Publicado em número 269 - (pp. 5-10)
As fontes Patrísticas: Importância e atualidade para a Igreja
Por Pe. Paulo César Barros, sj
1. Introdução
O período em que viveram os Padres da Igreja e a assim chamada patrística pode ser definido, com propriedade, como um tempo áureo da era cristã. Sucede ao tempo dos apóstolos e tem características singulares e marcantes. A palavra “Padres” — ou “Pais” (que seria melhor vocábulo em português) — tem raízes já no Antigo Testamento (cf. Eclo 44-50 e Lc 1,54-55) e traduz a relação que tais personagens tiveram com a Igreja: deram enorme contribuição na sua organização e na elaboração da doutrina cristã justamente nos seus primeiros tempos — vale dizer, na sua “infância”. Como pais devotados, cuidaram da Igreja nos seus primeiros passos, ajudando-a a firmar-se nos diversos contextos em que ela se inculturou.
Como se trata de um período relativamente longo, os estudiosos da patrística dividem-na em algumas fases, a saber: a dos Padres apostólicos (Clemente Romano, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna…); a dos Padres apologistas (Justino, Ireneu de Lião, Clemente de Alexandria, Orígenes…); por fim, a fase de “maturidade” da patrística (no Oriente, Basílio, Teodoreto de Ciro; no Ocidente, no fim do séc. IV e início do séc. V, Agostinho, Jerônimo…). Costuma-se classificar as personagens desses tempos iniciais da Igreja em dois grandes grupos: os “Padres da Igreja” propriamente ditos e os “escritores eclesiásticos”. Os primeiros se distinguem por três características: ortodoxia da doutrina, santidade pessoal e comunhão com a Igreja. Segundo essa diferenciação, figuras importantes como Tertuliano e Orígenes, por exemplo, muito embora tenham composto obras de valor, que constituem referência para a reflexão teológica e para a vida da Igreja, são reconhecidas apenas como “escritores eclesiásticos”.
Há controvérsias quanto ao término do período patrístico. Comumente se admite que o tempo dos Padres se conclui, no Ocidente, com Isidoro de Sevilha († 636) e, no Oriente, com João Damasceno († c. 750), mas há quem estenda o tempo dos Padres, no Ocidente, até Bernardo de Claraval († 1153).
Grande parte da literatura patrística foi composta em grego e latim; porém há textos patrísticos também em siríaco (por exemplo, Efrém de Nísibe, do séc. IV), copta (é o caso de Pacômio, do séc. IV) e armênio.
2. Os Padres e a Bíblia
Herdeiros da tradição bíblica, os Padres foram grandes frequentadores das Escrituras sagradas. Os famosos comentários patrísticos dos textos bíblicos, por exemplo, deixam transparecer o assíduo contato dos Padres com os livros sagrados. Recordemos aqui o exemplo de Ambrósio de Milão, que se consagrou ao estudo sistemático da Bíblia, de início como preparação para a ordenação episcopal e posteriormente como empenho assumido por toda a vida.[1]
Antes de comentar os textos bíblicos, os Padres os “ruminavam” no âmbito da oração pessoal e da liturgia. Entendiam não ser possível falar de Deus sem antes falar com Deus; para tanto, usavam a Bíblia como instrumento de comunicação com ele. E mais: os textos sagrados ocupavam lugar de destaque, quer nas polêmicas, quer nos escritos dogmáticos e de moral, sobretudo para fundamentar posições assumidas nas controvérsias com os que não aceitavam o cristianismo ou mesmo com cristãos de comportamento e/ou ideias contrárias à doutrina da assim chamada “grande Igreja”. Vale a pena mencionar o testemunho de Agostinho de Hipona, ao dizer que se baseia nas Escrituras para “explicar” a Trindade: “No livro primeiro [da obra A Trindade], apoiando-me nas Escrituras sagradas, mostrei a unidade e a igualdade daquela suprema Trindade”.[2]
Ainda a propósito dessa questão, tenha-se presente que, nos séculos I e II, a leitura cristã do Antigo Testamento foi rejeitada pelos gnósticos (que estabeleciam contraste entre o Deus justo do AT e o Deus bondoso do NT) e pelos marcionitas (seguidores de Marcião). Os Padres viram-se, então, diante de grave problema: como relacionar mutuamente o Antigo e o Novo Testamento? Responde por eles Agostinho de Hipona, ao dizer: “o Novo Testamento está oculto no Antigo, e o Antigo é desvelado no Novo”[3]. Por sua vez, Ireneu de Lião, entre a segunda metade do século II e a primeira metade do século III, chama a atenção para o progresso do NT em relação ao AT contra as posições que supunham a ruptura entre ambos.
