do ser humano são uma resposta a um Deus que fala diretamente, tanto o crer quanto o agir terão a marca da estabilidade. Palavra de Deus não se discute. A cristandade medieval é a que melhor revela esse caráter de imutabilidade da consciência teológica. Já na lógica antropológica, quem dita as regras, a verdade e tudo o mais é a razão humana. Mas essa razão, sabemos hoje, foi, de fato, a razão do mundo ocidental, particularmente do europeu. Apesar da aparente instabilidade provocada por um estonteante processo científico-tecnológico, podemos observar uma nova estabilidade: o domínio inquestionável da cultura ocidental sobre todas as demais culturas e tradições. Com base nessa nova cosmovisão, surge uma Igreja e uma pastoral que, embora mais “progressistas”, continuarão apostando na estabilidade, desta vez fundamentada numa concepção eurocêntrica, racional e masculina, mal e mal disfarçando a tendência de impor seu predomínio cultural, religioso, econômico e político ao restante do mundo. Na atual teologia, todos reconhecem que o Vaticano II foi um concílio tipicamente eurocêntrico.

 

2.2. O caráter de criatividade da cosmovisão ecológica

A lógica da cosmovisão ecológica substitui a pastoral da estabilidade pela pastoral da criatividade. Estabilidade não é o natural da matéria, muito menos da vida. Por que haveria de ser da Igreja e da pastoral? Vimos que a matéria é criativa, a ponto de estar sempre em busca de novos relacionamentos, internos e externos, criando ciclos, superciclos, complexidades cada vez maiores e mais coerentes, até o nascimento de uma rede autossustentável. Mais patente ainda é a criatividade da própria vida. É como se a força criadora não estivesse fora, mas dentro dela. Os bioquímicos, mesmo quando ateus, reconhecem seu “deslumbramento” diante da desconcertante precisão com que uma célula viva extraordinariamente complexa se recria de forma permanente. E não como uma simples máquina copiadora, mas com capacidade interna de superar-se a si mesma e evoluir. Somente os mais insensíveis entre nós não percebem a incrível criatividade e diversidade biológicas existentes na natureza, e essa diversidade, afirmam os especialistas, representa apenas 1% das espécies vivas que já habitavam o planeta antes de nós.

 

2.3. É hora de soltar as amarras?

Será que chegou a hora de soltar as amarras do “barquinho de são Pedro” para pescar em águas mais profundas? Cremos que sim. Do ponto de vista pastoral, já passou da hora. Há quem afirme não convir aplicar à vida da Igreja o caráter de criatividade que caracteriza a vida material e biológica. Afinal, o ser humano é um ser “decaído”! Com sua capacidade cognitiva e sua liberdade de escolha, pode optar pelo mal, e é para superar a fragilidade humana que a Igreja mantém a firmeza de sua doutrina e de sua moral. Mas quem da Igreja está acima do bem e do mal? Quem tem o dom da comunicação direta com o Deus da vida? Além do mais, será que o ser humano é tão decaído assim? A escolha do mau caminho é uma fatalidade? A lição da vida e da história humana não o confirma. A “morte” está sempre presente, é verdade, mas é exatamente na morte que está a semente da “ressurreição”. Jesus o intuía quando afirmava que o grão de trigo devia morrer (Jo 12,24). Se pensarmos que Jesus ressuscitou, mas não existe ressurreição para nós, somos os mais miseráveis de todos, afirma Paulo (1Cor 15,12-19). A ressurreição possui até uma dimensão cósmica, afirma o mesmo apóstolo (Cl 1,15-20), fato ressaltado pela atual teologia com novo vigor.

