Publicado em número 262 - (pp. 5-11)
O amor jamais passará: Uma introdução à primeira carta aos Coríntios
Por Equipe do Centro Bíblico Verbo
Neste ano, reveste-se de especial importância o convite da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil para que as comunidades cristãs estudem a primeira carta aos Coríntios no mês bíblico, pois no dia 28 de junho teve início o Ano Paulino, convocado por Bento XVI em comemoração ao segundo milênio do nascimento de Paulo, figura insigne do cristianismo.
Por meio da primeira carta aos Coríntios, vamos conhecer um pouco mais essa comunidade. Trata-se de uma carta pastoral, e sua teologia aplica-se aos problemas e situações concretas daquela comunidade, não muito diferentes da realidade experimentada hoje em nossas igrejas: rixas e divisões internas porque há preferência por um ou por outro evangelizador; desvios na conduta moral; divisão entre ricos e pobres; discriminação de membros pobres nas celebrações da ceia do Senhor; diferentes entendimentos de como deve agir um membro da comunidade cristã na sociedade; valorização excessiva das manifestações carismáticas; busca de status e reconhecimento; dúvidas quanto à ressurreição dos mortos…
A teologia apresentada por Paulo para superar essa realidade é a da cruz. Em Jesus crucificado, vencedor da morte, Deus inverte a lógica do “mundo” e propõe outra. A própria comunidade de Corinto é sinal disso. A maioria das pessoas que dela participa é considerada fraca, sem prestígio, desprezível e insignificante (1Cor 1,26-27). Paulo se dirige a essas pessoas e organiza comunidades em favor delas porque sabe que o Deus libertador, o Deus do Êxodo, escolhe os fracos para libertá-los e conduzi-los à vida (Ex 3,7-10).
Que o estudo e a meditação da primeira carta aos Coríntios renovem nossas comunidades cristãs, para que elas sejam, no mundo, sinal do projeto do reino proposto por Jesus e assumido por Paulo e suas colaboradoras e colaboradores: reino de justiça, de fraternidade e, principalmente, de amor solidário para com as crucificadas e os crucificados de hoje. Esse amor jamais passará!
1. Conhecendo o autor da carta
Sabemos que a primeira carta aos Coríntios foi escrita por Paulo. Mas quem é esse evangelizador que procura, em Jesus crucificado e ressuscitado, soluções para os desafios concretos e cotidianos das primeiras comunidades cristãs? Vamos recordar o que Paulo fala de si mesmo em suas cartas e que lembrança dele permanece no livro dos Atos dos Apóstolos.
Paulo se apresenta como israelita: “Pois eu também sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim” (Rm 11,1); “circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus” (Fl 3,5); “São hebreus? Também eu. São israelitas? Também eu. São descendentes de Abraão? Também eu” (2Cor 11,22).
Entretanto, conforme o livro dos Atos dos Apóstolos, Paulo nasce em Tarso, na Cilícia, região fora de Israel (At 22,3). Se Paulo é judeu, o que ele está fazendo fora de sua terra natal? É preciso voltar ao passado para dar uma resposta a essa questão.
Desde o século III a.C., muitos judeus foram levados para a Ásia Menor. É possível que a família de Paulo seja descendente de um desses grupos. Daí se explica o fato de ele ter nascido e vivido fora da Palestina.
Assim, podemos afirmar que Paulo recebeu forte influência de duas culturas em sua educação:
a) influência do judaísmo: ele estuda as Escrituras Sagradas e conhece a história do seu povo; frequenta a sinagoga, aprende as orações, serve a Deus, convive com o próximo e ajuda os pobres. Paulo nos diz: “Ouvistes certamente de minha conduta outrora no judaísmo, de como perseguia sobremaneira e devastava a Igreja de Deus e como progredia no judaísmo mais do que muitos compatriotas da minha idade, distinguindo-me no zelo pelas tradições paternas” (Gl 1,13-14).
b) influência da cultura greco-romana: os judeus que vivem fora da Palestina aprendem a conviver com a cultura greco-romana. Isso significa que Paulo teve de aprender bem a língua, por meio da leitura e da escrita, e estudar as obras de importantes autores gregos.