Os Padres liam a Escritura em sua totalidade e a situavam no amplo panorama da história da salvação, reconhecendo que a interpretação mais acertada dá-se no interior da Escritura mesma. Convém recordar que, nessa leitura da Escritura integral, eles faziam amplo uso da tipologia, aliás, já presente nas cartas de são Paulo: os “tipos” no AT, sobretudo personagens, são antevisões do que se realizará plenamente em Cristo, no NT. Apenas um exemplo: Abel é tipo do Cristo bom pastor, uma vez que essa personagem do AT fora pastor (cf. Agostinho, Contra Fausto, 12,9-10). Tendo sido morto por seu irmão, Caim, Abel também é imagem do sacrifício eucarístico (cf. Ambrósio, Gregório Nazianzeno, João Crisóstomo, Cirilo de Alexandria, Melitão de Sardes) e representação antecipada do mártir (Cipriano, Ambrósio), enquanto inocente que teve o seu sangue derramado. Abel é “o primeiro justo”, dirá Agostinho.[4] O próprio Agostinho, em A cidade de Deus, relaciona Caim à cidade do demônio e Abel à cidade de Deus.[5] E ainda, nesse mesmo livro, Abel é visto como imagem da Igreja, peregrina e perseguida pelo mundo, mas consolada por Deus.[6]
Já que os Padres da Igreja tinham formação clássica, aplicavam na leitura dos textos sagrados procedimentos interpretativos próprios dos gramáticos antigos. A respeito disso, recorde-se a influência que teve Fílon de Alexandria, judeu helenizado, sobre os Padres no que concerne ao método alegórico de interpretação das Escrituras, bem como nos campos da teologia e da espiritualidade. Clemente, Orígenes, Gregório de Nissa e Ambrósio receberam muito dessa influência de Fílon. Fazendo uso de tais ferramentas de interpretação dos escritos sagrados, os Padres experimentavam aqui uma tensão nada fácil, pressentida quando se recorda a advertência de Paulo sobre o risco de utilizar, na compreensão da fé, a “sabedoria segundo a carne” e não a “sabedoria proveniente de Deus” (cf. 1Cor 1,17-31) ou, ainda, ao considerar estas palavras: “Que ninguém vos faça prisioneiros de teorias e conversas sem fundamento, conforme tradições humanas, segundo os elementos do cosmo, e não segundo Cristo” (Cl 2,8). Todavia, os Padres empregavam tais ferramentas de leitura das Escrituras tendo Cristo e a Igreja como insubstituíveis referências de interpretação. Assim, a confissão de Cristo e a fé vivida na Igreja eram, para os Padres, de significado extremamente importante. Isso porque a orientação soteriológica da revelação bíblica lhes era decisiva. Em Cristo, a história da salvação chega a seu ponto alto, e a acolhida da oferta de salvação não pode ocorrer fora da Igreja. No mundo da patrística, não se entende Cristo sem a Igreja nem a Igreja sem Cristo, como não se entende que alguém possa ser salvo sem pertencer à Igreja. Portanto, os instrumentos “profanos” de interpretação dos textos sagrados eram usados numa etapa prévia, de acesso ao texto como texto, e esta, graças à ação do Espírito Santo na comunhão eclesial — graças Àquele que nos conduz a toda a verdade (cf. Jo 16,13) —, evoluía para uma compreensão profunda e transformadora de tais textos. O mesmo se diga da filosofia, utilizada pelos Padres como etapa preparatória na reflexão e na pregação da fé cristã.