Os amantes da estabilidade poderiam ainda alegar que existem mutações aleatórias e muitas delas, em certo sentido, põem a evolução para trás. Mas é justamente por isso que não vingam na natureza! Aliás, sabemos hoje que as mutações não são tão aleatórias assim. São mutações mínimas que não se opõem à estrutura biológica construída no passado. Vimos que a tendência dominante é evoluir na direção de maior complexidade e adaptabilidade ao meio. Da mesma forma, temos no nosso cérebro ou sistema nervoso uma espécie de “capacidade quântica” que nos leva sempre na direção de melhor qualidade de vida. Ao escrever uma carta ou um artigo, a cada momento “nos vem” uma nova palavra, que é sempre uma entre milhares possíveis. Ao fazer um discurso ou manter um diálogo com outra pessoa, a cada momento “nos vem” algo a comunicar, e este algo – que surgiu como que do nada – é sempre uma opção entre milhares possíveis. Nos nossos momentos de quietude, de contemplação, os pensamentos, os insights que nos ocorrem são sempre uns poucos em meio aos muitos outros que poderiam nos ocorrer. Somos seres quânticos. Ainda agimos como se fôssemos aquele elétron que, antes de ocupar sua nova posição – em busca de novo equilíbrio –, sonda as muitas posições possíveis. Ninguém, nem nós mesmos, podemos prever o que, no próximo momento, vamos escrever, dizer ou pensar. Há probabilidades, sim. Quem nos conhece e nos ama prevê melhor. Mas fato é que nunca agimos na direção da nossa própria autodestruição. Nem nós, nem o suicida, nem o criminoso ou a criminosa. Analisaremos isso com maior carinho no artigo sobre pastoral e espiritualidade na próxima edição de Vida Pastoral.

Voltemos ao ponto central: se a natureza se caracteriza pela criatividade e se sustenta graças a ela, e se a mente humana está aí para garantir a maior criatividade possível, por que a Igreja e a nossa pastoral haveriam de adotar o caminho da estabilidade? “Que se vaya la barca!” Com razão, a atual teologia, por toda parte, critica o dogmatismo excessivo e a postura generalizada de imobilismo que quase sempre encontramos nas nossas autoridades eclesiásticas. Cosmovisões, no entanto, impõem-se pelo próprio peso. Não será diferente com a cosmovisão ecológica. Sem sombra de dúvida, ouviremos algum dia um mea maxima culpa de muitos dos nossos bispos por terem amarrado a Igreja, por tanto tempo, àquilo que não gera vida, mas morte. Muitos dos nossos teólogos e teólogas definem o atual momento da Igreja como o momento do medo. E Jesus por acaso tinha medo quando enviou simples pescadores para o meio de lobos (Lc 10,3)? Não entregou carteirinha para seus ministros e ministras da Palavra. Confiou no Espírito que haveria de inspirá-los (Lc 12,12). É preciso abrir nossa pastoral à criatividade do Espírito. Ouvir os longínquos apelos do protestantismo e os atuais apelos das Igrejas evangélicas e tornar a nossa pastoral mais “Espírito-cêntrica”. Desde o Concílio de Trento, nossa única “tábua de salvação” foi a doutrina. Evangelizar, porém – ressalta o Documento de Aparecida –, é antes de tudo “fascinar” o povo por Alguém (n.244). Liturgia é muito mais do que ler, é celebrar a vida recebida de Alguém, a vida que todas as pessoas devem ter em plenitude (Jo 10,10). Nossa pastoral ainda está presa à “endoutrinação”. Falta-lhe a emoção do Espírito. Havendo o Espírito, qualquer criatividade é bem-vinda. Vida é criatividade.

 

3. A “DINÂMICA DA REDE” NA AÇÃO PASTORAL

3.1. É na “rede” que o peixe cai

O conceito de “rede”, hoje, é muito forte nas ciências sociais, embora seja relativamente recente. A biologia evolutiva ajudou muito a pôr o conceito em destaque. No tempo pós-Darwin era comum, especialmente entre os darwinistas sociais, apelar ao conceito de “natureza rubra nos dentes e nas garras”. Na sociedade humana, como na floresta selvagem, apenas os mais fortes teriam condições de sobreviver e progredir. Posteriormente, com a descoberta do “princípio da auto-organização” como característica principal da vida, o conceito de competição foi substituído pelo conceito de cooperação. A “selvageria” que observamos na floresta, com animais se comendo uns aos outros dentro de uma “natural” cadeia alimentar, na verdade representa a “paz” das florestas. É graças à presença dessas mortes que a vida pode – sem qualquer prejuízo ambiental – sustentar-se de forma permanente. Em cada célula viva ou em cada pequeno “nicho ecológico”, como também em qualquer ecossistema ou biota planetária, o princípio é sempre o mesmo: as partes cooperam umas com as outras para manter o todo.