A influência que Paulo recebe tanto do judaísmo como da cultura greco-romana facilita seu trabalho evangelizador no mundo greco-romano. Ele é um missionário incansável. Chega a percorrer 16.000 quilômetros por mar e por terra e, de acordo com a tradição, ainda está em plena atividade quando sofre o martírio em Roma, por volta do ano 67 d.C.
O mesmo império romano que matou Jesus é responsável pela morte de Paulo. Vamos procurar entender como funciona o poder imperial que domina e aniquila tantas vidas.
2. Conhecendo o império romano
No ano 63 a.C., Roma ocupa Jerusalém e, a partir daí, a Judeia se torna província romana. No tempo de Paulo, é o império romano que domina a Judeia e muitas outras regiões.
A base econômica do império é o comércio e a exploração do trabalho escravo. Além da mão de obra escrava, há trabalhadores(as) livres: artesãos independentes, pequenos camponeses e pescadores que trabalham para garantir o próprio sustento. Sobre eles, o império faz pesar sua mão de ferro, exigindo o pagamento de impostos, o trabalho forçado e o serviço militar. Esse modelo econômico produz grande número de pobres.
Em contrapartida, tanto em Roma como nas províncias do império existe um estrato social rico: nobres, aristocratas, sacerdotes, magistrados, juízes, alta classe de administradores e generais, ou seja, grupos que se beneficiam do modelo econômico imperial e mantêm sua riqueza e seus privilégios à custa das camadas mais pobres. Essa elite monopoliza informações e usa em proveito próprio os recursos financeiros que o poder central disponibiliza para obras e benfeitorias, manobrando tudo a seu favor. Esse modo de administrar é conhecido pelo nome de patronato, modelo que abrange todas as relações sociais, desde o imperador até os estratos sociais mais pobres.
O imperador, como o grande protetor, beneficia os administradores e as elites locais com doações de cargos, títulos de honra e títulos de terras. Dessa forma, cria laços de gratidão, submissão e dependência. O mesmo se dá com os administradores locais e as pessoas ricas de diferentes cidades e províncias, que fazem “pequenos agrados” a outras de estrato social inferior, formando uma rede de dependência e controle social. É a relação patrono/cliente se perpetuando. Além disso, o patrono deve ser honrado publicamente e seu nome deve ser respeitado na cidade, uma vez que realiza obras em benefício público.
Outro recurso que o império romano utiliza para expandir seu poder e manter o controle social é a divinização da imagem do imperador, exibindo-a em moedas, broches, taças, estátuas, altares e fóruns. Juntamente com essa prática, as elites das cidades e das províncias promovem cultos, sacrifícios, jogos, festas e festivais em datas significativas da vida do imperador, criando uma “aura” divina em torno de sua imagem. É bom lembrar que o título de Augusto, usado pelo imperador, significa “venerável”.
Essa estrutura imperial consegue se manter por mais de trezentos anos. Como isso é possível, uma vez que a população é bastante diversificada, apresenta costumes e culturas muito diferentes e o governo cobra taxas e tributos elevados? Além do sistema patronal e dos cultos oficiais ao imperador, o império romano possui um exército bem equipado e bem pago, que garante sua estabilidade.
Eis algumas funções do exército imperial:
• favorecer as conquistas romanas, obrigando as províncias dominadas a sustentar a riqueza de Roma;
• controlar a população livre e a população escrava;
• estabelecer a pax romana, ou seja, eliminar os muitos focos de resistência e as rebeliões, por meio da força, garantindo a arrecadação de tributos.
Outro fator importante na manutenção e coesão do império romano é a facilidade de transportes. As grandes estradas e um sistema marítimo seguro funcionam como verdadeiras vias de acesso, favorecendo o deslocamento das legiões de soldados, permitindo a circulação de informações de modo rápido e agilizando tanto o transporte de mercadorias quanto a cobrança de tributos.
Por essas estradas e mares se deslocam muitos missionários, entre os quais Paulo, que chega a Corinto em sua segunda viagem missionária. Vamos caminhar com ele pela cidade para conhecê-la e procurar entender o povo que ali vive.