3. Os Padres e a Igreja
Muito embora os Padres da Igreja tenham sido, cada qual a seu modo, figuras importantes na explicitação do mistério cristão, tal tarefa não se realizava sem a experiência da comunhão eclesial, sem o rico e profundo “sentido da fé” (sensus fidei), vivido por todos os membros do povo de Deus. Dessa forma, os Padres entendiam que a teologia devia ser a “explicação” da experiência pessoal e comunitária do mistério de Deus. Resulta daí a importância que os Padres atribuíam à liturgia e à catequese mistagógica. A catequese mistagógica (ou seja, a explicação dos mistérios da fé cristã) era praticada com frequência e naturalidade nas comunidades eclesiais nos tempos da patrística. A explicação dos ritos litúrgicos era meio muito oportuno para iniciar na fé cristã os que aspiravam a pertencer à Igreja. E, ainda no contexto litúrgico, a homilia, derivada da liturgia sinagogal, gozava de lugar privilegiado. Aprendemos dos Padres que a homilia deve levar os fiéis a perceber a unidade existente entre a palavra proclamada e o sacramento celebrado. Ou seja, na celebração dos sacramentos, a liturgia da palavra não é uma “preparação” para o que vem depois: é já celebração, é já experiência de comunhão dos homens com o Deus Trindade que fala a seu povo e ouve seus clamores.
Os Padres tinham grande amor à Igreja. Entendiam-na como Esposa de Cristo (cf. Ap 19,7; 21,9) e, portanto, merecedora de atenção e afeto. Agostinho de Hipona, por exemplo, gostava de dizer que a missão do bispo é ser como João Batista: “amigo do esposo” (cf. Jo 3,29). Segundo esse entendimento, a missão do bispo é zelar pelo bem e pela unidade da Igreja, e fazê-lo como demonstração de fidelidade ao Esposo. O ministério pastoral era, para eles, o grande compromisso de vida eclesial. Na sua maioria, os Padres eram pastores: bispos e presbíteros. Sua atuação pastoral desenvolvia-se como resposta a problemas concretos das comunidades eclesiais, no contato direto com os fiéis. Daí o lugar de destaque que os sermões, as catequeses e as cartas, assim como as obras ascéticas e morais, ocupam na literatura patrística, justamente em razão de sua finalidade pastoral. São textos mais de natureza prática que especulativa. Nos Padres, a articulação entre teologia e pastoral era espontânea: eles não se propunham o problema da necessidade ou da conveniência de uma “teologia pastoral”. A seu ver, a reflexão teológica tinha finalidade pastoral, pura e simplesmente.
O compromisso com a Igreja se manifestava também no empenho pela organização eclesiástica, com a configuração dos ministérios de governo para o bem de toda a Igreja. Como exemplo dessa atenção, basta recordar as famosas cartas de Inácio de Antioquia, escritas a caminho de seu martírio em Roma, por volta do ano 107, sob o imperador Trajano. Ressalte-se também a grande atenção dos Padres para com a unidade da Igreja. São frequentes, em suas homilias e catequeses, as exortações para a manutenção da integridade do corpo eclesial de Cristo. Dessa forma, nada lhes repugnava mais do que cismas e heresias. Mencione-se aqui, por exemplo, a polêmica de Agostinho de Hipona com os cismáticos donatistas, no norte da África, nos séculos IV e V. Ainda que nos pareça duro e intransigente o modo pelo qual Agostinho se dirigia aos separatistas, não se pode negar sua preocupação sincera com a integridade do corpo eclesial, ameaçado de dilaceração pelas tendências cismáticas.