Apenas seres humanos – ou algum imprevisível cataclismo natural, como, historicamente, já ocorreu – têm condições para rasgar a rede e interromper a “teia da vida”, como já observamos na introdução ao nosso tema. A mente humana, porém, biologicamente, não foi programada para “poluir” seu meio ambiente; ao contrário, foi feita para, com grande criatividade, preservá-lo. Por isso é pouco provável que a humanidade acabe consigo mesma ou com o planeta. Ameaças igualmente sérias como as de hoje já ocorreram no passado. Temia-se a falta de comida devido a um incontrolável crescimento populacional e o fim do planeta por uma iminente hecatombe nuclear. Hoje, além das seriíssimas ameaças ambientais e sociais, surge o medo do fundamentalismo terrorista vindo de um suposto “eixo do mal”. Jesus já percebeu que, com cada demônio subjugado, sete outros tomariam o lugar (Mt 12,43-45). Os cientistas nos advertem de que não podemos ser demasiadamente otimistas, mas a fé nos diz que a vida vence a morte (1Cor 15).

É importante observar que a constituição de “redes” para preservar a vida ameaçada tem crescido mais fora do que dentro dos limites institucionais da Igreja. Nossa pastoral ainda é predominantemente “intraeclesial”, apesar das mais de 40 Campanhas da Fraternidade que nos convidaram a ampliar os horizontes. Agimos como se não existissem pessoas interessadas fora dos limites das nossas comunidades eclesiais ou paróquias. Tudo tem de estar sob nosso controle. Hoje existem pastorais para tudo que se possa imaginar. Todas as pessoas são bem-vindas desde que seja “na comunidade”. No Brasil, foram as CEBs que melhor entenderam ser preciso constituir redes em torno dos grandes objetivos da sociedade, mas, mesmo assim, os “vagões” dos grandes encontros intereclesiais são compostos basicamente de lideranças das nossas próprias comunidades eclesiais. Redes autenticamente pluripartidárias e suprarreligiosas encontramos, com maior frequência, entre as ONGs, mas também estas, infelizmente, costumam funcionar de forma paralela às comunidades religiosas.

Constituir grandes redes ou articulações nos níveis mais altos, sejam regionais, nacionais ou mundiais, é algo da maior importância. Articulações como o Fórum Social Mundial e encontros nacionais como os de fé e política sempre deixam suas marcas. A CNBB, por meio da coordenação das pastorais sociais, tem dado ênfase crescente à necessidade de maior articulação entre as forças existentes. A Semana Social e o Grito dos Excluídos, além de diversas outras experiências pastorais, têm sido exemplares nesse sentido. Parece-nos, porém, que “o buraco está mais embaixo”. Quando as articulações nos níveis mais altos não têm repercussão ou ressonância nos níveis mais baixos, elas tendem a ficar sem sustentação. Um dos maiores desafios da pastoral, atualmente, é a constituição de redes em nível local. Redes com grandes buracos não funcionam. Boa parte da vida do pescador é gasta no conserto de sua rede, com a grande preocupação de fazer as malhas na medida certa e sem deixar buracos. Afinal, como ele diz, “é na rede que o peixe cai”.

 

3.2. Um exemplo concreto

Sendo a constituição de redes em nível local nova perspectiva pastoral por excelência, gostaríamos de apresentar um exemplo concreto. Não para ser copiado, mas para servir de inspiração, adaptado às circunstâncias. Apresentaremos a experiência mediante dados em ordem cronológica:

No final da década de 1980 e início da década de 1990, a região do Jd. Ângela e Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, se transformou em campeã nacional de violência urbana. Em 1995, a ONU declarou o Jd. Ângela como “o lugar mais violento do mundo”, com 110 homicídios para cada 100 mil habitantes.

Em 1996, o Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP/CL) e a Região Pastoral M’Boi Mirim decidem formar uma parceria e, numa reunião conjunta com as lideranças das CEBs, criam o “Fórum em Defesa da Vida contra a Violência”. Um fórum suprapartidário e suprarreligioso.