3. Conhecendo a cidade de Corinto
Corinto, além de ser capital da província da Acaia, é a cidade mais rica da Grécia e uma das mais importantes do império romano. Destruída pela primeira vez em 146 a.C. pelo exército de Roma, foi reconstruída no governo de Júlio César em 44 a.C., passando à condição de colônia.
A cidade possui uma posição geográfica privilegiada, com dois portos: o de Cencreia, que fica no mar Egeu, e o de Laqueu, que dá acesso ao mar Adriático.
A travessia de um porto a outro oferece perigo, pois ventos fortes empurram as embarcações para um grande paredão rochoso, destruindo-as. Esse problema é resolvido da seguinte forma: quando um navio chega a um porto, é empurrado por terra até o outro, em um trajeto de seis quilômetros. Trabalho duro e penoso, realizado por grande número de escravos.
Olhando a cidade da região portuária, é fácil constatar que Corinto é uma cidade essencialmente comercial: muita mercadoria circula por via marítima e terrestre e muitos comerciantes e empresários passam a caminho de outras cidades. Quem nela se hospeda a negócios desfruta de sua beleza: templos, ginásios, imponentes edifícios públicos e lindos monumentos.
Com uma população estimada em torno de 300.000 habitantes, sendo a maioria escravas e escravos, Corinto pode ser comparada a uma grande “colcha de retalhos”, por sua diversidade de povos e costumes. Além disso, desde tempos antigos, ganhou a fama de ser uma cidade devassa. O ditado “viver à maneira de Corinto” é bem conhecido, e muitos vão lá para usufruir momentos de farra e prazer.
A população vive do comércio, da produção artesanal, do trabalho agrícola, das funções administrativas e da indústria do bronze, orgulho da cidade. Outra fonte de renda importante são os jogos locais, espécie de olimpíadas que se realizam a cada dois anos e atraem muitos turistas e atletas, movimentando a economia.
O império, por meio de sua política econômica, sabe se beneficiar de todas essas atividades: cobra, com mão de ferro, taxas e impostos, o que leva pequenos comerciantes e produtores rurais à falência. Os ricos se mantêm, pois são donos de latifúndios e estão inseridos na “rede” comercial. Isso faz crescer, cada vez mais, a diferença entre ricos e pobres.
Numa cidade tão grande e com tantos problemas sociais, as pessoas se sentem isoladas e suas necessidades nem sempre são percebidas. Uma forma de compensar esse anonimato e garantir a própria identidade é criar associações e confrarias que proporcionem honra e dignidade às pessoas pobres que delas participam. Esses grupos se formam com as mais diferentes finalidades. Entre outras: culto a alguma divindade; reunião de pessoas que exercem a mesma atividade profissional; garantia de serviços fúnebres e perpetuação da memória de pessoas falecidas; apoio financeiro aos membros mais necessitados da associação ou confraria.
Uma característica marcante de Corinto é a pluralidade de experiências religiosas. É possível encontrar na cidade manifestações da religião tradicional e, ao mesmo tempo, das novas religiões de mistério, vindas do Oriente. Estas oferecem aos iniciados diferentes maneiras de experimentar o êxtase espiritual e vencer as forças malignas do universo. A astrologia lê o destino das pessoas, determinado pelos astros; o culto a diferentes deuses e deusas e a diversidade de templos e rituais fazem de Corinto grande mercado religioso.
Em meio a essa realidade, algo novo desabrocha na cidade: a comunidade cristã de Corinto. Vamos conhecer essa comunidade vibrante que levou Paulo a escrever: “Dou incessantemente graças a Deus a vosso respeito. Na verdade, o testemunho de Cristo tornou-se firme em vós” (1Cor 1,2.6).
4. Conhecendo a comunidade cristã de Corinto
Paulo funda a comunidade cristã de Corinto em sua segunda viagem missionária, por volta do ano 50 d.C. De acordo com o relato dos Atos dos Apóstolos, Paulo vem de Atenas e, chegando a Corinto, encontra-se com o casal judeu Priscila e Áquila. Como exercem a mesma atividade artesanal — confecção de tendas —, Paulo se hospeda e trabalha com eles (At 18,2-3). É assim que Paulo inicia sua missão em Corinto.