Ainda no que diz respeito à vida eclesial, era muito significativo para os Padres o sentido de “tradição” (que nada tem que ver com “tradicionalismo”). No período patrístico, torna-se sólida a consciência de que a Igreja é lugar de transmissão e recepção da fé cristã. Os Padres souberam falar do evangelho, e o fizeram bem, porque antes souberam escutá-lo de outros. Como exemplo, mencionemos a figura de Policarpo de Esmirna, que, tendo ouvido Inácio de Antioquia, foi escutado por Ireneu de Lião. Este sentido de tradição — transmissão da fé cristã por palavras e testemunhos —, que, aliás, se confunde com o sentido de Igreja, será decisivo, para os Padres, na preservação das quatro clássicas propriedades da Igreja, a saber: a unidade, a santidade, a catolicidade e a apostolicidade.
4. Os Padres e a liturgia
Para os Padres da Igreja, a liturgia é a “escola da fé” por excelência. Desse modo, não por acaso o batismo tem lugar de destaque na liturgia patrística. Se Tertuliano é tido como o autor do primeiro tratado sobre esse sacramento (O batismo), Ireneu de Lião e Orígenes trabalham mais detalhadamente sua teologia. Não nos esqueçamos ainda do valor que têm aqui as catequeses sobre o batismo em Padres como Ambrósio, Agostinho, Cirilo de Jerusalém, João Crisóstomo e Teodoro de Mopsuéstia. Mencione-se ainda simples nota histórica a respeito das controvérsias antigas em torno desse sacramento: Cipriano de Cartago não considerava válido o batismo celebrado por heréticos e cismáticos, e Agostinho de Hipona esclarecerá essa difícil questão, ao associar a validade do batismo não à retidão moral do ministro, mas ao fato de que é Cristo quem, em última instância, “preside” à celebração do sacramento: “Ainda que Pedro batize, Cristo é quem batiza; ainda que Paulo batize, Cristo é quem batiza; ainda que Judas batize, Cristo é quem batiza”[7].
A relação entre eucaristia e Igreja era natural e óbvia nos tempos da patrística. A expressão emblemática de Henri de Lubac — “a Igreja faz a eucaristia, e a eucaristia faz a Igreja” — traduz magnificamente esse dado da patrística. Encontramos nos Padres vigorosa eclesiologia eucarística, que torna evidente o caráter sacramental da Igreja. Ao tempo dos Padres, percebia-se com clareza que a celebração eucarística era a principal manifestação da Igreja, local e universal ao mesmo tempo. Além disso, era-lhes muito claro o compromisso ético que a eucaristia traz em si mesma. Recordem-se, a propósito, as homilias eucarísticas de João Crisóstomo como grande motivação ao compromisso social inerente ao sacramento da eucaristia. Pessoas de síntese, os Padres sabiam aliar, com grande lucidez, fé e compromisso social, o louvor a Deus e a vida humana feliz, como Ireneu de Lião deixou transparecer nesta bela e conhecida frase: “A glória de Deus é o homem que vive, e a vida do homem é a visão de Deus”[8].