Ainda em 1996, o fórum realiza, em dia de finados, sua primeira “Caminhada em Defesa da Vida contra a Violência”. Em anos posteriores, a caminhada – realizada até hoje – chega a reunir 20 mil participantes, com grande destaque na mídia.

Como resposta a um simples convite, sem formalidades e sem compromisso, o fórum, em 1999, chega a reunir regular e mensalmente os representantes de 200 entidades as mais diversas, das mais simples associações de bairro às mais sofisticadas organizações universitárias. A coordenação mensal reúne, livremente, os representantes de qualquer entidade.

Entre 1997 e 2000, as diversas entidades, entre as quais muitas escolas, creches, bairros, Igrejas de diversas denominações, além de outras, elaboram propostas para a superação da violência e, em seminários regulares, as apresentam a autoridades municipais e estaduais. Ainda em 1999, as propostas são sistematizadas no documento Em defesa da vida. Em 2002, o governo Lula (em preparação) vem ao Jd. Ângela para acolher as propostas do documento.

No decorrer do tempo, o fórum, além da reflexão permanente das entidades, busca assessorias e apoios técnicos e políticos os mais diversos. Destacam-se o Ministério Público Democrático, a Associação dos Juízes para a Democracia e até a Associação dos Delegados para a Democracia.

Até hoje, o fórum e sua coordenação se reúnem regularmente, mantendo, aproximadamente, a mesma dinâmica (Em defesa da vida, 1999).

Hoje ninguém mais cita a região do Jd. Ângela e Capão Redondo como a mais violenta do mundo. A resposta política a tão forte rede de comunidades religiosas e organizações populares foi extraordinária. Surgiu vida em muito maior plenitude. Dica importante para uma nova pastoral que queira corresponder à lógica ecológica.

 

4. POR UMA PASTORAL QUE ROMPA COM A ESTRUTURA CLERICAL

4.1. Aparecida insiste em “reformas institucionais”

O Documento de Aparecida, sem tratar explicitamente do assunto, deixou uma mensagem: há necessidade de reformas espirituais, pastorais “e também institucionais” (n. 367). Num encontro como o de Aparecida, por razões diplomáticas, não é fácil aprofundar esse tema. Para os sociólogos ou cientistas sociais, é mais evidente a direta e íntima ligação entre estruturas institucionais e práticas pastorais, mas também teólogos e teólogas do mundo inteiro têm insistido cada vez mais na grande inconveniência de adiar por mais tempo as reformas institucionais de que a Igreja necessita. Comentando a grande esperança de renovação suscitada pelo Concílio Vaticano II e a mais do que evidente tentativa – principalmente depois do Sínodo de 1985 – de rever a situação e “voltar à grande disciplina”, os teólogos em geral têm atribuído esse refluxo ao fato de o concílio não ter tido a coragem ou a possibilidade de implementar as reformas institucionais que, àquela altura, já estavam na ordem do dia. Os teólogos e teólogas da América Latina têm atribuído o refluxo das CEBs também à atitude impositiva de uma nova hierarquia de caráter mais conservador. Não acreditamos que seja tão simples assim, mas “onde há fumaça há fogo”.

 

4.2. Estrutura clerical onde?

Gostaríamos de fazer a nossa análise com base no que qualquer pessoa pode observar em qualquer lugar do Brasil (e do mundo). No artigo de introdução ao tema das novas perspectivas pastorais, observamos que, apenas no nosso país, estamos “perdendo”, anualmente, 1 milhão de católicos, que “emigram”, em geral, para as Igrejas evangélicas. De onde vem um poder de convencimento tão extraordinário? Não deixa de ser uma simplificação, mas a resposta mais adequada, provavelmente, é: as Igrejas evangélicas não têm estrutura clerical. Na educação popular, costumava-se dizer que “cada ponto de vista é a vista a partir de um ponto”. Pois o “ponto” de um pastor evangélico é radicalmente diferente do ponto de um padre católico.