A comunidade que ele ajuda a fundar é formada por pessoas que vêm da cultura grega e da cultura judaica; são, na maioria, pessoas pobres, escravos(as), estivadores e pequenos artesãos (1Cor 1,26; 7,18; 8,7; 9,21-21; 10,14; 12,2).
Sabemos que alguns membros da comunidade cristã de Corinto são ricos; por exemplo, Crispo é o chefe da sinagoga (At 18,8), Gaio é anfitrião de Paulo e de toda a Igreja (Rm 16,23), Erasto é tesoureiro da cidade (At 19,22; 2Tm 4,20). Provavelmente, é na residência dessas pessoas que a comunidade cristã de Corinto se reúne. A casa dos mais abastados é suficientemente grande para abrigar de 40 a 50 pessoas, o que nos faz supor que o número de cristãos seja de 150 a 200 pessoas, divididas em diferentes comunidades espalhadas pela cidade.
Paulo permanece 18 meses em Corinto. Após esse período, segue viagem. Algum tempo depois, estando em Éfeso, fica sabendo que há problemas na comunidade. As informações chegam de dois modos: pessoalmente (1Cor 1,11; 16,6) e por meio de uma carta, enviada por membros da comunidade, pedindo orientações sobre determinados assuntos (1Cor 7,1).
Paulo percebe que a comunidade está em dificuldades. Seria muito difícil um grupo de pessoas de origens e posições sociais tão diversas não apresentar problemas.
5. Conhecendo a carta aos Coríntios e os problemas da comunidade
O início da primeira carta aos Coríntios segue o costume da época: primeiro, o remetente e seu colaborador se apresentam (1,1); em seguida, o remetente se dirige ao destinatário (1,2), fazendo uma saudação e uma ação de graças (1,3-9).
Após a introdução, a carta pode ser dividida em duas partes. Na primeira, Paulo faz uma série de exortações à comunidade com base em notícias que pessoas amigas lhe trouxeram. Na segunda, Paulo responde à comunidade de Corinto com base em uma carta que ele recebeu de membros da comunidade (1Cor 7,1). Vamos ver o conteúdo de cada uma das notícias levadas a Paulo e suas respostas.
5.1. Resposta de Paulo às notícias recebidas pessoalmente
5.1.1. Conflitos entre os grupos: 1Cor 1,10-4,16
Por Corinto, além de Paulo, passam outros missionários. Alguns membros da comunidade começam a formar “grupinhos” em torno de um pregador. Um grupo prefere, por exemplo, Apolo; outros preferem Pedro e alguns se dizem de Cristo.
O que pode significar, na realidade da comunidade cristã de Corinto, pertencer a um desses grupos?
a) Os “de Paulo”. Esse grupo parece ser de cristãos fiéis a Paulo, na qualidade de fundador da comunidade, e se identifica com o seu modo de viver o evangelho. Em Corinto, Paulo “se fez fraco com os fracos… Se fez tudo para todos… por causa do evangelho” (1Cor 9,22-23) e não quis receber ajuda financeira para se manter, como faziam outros apóstolos (1Cor 4,12). A maneira livre, gratuita e desinteressada de Paulo anunciar o evangelho agradou a muitos membros da comunidade.
b) Um segundo grupo é o “de Apolo”. Esse missionário esteve em Corinto (1Cor 1,12; 3,4.11.22; 4,6) e o livro dos Atos dos Apóstolos informa que ele é apresentado como judeu natural de Alexandria, no Egito (At 18,24-28). Como judeu, Apolo conhece a Lei e as tradições de seu povo. Ao mesmo tempo, ele viveu numa cidade onde circulam ideias de diferentes filósofos e foi influenciado por elas. Assim, aprendeu a conviver com a cultura greco-romana de seu ambiente e se comunicar com as pessoas à sua volta. Apolo é excelente orador e pregador do evangelho; provavelmente, seu perfil de “intelectual” atrai os membros mais instruídos da comunidade de Corinto.