5. Os Padres e a teologia
“Explicar” o mistério de Deus era enorme desafio para os Padres. Buscavam fazê-lo, embora cientes da limitação da linguagem humana. Os Padres da Igreja foram os primeiros elaboradores da doutrina cristã e, nesse sentido, do vocabulário específico dessa mesma doutrina. Não por acaso, foram contemporâneos dos primeiros concílios ecumênicos da história da Igreja, a saber: Niceia (no ano 325), Constantinopla (381), Éfeso (431), Calcedônia (451), Constantinopla II (553), Constantinopla III (681) e Niceia II (787). Os primeiros concílios da Igreja foram eventos únicos e de grande importância nos quais se lançaram as bases da doutrina cristã, indispensável para organizar a vida interna da Igreja e dinamizar a sua missão. Cabe aqui mencionar também os sínodos locais da Antiguidade, que também contaram com a significativa participação dos Padres e nos quais se discutiam questões importantes para a vida das Igrejas locais ou de determinadas regiões, com repercussões em todo o corpo eclesial. Nesse particular, foi grande o mérito dos Padres na articulação entre fé e razão, ou seja, no entendimento e exposição da fé cristã por meio das categorias intelectuais de que dispunham na época. É o que entendemos por “intelecção da fé” (intellectus fidei). Os Padres praticaram, dessa forma, significativo e louvável exercício de inculturação da fé cristã num ambiente complexo como era o império romano, marcado por inquietações que afligiam as consciências — tais como a morte e o destino, a redenção do mal, a purificação espiritual e a união com Deus —, pela pluralidade de cultos pagãos e pelo sincretismo religioso característicos da Antiguidade.
6. Os Padres e as resistências iniciais ao cristianismo
Sobretudo nos primeiros séculos da Igreja, os Padres passaram por dificuldades especiais. É o tempo do florescimento da apologética, precisamente nos séculos II e III, que teve duas tendências mais destacadas. Uma era interessada em estabelecer diálogo com o diferente (representante dessa corrente é, por exemplo, Melitão de Sardes). A outra assumia, pura e simplesmente, uma posição crítica diante do paganismo (é o caso de Tertuliano). Apologista famoso é Justino, nascido na Palestina e convertido ao cristianismo: é o autor do Diálogo com o judeu Trifão, obra mediante a qual responde às dificuldades apresentadas ao cristianismo pelo judaísmo. Os cristãos eram vítimas de preconceitos os mais diversos, tais como a acusação de professarem uma religião ateia. Para exemplificar isso, basta mencionar esta provocação do filósofo pagão Celso: “Por que vós, cristãos, não tendes altares, nem estátuas, nem templos?”[9] Evoquemos também as objeções de outros filósofos, tais como Luciano de Samósata e os sofistas (aos quais responde Clemente de Alexandria com a obra Stromata) e Frontão de Cirta. Em meio a esses desafios, os Padres explicitaram a fé cristã com categorias das escolas filosóficas então correntes, entre as quais se destacavam o platonismo, o estoicismo e o neoplatonismo. Além dessas perseguições difusas e de natureza ideológica, recordemos as oficiais, do império romano, que se deram ora de modo severo, ora de modo brando e às quais alguns Padres responderam com a aceitação do martírio, como Cipriano de Cartago e Inácio de Antioquia.
7. Os Padres e o Concílio Vaticano II
Nas décadas anteriores ao Vaticano II, os estudos em patrística ofereceram rico e profundo conteúdo doutrinário ao concílio, uma vez que proporcionaram grande incremento às pesquisas em liturgia, Bíblia, teologia sistemática, ecumenismo etc. A renovação teológica que então se deu nesse tempo é devedora, em grande parte, à redescoberta dos Padres da Igreja por teólogos tais como Yves Congar, Josef Ratzinger e Karl Rahner. Muitos desses teólogos, dos quais os citados são apenas exemplos, na qualidade de peritos do concílio, deram valiosa contribuição na reflexão e nas decisões dos Padres conciliares. Convém mencionar, nessa perspectiva, a Nova Teologia (Nouvelle Théologie), na França, como programa teológico que se alimentou muito da revisitação dos Padres da Igreja.
Ao lermos os documentos do Vaticano II, encontramos muitas notas de rodapé com citações dos Padres da Igreja. Deu-se, nesse importante sínodo, decisivo resgate desse formidável patrimônio eclesial. Quando falamos de recepção do Concílio Vaticano II, devemos nos ater não exclusivamente ao seu conteúdo doutrinal; é preciso aprender do concílio que teologia se faz, a rigor, como releitura das fontes da tradição eclesial. E releitura quer dizer reinterpretação. Não podemos ler os Padres da Igreja como quem faz arqueologia, mas, sim, como quem busca, nas grandes referências do passado, inspiração para a solução dos problemas de hoje. Com efeito, assim fizeram os padres conciliares no Vaticano II.