O pastor evangélico, normalmente, é casado, o que o identifica espontaneamente com o jeito de ser do povo. Normalmente, ele exerce uma profissão “leiga”, o que o faz estar “inserido” naquilo que é mais incisivo na sociedade e em qualquer família. Normalmente, não possui estudo superior, às vezes nem médio, o que lhe permite com maior naturalidade ver, sentir e falar como a massa do povo comum não letrado. Normalmente, não tem acima de si rígida estrutura hierárquica, o que lhe permite vivenciar e pregar com maior liberdade sua fidelidade ao Espírito. Normalmente, não corre de comunidade em comunidade, obedecendo a uma complicada agenda paroquial supracomunitária. Todos esses fatores facilitam ao pastor evangélico manter e vivenciar uma fé popular comum. A doutrina e o código moral que prega, via de regra, não são fruto de uma imposição “superior”, mas da fé que o empolga. Se souber expressar-se com desenvoltura, para o povo é o que basta. E surgem pastores assim aos milhares, dezenas de milhares. São poucos os limites institucionais.

Onde trabalhamos atualmente, numa paróquia em Diadema-SP, acreditamos haver, em qualquer uma das ruas, uma igreja evangélica a cada cem metros, em média. No Brasil, os “praticantes” evangélicos já devem ser maioria. Os muitos especialistas da Igreja Católica que se ocupam desse tema costumam lembrar alguns pontos muito preocupantes na espiritualidade evangélica, pentecostal e, especialmente, neopentecostal. Também os conhecemos, mas entendemos que não nos dispensam de forte autocrítica. O sinal amarelo está piscando há muito tempo. Ao abordar, no próximo número, a relação entre espiritualidade e cosmovisão ecológica, tentaremos aprofundar esse ponto. Ou devolvemos à Igreja a emoção do Espírito, ou a pastoral e, na verdade, toda a instituição continuarão no acima referido “beco sem saída”.

O Concílio Vaticano II trocou o modelo hierárquico de Igreja pelo modelo comunitário de povo de Deus, onde o Espírito se manifesta em cada batizado e cada batizada. Não se pode resistir ao Espírito por muito tempo sem graves prejuízos. Não importa se a vida é gerada por esta ou aquela religião ou Igreja, mas acreditamos que as riquezas acumuladas pela Igreja Católica no decorrer da história são preciosas demais para serem desperdiçadas. Pastoralmente não faz sentido. Mantendo o carisma da vida religiosa e do celibato livremente assumido, leigas ou leigos casados, em princípio, deveriam ter acesso ao ministério ordenado. Com nossa grande quantidade de pessoas teológica e espiritualmente bem preparadas, teríamos mil oportunidades para bem capacitá-los, sem apagar o Espírito. A excessiva dogmatização, reforçada pelo fechamento doutrinário em reação ao protestantismo e à modernidade, e o longo e rigoroso enquadramento do clero católico num modelo de formação e estilo de vida extremamente exigentes, além de uma obediência irrestrita a prescrições litúrgicas e canônicas, deram a esse clero um “ponto de vista” muito racional e pouco emocional. As novas perspectivas pastorais que surgem da cosmovisão ecológica clamam por uma postura mais corajosa dos nossos bispos, os únicos que podem, com eficácia, “tocar as trombetas e derrubar os muros de Jericó” (Js 6,5).

 

LIVROS CITADOS

CDHEP/CL. “Em Defesa da Vida”. São Paulo, 1999 (edição particular).

HAIGHT, R. Escritura: uma norma pluralista para entender nossa salvação em J. Cristo, Concilium no 326, 2008.

 

 

 

* Missionário do Verbo Divino, svd, sacerdote, formado em Filosofia, Teologia e Ciências Sociais. Atuou sempre na pastoral prática: na pastoral rural; na pastoral urbana em São Paulo; como educador no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo-SP, coordenando o programa de formação de lideranças eclesiais e o de combate à violência urbana. Lecionou Teologia Pastoral no Itesp (Instituto de Teologia/SP). De 2000 a 2008, foi auxiliar na pastoral e vereador, pelo PT, no município de Holambra-SP. Representa a CRB no Conselho Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/SP). Atualmente, atua na pastoral paroquial de Diadema-SP. Além de cartilhas populares, publicou diversos artigos na REB.

 

 

Pe. Nicolau João Bakker, svd