c) Outro grupo presente na comunidade é formado pelos que “se dizem de Pedro” — Pedro é citado várias vezes na primeira carta aos Coríntios (3,22; 9,5; 15,5). Podemos supor que suas ideias são conhecidas e aceitas por membros da comunidade. Quais são elas? São ideias relacionadas aos ritos de purificação e às carnes sacrificadas aos ídolos. Os cristãos da comunidade de Corinto de origem judaica, chamados de judaizantes, ainda carregam crenças e costumes trazidos do judaísmo. Por isso, têm escrúpulos em compartilhar refeições com cristãos de origem grega, com receio de se tornar impuros. Em Antioquia, já havia ocorrido um conflito entre Paulo, Pedro e Barnabé pelo mesmo motivo (Gl 2,1-14). Na ocasião, Paulo tomou uma posição mais livre e não concordou em impor costumes judaicos aos cristãos de outra cultura. O grupo de Pedro parece estar apegado às tradições judaicas.
d) Os que se dizem “de Cristo”. A carta não deixa claro o que esse grupo quer ou mesmo se existiu. Podemos levantar algumas possibilidades: a primeira é que o próprio Paulo, reagindo às divisões, pode ter usado o título “Cristo” a fim de apontar para o único fundamento. Outra possibilidade é que esse grupo seja formado por pessoas que se põem fora das divisões e conflitos da comunidade, buscando uma relação direta com Cristo, sem intermediários, ou ainda não se envolvem nem tomam partido nas discussões.
Paulo aponta uma saída para a superação dos conflitos: escolher Jesus crucificado como fundamento da comunidade. No Crucificado, Deus inverte a lógica do “mundo” e propõe outra: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado” (Lc 10,21).
5.1.2. Conduta moral: 1Cor 5,1-13; 6,12-20
A comunidade se vê diante de um membro que está vivendo maritalmente com sua madrasta (1Cor 5,1-13). Paulo condena essa conduta, proibida tanto pelas leis de Israel (Lv 18,8) quanto pelo direito romano. O Concílio de Jerusalém, em 51 d.C., proibiu tais uniões aos cristãos (At 15,20-21).
Enxergar a vida como algo breve e o corpo apenas como realidade material traz sérias consequências para a prática da sexualidade. Por isso, Paulo questiona a atitude de membros da comunidade que consideram normal o relacionamento com prostitutas (1Cor 6,12-20). Com efeito, na cultura greco-romana, a prática da prostituição não era proibida. Além disso, membros da comunidade entendem a “liberdade em Cristo”, que Paulo menciona tantas vezes, de forma errada. Eles afirmam: “Tudo me é permitido”. Paulo mostra que “nem tudo convém” aos que aderem ao evangelho; tal adesão exige enxergar o próprio corpo e o corpo da outra pessoa de maneira nova, como templo do Espírito Santo.
5.1.3. Conduta social: 1Cor 6,1-11
O sistema jurídico do mundo greco-romano é extremamente injusto. Os ricos têm privilégios, escolhem os jurados e podem pagar bons defensores. Já os grupos sociais discriminados ficam à mercê dos que exercem o poder nos tribunais. Alguns cristãos estão apresentando seus irmãos de comunidade aos tribunais de Corinto. Paulo condena essa atitude — afinal, é a comunidade cristã que deve “julgar o mundo”, ou seja, seu modo de viver deve desmascarar todo e qualquer sistema injusto e opressor.
5.2. Resposta de Paulo às perguntas que chegam por correspondência
5.2.1. O melhor modo de vida para servir o Senhor: 1Cor 7,1-40
Qual é o melhor modo de viver, tendo em vista o Reino que está para chegar? É esse o questionamento que envolve o capítulo 7.
Cristãos(ãs) de Corinto compartilham a crença de uma segunda vinda de Jesus em um futuro muito próximo e acreditam que estarão vivos e participarão desse momento. Tal mentalidade leva alguns casais a se privar da vida sexual e outros a querer a separação; os casamentos mistos entre cristãos e não cristãos estão sendo questionados; viúvos(as) e solteiros(as) não sabem o que fazer.
Paulo não estabelece doutrina alguma em relação a esse assunto, mas aconselha que cada pessoa permaneça no modo de vida em que se encontrava quando foi chamada por Deus, ou seja, antes da conversão.
5.2.2. Carne oferecida aos ídolos: 1Cor 8,1-13; 10,1-33
A carne sacrificada nos templos está sendo consumida por um grupo da comunidade que não vê problema nisso, enquanto outros se escandalizam.