8. Os Padres e sua atualidade
Com relação à leitura das Escrituras, cabe-nos aliar o método de interpretação bíblica dos Padres ao moderno método exegético histórico-crítico. O primeiro método dá-nos uma visão do “todo” da revelação. Ademais, os Padres da Igreja tinham consciência de que o Espírito é quem nos faz entender os textos sacros: o método patrístico de leitura da Escritura implica a experiência da docilidade ao Espírito Santo na comunhão eclesial. O segundo método, por seu lado, ajuda-nos a conhecer a formação histórica dos textos, a composição gradativa da Bíblia, os diversos gêneros literários. Os dois métodos não são incompatíveis nem mutuamente excludentes; antes, complementam-se em proveito de melhor compreensão e assimilação da história da salvação “concentrada” nos escritos sagrados.
O modo pelo qual os Padres concebiam a liturgia nos ajuda a celebrar melhor hoje os sacramentos: não como protagonismo dos clérigos, mas como ação de todo o povo de Deus. Isso implica equilíbrio entre as funções da presidência e a participação de todos, como única Igreja celebrante. Aprendemos dos Padres que a liturgia deve ser vivida não como show a que se assiste, mas como humilde e agradecida contemplação do mistério de Deus numa atmosfera de oração em comunidade. Mencionemos Ambrósio de Milão e Cirilo de Jerusalém, para citar dois exemplos notáveis de Padres que reconheciam a centralidade da liturgia na vida cristã. O conhecimento das obras dos Padres, sem dúvida, há de nos ajudar a reencontrar o autêntico valor da celebração dos sacramentos, de modo particular como atitude de respeitosa acolhida do Deus que fala a seu povo, o purifica e o alimenta. Aqui tem grande significado a compreensão dos ritos e dos sinais litúrgicos, de como foram sendo assimilados aos poucos pelos cristãos em suas celebrações nos tempos iniciais da Igreja. Essa consciência histórica da formação dos ritos litúrgicos por certo há de favorecer sadia criatividade na liturgia, muito diversamente da mera invenção de gestos vazios e estranhos à tradição litúrgica da Igreja.
Em face do afã de exterioridade que se percebe hoje na liturgia católica, é necessário resgatar o valor da interioridade, tão prezada pelos Padres da Igreja. Os exemplos nesse particular são muitos, mas contentemo-nos em mencionar Agostinho de Hipona, com sua experiência de que o homem é autenticamente livre quando busca repousar em Deus; quando não se deixa mover pelo amor a si mesmo, mas pelo amor de Deus. Cabe, nesse contexto, mencionar brevemente a analogia que Agostinho faz entre o homem e a Trindade santa, uma vez que memória, inteligência e vontade, as três “operações” do espírito humano, fazem lembrar respectivamente o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Assim diz santo Agostinho: “descobri que o espírito não pode nunca existir sem recordar-se de si, sem compreender-se, sem amar-se […] deixei para mais tarde o estudo sobre a Trindade, da qual o espírito é imagem”.[10]
Os Padres têm muito para nos ensinar sobre a sadia diversidade de teologias, como sínteses imperfeitas brotadas do esforço humano de dizer o indizível: o mistério de Deus. Tais elaborações teológicas, porque imperfeitas, são complementares no empenho humano por “entender” o mistério de Deus. Lembremo-nos de que, no tempo dos Padres, conviviam grandes escolas teológicas, tais como a alexandrina, a antioquena e a asiática. A primeira teve em Orígenes um de seus expoentes, com seu rigoroso método de pesquisa demonstrado no Comentário ao Cântico dos Cânticos. A segunda, por sua vez, iniciada por Diodoro de Tarso na segunda metade do século IV, teve em Teodoro de Mopsuéstia seu representante máximo. Por certo, tais escolas teológicas coexistiam não em total harmonia, mas “rivalizavam” no propósito comum de pronunciar alguma palavra sobre o mistério de Deus que fosse útil ao fiel na acolhida do dom da salvação. A diversidade de posições era esperada, uma vez que nenhum discurso que queira falar sobre Deus pode pretender ser exaustivo e único.