Apresentando-se como exemplo, Paulo ilustra a sua liberdade como solidariedade, seja com os judeus sob a lei, seja com os gentios sem a lei (1Cor 9,19-23), e oferece a seguinte orientação: “Se um alimento é ocasião de queda para um irmão, é melhor deixar de comê-lo” (1Cor 10,27-30).
5.2.3. Conduta livre e responsável: 1Cor 9,1-27
Com base no próprio testemunho, Paulo convida a comunidade cristã à liberdade em Cristo, para anunciar e viver o evangelho (1Cor 9,1-27). Aproveitando sua experiência pessoal como evangelizador, procura mostrar à comunidade que sua (dele) maneira de agir tem em vista o amor ao próximo: ele se faz servo de todos(as) a fim de ganhar o maior número possível para Cristo (1Cor 9,19). É dessa forma que os “mais fortes” da comunidade devem agir em relação aos “mais fracos”.
5.2.4. Celebração da ceia do Senhor: 1Cor 11,17-34
A divisão existente na comunidade cristã se reflete na celebração da ceia do Senhor: os ricos são recebidos na sala de jantar como convidados especiais, enquanto os mais pobres ficam apinhados no átrio. A memória da ceia do Senhor está sendo motivo de discriminação e humilhação dos mais pobres. Nesse sentido, Paulo recorda que a partilha do corpo e sangue do Senhor deve ser sinal da presença de Deus encarnado no meio da comunidade e por isso ninguém pode ficar excluído do momento da refeição comunitária. Ele insiste que celebrar a ceia do Senhor na comunidade e continuar com as divisões é comer e beber a própria condenação.
5.2.5. Manifestações carismáticas e supremacia do amor: 1Cor 12-14
Esta seção da carta apresenta as características ideais de uma comunidade cristã: seus membros se relacionam de forma igualitária, apresentam heterogeneidade nas manifestações de dons e serviços e se esvaziam de si mesmos, pela prática do amor e do serviço às demais pessoas.
A comunidade de Corinto está longe disso. Muitos querem cargos e reconhecimento. Diante dessa disputa por poder e honra, Paulo convoca a comunidade a enxergar, de maneira nova, a função dos dons: eles têm valor não para conferir prestígio a quem os manifesta, mas para ajudar na construção da comunidade. Nenhuma experiência religiosa, por mais extraordinária que seja, como falar em línguas, profetizar, ter toda a ciência, entregar os bens aos famintos ou o corpo às chamas, tem valor se falta o amor. A perfeição de uma pessoa ou da comunidade está na prática do amor. O amor é superior até mesmo à fé e à esperança, por isso jamais passará (1Cor 13,8).
5.2.6. Ressurreição: 1Cor 15,1-58
Alguns cristãos de Corinto estão em dúvida quanto à ressurreição dos mortos. Paulo ajuda a comunidade a enxergar que a ressurreição de Jesus é o fundamento de toda experiência pessoal e comunitária da fé cristã. Ao afirmar que, “se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a fé” (1Cor 15,14), Paulo aborda o tema da ressurreição na vida. A fé no Cristo ressuscitado atinge diretamente a vida da comunidade: convivência, celebração, trabalho missionário, pregação… Para ele, negar a ressurreição de Jesus crucificado é negar a vivência cristã segundo o evangelho. O que as comunidades cristãs pregam é o evangelho de Jesus, sua prática da justiça, da compaixão e da solidariedade, como condição para alcançar a vida eterna.
Negar a ressurreição de Cristo significa negar a própria fé em Deus, que não abandona as pessoas que lutam pela justiça.
5.3. Proposta de uma coleta em favor da igreja de Jerusalém e saudações finais: 1Cor 16,1-24
Paulo pede que a comunidade cristã de Corinto demonstre sua solidariedade para com as comunidades necessitadas, por meio de uma coleta, e dá orientações sobre como ela deve ser feita: “No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de lado o que conseguir poupar; desse modo não se esperará a minha chegada para se fazerem as coletas” (1Cor 16,2). Fala em seguida de seus projetos de viagem. Recomenda Timóteo à generosidade da comunidade e informa que Apolo não poderá ir a Corinto naquele momento. Faz algumas exortações e recomendações, mostra que não é uma pessoa isolada em seu ministério, mas, pelo contrário, vive no meio de suas comunidades (1Cor 16,19-20), e para Corinto garante seu amor: “Com todos vós está o meu amor em Cristo Jesus” (1Cor 16,24).
6. Aprendendo com Paulo
A primeira carta aos Coríntios é essencialmente pastoral, ou seja, sua preocupação central são os problemas concretos da comunidade. As orientações de Paulo e sua maneira de conduzir o trabalho missionário podem iluminar nossa caminhada hoje. Vejamos alguns pontos.
• A carta traduz a preocupação pastoral de Paulo ao priorizar a formação de comunidades.
• Paulo nunca trabalha sozinho. Conta com a ajuda de colaboradores(as) na missão, formando lideranças para continuar a evangelização.
• Apresenta respostas pastorais e teológicas na perspectiva de seu lugar social, ou seja, é um evangelizador que trabalha para se manter, que se põe ao lado dos(as) excluídos(as) do modelo socioeconômico do império e sabe se adaptar às diferentes situações.
• Busca luzes nas Escrituras para iluminar a realidade das comunidades (1Cor 11,23; 15,3-5).
• Valoriza os ministérios e os considera como serviço à comunidade.
• Tem a coragem de fazer frente e dar resposta a problemas não abordados por Jesus (1Cor 7,12-16).
• Paulo realiza o que chamamos hoje de pastoral da cidade ou pastoral urbana. Ele soube adaptar a Boa-Nova de Jesus à realidade dos grandes centros do mundo greco-romano.
Paulo criou verdadeira rede de pequenas comunidades que se reúnem nas casas (1Cor 16,16-17; 1,14-16). Essas igrejas não são apenas novo espaço religioso, mas pequenos núcleos sociais que mantêm um vínculo de solidariedade e de afetividade mesmo em meio a conflitos (1Cor 11,17-34). Com essa prática cristã, os valores da cultura greco-romana, baseados em um modelo piramidal injusto e excludente, estão sendo superados.
7. Nossa caminhada hoje
Ao longo deste artigo, procuramos dialogar com Paulo e a comunidade de Corinto. Conhecemos suas tensões, conflitos, dúvidas e buscas. Podemos agora nos perguntar: o que a experiência dessa pequena comunidade cristã, distante de nós dois mil anos, tem para dizer a nossas comunidades de hoje?
Parece-nos que a resposta é a mesma apresentada por Paulo aos Coríntios: assumir Jesus crucificado, como fundamento da vida cristã pessoal e comunitária. Na cruz encontramos a sabedoria de Deus, porque ela inverteu a lógica do mundo, uma lógica geradora de morte: disputas, divisões, preconceitos, injustiças e privilégios. Jesus não fez esse jogo e por isso foi crucificado pelo poder político e religioso de sua época.
Essa lógica está presente, mais do que nunca, em nosso modelo social: o lucro está acima da vida. Na lógica do capital mundial, toda e qualquer atividade que renda lucro é válida. Isso inclui a corrupção, o narcotráfico, a prostituição — também infantil —, o comércio de armas, as guerras, o trabalho escravo e a destruição de ecossistemas. Mata-se por dinheiro, por prestígio e poder. O resultado de tal lógica é a degradação humana, a perda do sentido ético, a autodesvalorização, a alienação, a doença, o suicídio, a degradação ambiental, pondo em risco a vida na Terra.
Cristãos e cristãs, individual e comunitariamente, devem morrer para esse modelo que o mundo oferece, buscando práticas alternativas a essa lógica destruidora. Por isso, é preciso somar forças com as organizações, as entidades, as diferentes tradições religiosas e todas as pessoas de boa vontade. Não podemos ficar passivos diante dessa realidade. A proposta que a 5ª Conferência Geral do Celam tão bem realçou de renovar nossas estruturas eclesiais caducas não passa por aí?
O Espírito de Deus, que iluminou, fortificou e impulsionou a comunidade cristã de Corinto, fazendo dela uma comunidade alternativa dentro da sociedade greco-romana, é o mesmo que age em nós hoje. Não criemos barreiras à sua ação.
A graça do Senhor Jesus esteja conosco! (1Cor 16,23).
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Equipe do Centro Bíblico Verbo