Os Padres são de valor inestimável para o movimento ecumênico. O seu amor pela unidade da Igreja de Cristo (cuja imagem reconhecem na túnica sem costura do Crucificado — cf. Jo 19,23), por si só, justifica o atual empenho ecumênico. Nada lhes era mais repugnante que provocar cismas na Igreja. Ademais, os Padres são um patrimônio comum às grandes tradições cristãs de hoje — catolicismo, ortodoxia e protestantismo —, resultantes de processos históricos complexos quer por ocasião da separação entre Ocidente e Oriente (1054) quer por ocasião da Reforma protestante (1517). A revisitação dos Padres realizada em conjunto por essas diversas tradições cristãs tem alimentado o movimento ecumênico. Para nos convencermos disso, é suficiente ler os documentos conclusivos do diálogo teológico ecumênico.
Uma palavra ainda sobre os ganhos que uma releitura dos Padres proporcionaria à pastoral, mais precisamente à homilética. Caber-nos-ia aqui explorar o potencial poético da linguagem dos Padres, com suas ricas e sugestivas imagens, metáforas e analogias. Referem-se a Cristo como pastor, médico etc.; à Igreja como barco, lua, personagens bíblicas femininas etc. A Trindade é representada metaforicamente pelo curso d’água, que tem nascente, corrente e queda. Com certeza, o emprego dessas analogias e metáforas proporcionaria enriquecimento também para a teologia, como elaboração teórica do mistério de Deus que fosse menos “cerebral” e mais “cordial”.
9. Conclusão
Não é justo “idolatrar” os Padres da Igreja. Eles foram homens comuns, com fragilidades e pecados, os quais, não obstante, experimentaram, na Igreja e por meio da Igreja, a força libertadora e transformadora da ressurreição de Cristo. Não podemos recorrer a eles como se fossem a solução mágica para todas as indagações e dúvidas que tenhamos hoje. Aliás, certas opiniões por eles formuladas não foram inseridas no grande patrimônio dogmático da Igreja. Como exemplos, citemos a concepção de Ambrósio de Milão segundo a qual a paixão e a morte de Cristo foram o preço pago ao demônio pela salvação dos homens[11] ou a ideia da apocatástase, de Orígenes, segundo a qual, no fim dos tempos, ocorrerá o restabelecimento de todas as almas, também as dos anjos decaídos e dos pecadores condenados, na condição de felicidade paradisíaca. Os Padres são figuras importantes e respeitáveis, grandes referências para pensar a fé cristã e vivê-la; todavia, suas obras devem ser lidas criteriosamente, com discernimento e bom senso. Observadas essas premissas, eles serão para nós, hoje e sempre, como foram no passado, grandes luzeiros a indicar à Igreja caminhos de rejuvenescimento.
[1] Cf. o testemunho de Agostinho no livro das Confissões, VI, 3,3.
[2] A Trindade, XV, 3,5.
[3] Questões sobre o heptateuco, II, 73.
[4] Sermões, 87,4,5; 294,15; 341,9,11.
[5] A cidade de Deus, XV, 1.
[6] A cidade de Deus, XV, 18,2; XVIII, 51,2.
[7] Comentário ao Evangelho de João, tr. 6,7.
[8] Contra as heresias, IV, 20,7.
[9] Orígenes. Contra Celso, 8,17.
[10] A Trindade, XV, 3,5.
[11] Explicação do Evangelho de Lucas, IV, 11-12; VII, 114-117; Cartas, 72.
Pe. Paulo César Barros, sj